Hilda Machado nasceu em 1952. Com um mestrado em Artes pela Universidade de São Paulo (1987) e doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001), a poeta-cineasta lecionava na Universidade Federal Fluminense, trabalhando especialmente na área de pesquisa e realização cinematográficas. Estudou cinema em Cuba e atuou como pesquisadora do uso da imagem na história junto à coleção fotográfica do The Warburg Institute, da Universidade de Londres, na Grã-Bretanha, além de passagens como pesquisadora por várias universidades e insitutiçoes no Brasil e exterior. Em 1987 recebeu o prêmio de melhor direção nos festivais de cinema de Gramado, Recife e Rio de Janeiro pelo curta-metragem “Joílson marcou”. Além de inúmeros artigos e ensaios sobre cinema, publicou em 2002 o livro “Laurinda Santos Lobo: artistas, mecenas e outros marginais em Santa Teresa” (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002). Hilda Machado foi presa em 1978 pela ditadura militar.
Ezra Pound escreveu que a memória era um dos melhores testes para um poema, e chegava a listar aqueles que permaneciam em sua memória após anos ou décadas de sua primeira leitura. Foi o homem, afinal, que declarou que “only emotion endures.” Dos muitos poemas que li nos últimos anos, «Miscasting», de Hilda Machado, publicado em 2004 na revista Inimigo Rumor, foi sem dúvida um dos que permaneceram mais claros em minha memória, talvez pela carga emocional que liberou, mas carga emocional unida à qualidade intrínseca do poema, que conjuga uma linguagem aparentemente coloquial, num tom de conversa, mas que microfilma imagens e gonga-se em « self-deprecation » numa sonoridade quase átona, sutil, em versos como : « mas o cavaleiro de espadas voltou a galope / armou a sua armadilha / cisco no olho da caolha / a sua vitória de Pirro » ou « oh céu brilhante do exílio / que terra / que tribo / produziu o teatrinho Troll colado à minha boca ».
Musicalidade ou sonoridade tornam-se elementos destacados em um poema aos ouvidos da crítica apenas quando manifestam-se de maneira tonitruante, por meio de repetiçoes, assonância e aliteração explícitas, como se música se resumisse a refrão, ou na busca de sons preciosos, palavras « nunca dantes navegadas ». O mesmo se dá com a discussão de certa idéia de « coloquial » ou oralidade na poesia. Ainda está por ser escrita a crítica do papel da oralidade e aspectos sonoros, por exemplo, da poesia do anti-músico João Cabral de Melo Neto, o autor dos poucos “poemas para vozes” oficiais da moderna poesia brasileira, na influência clara da literatura de cordel em sua poesia. Outra coisa a ser debatida é o suposto “coloquial” de certa poesia nacional. O crítico norte-americano Hugh Kenner escreveu a propósito do trabalho de Williams Carlos Williams, este defensor da criação de uma prosódia americana para a poesia em língua inglesa (numa pesquisa similar à de modernistas brasileiros como Manuel Bandeira) que “art lifts the saying out of the zone of things said” (Homemade World,1975), ou “a arte ergue e retira o dizer da zona das coisas ditas”. Tal “dito” torna-se apto, por exemplo, na discussão do trabalho de poetas como Paulo Leminski, em que o “coloquial” serve como superfície de naturalidade para o artifício formal de toda poesia, parte da pesquisa poética de criaturas como Heine, Laforgue, Williams, Bandeira ou Cabral.
Hilda Machado usa recursos parecidos, em poemas que pedem a voz alta do leitor, mas nos quais a escrita tesa se faz presente, garantindo que o poema não se dissolva em mera saliva confessional. A morte prematura de Hilda Machado retira do convívio dos poetas uma poeta que a grande maioria mal sabia que existia. No entanto, os poucos textos a que tivemos acesso até agora fazem com o que os editores da Modo de Usar & Co. posicionem Hilda Machado com respeito na freqüência da sintonia de nossa sincronia.
Poemas de Hilda Machado:
estou entregando o cargo
onde é que assino
retorno outros pertences
um pavilhão em ruínas
o glorioso crepúsculo na praia
e a personagem de mulher
mais Julieta que Justine
adeus ardor
adeus afrontas
estou entregando o cargo
onde é que assino
há 77 dias deixei na portaria
o remo de cativo nas galés de Argélia
uma garrafa de vodka vazia
cinco meses de luxúria
despido o luto
na esquina
um ovo
feliz ano novo
bem vindo outro
como é que abre esse champanhe
como se ri
mas o cavaleiro de espadas voltou a galope
armou a sua armadilha
cisco no olho da caolha
a sua vitória de Pirro
cidades fortificadas
mil torres
escaladas por memórias inimigas
eu, a amada
eu, a sábia
eu, a traída
agora finalmente estou renunciando ao pacto
rasgo o contrato
devolvo a fita
me vendeu gato por lebre
paródia por filme francês
a atriz coadjuvante é uma canastra
a cena da queda é o mesmo castelo de cartas
o herói chega dizendo ter perdido a chave
a barba de mais de três dias
vim devolver o homem
assino onde
o peito desse cavaleiro não é de aço
sua armadura é um galão de tinta inútil
similar paraguaio
fraco abusado
soufflé falhado e palavra fútil
seu peito de cavalheiro
é porta sem campainha
telefone que não responde
só tropeça em velhos recados
positivo
câmbio
não adianta insistir
onde não há ninguém em casa
os joelhos ainda esfolados
lambendo os dedos
procuro por compressas frias
oh céu brilhante do exílio
que terra
que tribo
produziu o teatrinho Troll colado à minha boca
onde é que fica essa tomada
onde desliga
Cabo Frio
Nuvens passageiras
miragens peregrinas enfunadas pelo Nordeste
queda de folhagem
muda retórica
O Sudoeste dá rédeas à repulsa
nuvens erráticas devoram rivais
Orfeu despedaçado por bacantes drapejadas de vapor
Em dia sem vento
a falta de engenho permite
purezas de sabão e macieiras em flor
talco no chão do banheiro
sorvete marca Aristófanes
Mas quase sempre ele pisa seus véus
Duas mãos de cinza desmaiado
sobre fundo esmaltado é perícia
renda
luxo magnífico e corrupto
realização elegante de algum mandarim
leque de plumas de avestruz tintas de rosa
levemente agitado diante da luz