quarta-feira, 30 de abril de 2008

Homenagem a Hilda Machado (1952 - 2007)


especial para a Modo de Usar & Co.


Hilda Machado nasceu em 1952. Com um mestrado em Artes pela Universidade de São Paulo (1987) e doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001), a poeta-cineasta lecionava na Universidade Federal Fluminense, trabalhando especialmente na área de pesquisa e realização cinematográficas. Estudou cinema em Cuba e atuou como pesquisadora do uso da imagem na história junto à coleção fotográfica do The Warburg Institute, da Universidade de Londres, na Grã-Bretanha, além de passagens como pesquisadora por várias universidades e insitutiçoes no Brasil e exterior. Em 1987 recebeu o prêmio de melhor direção nos festivais de cinema de Gramado, Recife e Rio de Janeiro pelo curta-metragem “Joílson marcou”. Além de inúmeros artigos e ensaios sobre cinema, publicou em 2002 o livro “Laurinda Santos Lobo: artistas, mecenas e outros marginais em Santa Teresa” (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002). Hilda Machado foi presa em 1978 pela ditadura militar.


Ezra Pound escreveu que a memória era um dos melhores testes para um poema, e chegava a listar aqueles que permaneciam em sua memória após anos ou décadas de sua primeira leitura. Foi o homem, afinal, que declarou que “only emotion endures.” Dos muitos poemas que li nos últimos anos, «Miscasting», de Hilda Machado, publicado em 2004 na revista Inimigo Rumor, foi sem dúvida um dos que permaneceram mais claros em minha memória, talvez pela carga emocional que liberou, mas carga emocional unida à qualidade intrínseca do poema, que conjuga uma linguagem aparentemente coloquial, num tom de conversa, mas que microfilma imagens e gonga-se em « self-deprecation » numa sonoridade quase átona, sutil, em versos como : « mas o cavaleiro de espadas voltou a galope / armou a sua armadilha / cisco no olho da caolha / a sua vitória de Pirro » ou « oh céu brilhante do exílio / que terra / que tribo / produziu o teatrinho Troll colado à minha boca ».


Musicalidade ou sonoridade tornam-se elementos destacados em um poema aos ouvidos da crítica apenas quando manifestam-se de maneira tonitruante, por meio de repetiçoes, assonância e aliteração explícitas, como se música se resumisse a refrão, ou na busca de sons preciosos, palavras « nunca dantes navegadas ». O mesmo se dá com a discussão de certa idéia de « coloquial » ou oralidade na poesia. Ainda está por ser escrita a crítica do papel da oralidade e aspectos sonoros, por exemplo, da poesia do anti-músico João Cabral de Melo Neto, o autor dos poucos “poemas para vozes” oficiais da moderna poesia brasileira, na influência clara da literatura de cordel em sua poesia. Outra coisa a ser debatida é o suposto “coloquial” de certa poesia nacional. O crítico norte-americano Hugh Kenner escreveu a propósito do trabalho de Williams Carlos Williams, este defensor da criação de uma prosódia americana para a poesia em língua inglesa (numa pesquisa similar à de modernistas brasileiros como Manuel Bandeira) que “art lifts the saying out of the zone of things said” (Homemade World,1975), ou “a arte ergue e retira o dizer da zona das coisas ditas”. Tal “dito” torna-se apto, por exemplo, na discussão do trabalho de poetas como Paulo Leminski, em que o “coloquial” serve como superfície de naturalidade para o artifício formal de toda poesia, parte da pesquisa poética de criaturas como Heine, Laforgue, Williams, Bandeira ou Cabral.


Hilda Machado usa recursos parecidos, em poemas que pedem a voz alta do leitor, mas nos quais a escrita tesa se faz presente, garantindo que o poema não se dissolva em mera saliva confessional. A morte prematura de Hilda Machado retira do convívio dos poetas uma poeta que a grande maioria mal sabia que existia. No entanto, os poucos textos a que tivemos acesso até agora fazem com o que os editores da Modo de Usar & Co. posicionem Hilda Machado com respeito na freqüência da sintonia de nossa sincronia.


Poemas de Hilda Machado:


Miscasting




“So you think salvation lies in pretending?”[1]
Paul Bowles




estou entregando o cargo
onde é que assino
retorno outros pertences
um pavilhão em ruínas
o glorioso crepúsculo na praia
e a personagem de mulher
mais Julieta que Justine
adeus ardor
adeus afrontas
estou entregando o cargo
onde é que assino


há 77 dias deixei na portaria
o remo de cativo nas galés de Argélia
uma garrafa de vodka vazia
cinco meses de luxúria
despido o luto
na esquina
um ovo
feliz ano novo
bem vindo outro
como é que abre esse champanhe
como se ri

mas o cavaleiro de espadas voltou a galope
armou a sua armadilha
cisco no olho da caolha
a sua vitória de Pirro
cidades fortificadas
mil torres
escaladas por memórias inimigas
eu, a amada
eu, a sábia
eu, a traída


agora finalmente estou renunciando ao pacto
rasgo o contrato
devolvo a fita
me vendeu gato por lebre
paródia por filme francês
a atriz coadjuvante é uma canastra
a cena da queda é o mesmo castelo de cartas
o herói chega dizendo ter perdido a chave
a barba de mais de três dias

vim devolver o homem
assino onde
o peito desse cavaleiro não é de aço
sua armadura é um galão de tinta inútil
similar paraguaio
fraco abusado
soufflé falhado e palavra fútil

seu peito de cavalheiro
é porta sem campainha
telefone que não responde
só tropeça em velhos recados
positivo
câmbio
não adianta insistir
onde não há ninguém em casa

os joelhos ainda esfolados
lambendo os dedos
procuro por compressas frias
oh céu brilhante do exílio
que terra
que tribo
produziu o teatrinho Troll colado à minha boca
onde é que fica essa tomada
onde desliga





Cabo Frio

Nuvens passageiras
miragens peregrinas enfunadas pelo Nordeste
queda de folhagem
muda retórica

O Sudoeste dá rédeas à repulsa
nuvens erráticas devoram rivais
Orfeu despedaçado por bacantes drapejadas de vapor

Em dia sem vento
a falta de engenho permite
purezas de sabão e macieiras em flor
talco no chão do banheiro
sorvete marca Aristófanes

Mas quase sempre ele pisa seus véus

Duas mãos de cinza desmaiado
sobre fundo esmaltado é perícia
renda
luxo magnífico e corrupto
realização elegante de algum mandarim
leque de plumas de avestruz tintas de rosa
levemente agitado diante da luz

terça-feira, 29 de abril de 2008

Hoje à noite em SP

Será lançada hoje à noite em sua querida cidade de São Paulo (terça-feira, 29 de abril) o número comemorativo dos 10 anos da revista de poesia INIMIGO RUMOR. Na mesma mesa do Bar Balcão, a partir das 20 horas, você poderá arrematar o histórico, polêmico, controverso, discutido (e pouco visto) número de estréia de nossa revista Modo de Usar & Co., também conhecida no estrangeiro como How to Use & Cia.

"Que seja doce."



segunda-feira, 28 de abril de 2008

Poesia: entre Goulart e Collor

Ainda que as décadas de 70 e 80 sejam muitas vezes vistas como o momento de surgimento e consolidação da obra daqueles que ficaram conhecidos como poetas marginais (Ana Cristina César, Francisco Alvim, Eudoro Augusto, entre outros), além de Paulo Leminski, cuja obra oficia-se ao mesmo tempo como divisor-de-águas e aterro-de-trincheiras das oposiçoes do período, estas décadas presenciaram as estréias de poetas inescapáveis dos dias de hoje, mas que apenas nos últimos 15 anos garantiram visibilidade crítica por seu intenso trabalho editorial, tradutório e poético, como é o caso de Régis Bonvicino, Duda Machado e Júlio Castañon Guimarães, que estrearam em 1975, ano de estréia ainda de Adélia Prado. É aos poucos que o período poético brasileiro que coincide com a ditadura militar passa a mostrar-se em toda a sua complexidade. Ao final das contas pagas, entre a queda de João Goulart e a eleição de Fernando Collor, o país contempla o surgimento de poetas tão diferentes entre si quanto os citados acima, aos quais poderíamos ainda unir Leonardo Fróes, Wally Salomão, Elisabeth Veiga, Sebastião Nunes, Horácio Dídimo e Afonso Henriques Neto, além dos livros mais importantes de Roberto Piva e Orides Fontela, ou de poetas do pós-guerra imediato, como Hilda Hilst e Haroldo de Campos. A narrativa crítica que se faz da produção poética do período tende a simplificá-la em um dilema maniqueísta entre poetas ligados a um suposto formalismo dos grupos do pós-guerra e a "informalidade" dos marginais, apagando poetas em nome da coerência da narrativa e da instauração de uma hegemonia que regulamente o cânone. Isto apenas demonstra como precisamos encontrar uma maneira mais verdadeiramente estética e menos pedagógica em nossa relação com o que seguimos chamando de tradição. Ciente de que a própria lista acima acaba correndo o risco de contribuir para esta relação pouco saudável com a noção de permanência e essência poéticas, um possível gesto poderia ser o de propor a releitura de poetas sobre os quais se silencia com freqüência, sem impor uma possível mera inclusão na listagem do "seguro para o consumo".


Sem publicar um livro de poesia há quase 20 anos e concentrado em seu trabalho como crítico de arte e professor universitário, ausente portanto das querelles do momento, a obra de Ronaldo Brito tornou-se praticamente invisível. Os poemas de Ronaldo Brito, assim como os de Orides Fontela do período, praticam um minimalismo textual que, muito além de filiar-se a qualquer poética de concisão e economia, parece partir de necessidades implícitas à Weltanschauung destes poetas, em cuja obra o mundo parece querer desfazer-se em silêncio e deserto. Após estrear no final da década de 70, Ronaldo Brito publicou em 1982 o livro Asmas, que chamou a atenção de alguns críticos importantes, e teve sua última coletânea de poemas, chamada Quarta do Singular (1989) publicada pela lendária coleção Claro Enigma, da editora Duas Cidades. Como em alguns trabalhos de Duda Machado e Régis Bonvicino em seus primeiros livros, Ronaldo Brito pratica também uma fragmentação sintática e leve deslocamento do eixo de referencialidade, que se tornariam características de certa poesia do fim da década de 90, ainda que se possa argumentar que esta pesquisa de alguns poetas do fim do século tenha surgido sob a influência de poetas estrangeiros como Robert Creeley e Paul Celan.

Ronaldo Brito nasceu no Rio de Janeiro em 1949. Com um trabalho bastante conhecido e influente como crítico de arte, seu ativismo cultural iniciou-se em princípios da década de 70 no jornal Opinião. Foi um dos editores da revista Malasartes, do jornal A parte do fogo e escreveu alguns dos trabalhos mais consistentes sobre o neoconcretismo e as obras de Sergio Camargo e Eduardo Sued, entre outros. Estreou oomo poeta em 1977 com o livro O mar e a pele.


de Asmas (1982)


Fala a palavra
ignara
diz o isto
do nada
poema mudo
com critério de sono
cala a fonte
funda
o branco no papel
sem fundo
e asma, asma



§§§



A vida não
tudo menos esta
palavra mágica
o mundo talvez
a hipótese de mundo
metáfora sintoma
o texto silêncio
consente o mundo nada
a vida não
língua morta



de Quarta do Singular (1989)



Bucólicas

I

O seu lugar era o vento
os dias passava às voltas consigo
por inércia metafísica
levitando aflito
avesso ao cosmo
ao solo e à vida
ser em trânsito
intransitivo

II

Patriota do quarto
raramente me arrisco
pelo resto da casa
nômade do círculo
turista intrínseco
universal


§§§

Trinta e três

Sátiro e santo
e neutro
sóbrio e simples
abstruso
eu completo outro
mar irrisória ilha
semideus plebeu
e mula
segredo e samba
fútil
algum profundo pária
mundo
papel e dois pontos
e vírgula

sábado, 26 de abril de 2008

Robert Storey on Hilda Magazine




ROBERT STOREY on HILDA MAGAZINE


Robert Storey is a visual artist who works with sculpture and installation through which video becomes both an element in the art making process and its documentation. His practice responds to and interprets everyday experience, often exploring the darker undertones of life, highlighting mental and physical hurdles which we face daily, such as death and social isolation. His work manifests human presence whose traces are constantly prominent factors in his pieces which provoke sympathy and understanding in the viewer, acknowledging a common fate with the artist. The British artist studied Fine Art in Central Saint Martins and is currently preparing his first solo exhibition. Robert Storey lives and works in London.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

terça-feira, 22 de abril de 2008

William Carlos Williams & Marilyn Monroe


William Carlos Williams says SORRY.


This is just to say

I have eaten
the plums
that were in
the icebox

and which
you were probably
saving
for breakfast.

Forgive me
they were delicious
so sweet
and so cold.




Marilyn Monroe says THANK YOU.


























William Carlos Williams pede DESCULPAS.

Comi
as ameixas
que estavam
na geladeira

e que
você provavelmente
guardou
para o café-da-manhâ.

Perdoe-me
elas estavam um delícia
tão doces
e frias.



Marilyn Monroe diz OBRIGADO.


17 de fevereiro de 1962 / Sr. Volkman von Fuehlsdorff / Consulado Geral da Alemanha / 3450 Wilshire Boulevard / Los Angeles 5 / California / Estimado Sr. von Fuehlsdorff: / Obrigada pelo champanhe. / Ele chegou, eu o bebi, e fiquei mais feliz. / Novamente, obrigada. / Tudo de bom, Marylin Monroe.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Having a coke with you, Frank O´Hara




Having a coke with you (by Frank O´Hara)


is even more fun than going to San Sebastian, Irún, Hendaye, Biarritz, Bayonne
or being sick to my stomach on the Travesera de Gracia in Barcelona
partly because in your orange shirt you look like a better happier St. Sebastian
partly because of my love for you, partly because of your love for yoghurt
partly because of the fluorescent orange tulips around the birches
partly because of the secrecy our smiles take on before people and statuary
it is hard to believe when I’m with you that there can be anything as still
as solemn as unpleasantly definitive as statuary when right in front of it
in the warm New York 4 o’clock light we are drifting back and forth
between each other like a tree breathing through its spectacles

and the portrait show seems to have no faces in it at all, just paint
you suddenly wonder why in the world anyone ever did them
.................................................................................I look
at you and I would rather look at you than all the portraits in the world
except possibly for the Polish Rider occasionally and anyway it’s in the Frick
which thank heavens you haven’t gone to yet so we can go together the first time
and the fact that you move so beautifully more or less takes care of Futurism
just as at home I never think of the Nude Descending a Staircase or
at a rehearsal a single drawing of Leonardo or Michelangelo that used to wow me
and what good does all the research of the Impressionists do them
when they never got the right person to stand near the tree when the sun sank
or for that matter Marino Marini when he didn’t pick the rider as carefully
.................................................................................as the horse
it seems they were all cheated of some marvellous experience
which is not going to go wasted on me which is why I’m telling you about it




Tomar coca-cola com você (contextualização de Ricardo Domeneck)

é ainda mais divertido que ir a São Francisco, La Jolla, Tijuana, Tecate, Ensenada
ou ter o estômago revirado de enjôo na Madison Avenue em Nova Iorque
em parte porque nesta camisa laranja você me parece um São Francisco melhor mais feliz
em parte por causa do meu amor por você, em parte por causa do seu amor por vodca
em parte por causa das margaridas laranja fluorescente cercando os ipês
em parte por causa do mistério que nossos sorrisos vestem diante de gente e estatuaria
é difícil de acreditar quando estou com você que pode haver algo tão imóvel
tão solene tão desagradavelmente definitivo quanto estatuaria quando bem em frente
no ar quente das quatro da tarde em São Paulo nós vagamos em círculos um entre o outro
sem parar como uma árvore respirando por suas oftálmicas

e a exposição de retratos parece não ter qualquer rosto, só tinta
você de repente pergunta-se por que diabos alguém deu-se ao trabalho de fazê-los
.................................................................................eu olho
você e preferiria olhar você a todos os retratos do planeta com exceção
talvez do Auto-Retrato com corrente de ouro de vez em quando que está no MASP
a que graças aos céus você ainda não foi então podemos ir juntos pela primeira vez
e o fato de que você se move tão lindo resolve mais ou menos o Futurismo
assim como em casa eu nunca penso no Nu Descendo uma Escada ou
num ensaio um único desenho de Da Vinci ou Michelangelo que antes me boquiabria
e de que adianta aos Impressionistas toda a sua pesquisa
quando eles nunca conseguiam a pessoa certa para encostar-se à árvore ao pôr-do-sol
ou a propósito Marino Marini se ele não escolheu o cavaleiro com o mesmo cuidado
.................................................................................que o cavalo
é como se eles tivessem sido fraudados em alguma experiência maravilhosa
que eu não pretendo desperdiçar o motivo pelo qual estou aqui falando tudo isso para você




§

domingo, 20 de abril de 2008

Collabs w/ Jonas Lieder + Tetine + Eugen Braeunig

Equinox: a collaboration between Jonas Lieder & Ricardo Domeneck (2008)



text: Ricardo Domeneck
video: Jonas Lieder

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Mula: a collaboration between Tetine & Ricardo Domeneck
with visuals by Eugen Braeunig (2007)



texto: Ricardo Domeneck
música e voz: Tetine (Eliete Mejorado & Bruno Verner)
vídeo: Eugen Braeunig

terça-feira, 15 de abril de 2008

"Sintonia de nossa sincronia: Orides Fontela 1940-1998"

Orides Fontela nasceu em São João da Boa Vista, interior de São Paulo. Mudou-se para a capital paulista para estudar filosofia e publicou seu primeiro livro, chamado Transposição, em 1969, seguido de outras quatro coletâneas de poemas, compiladas em 2006 no volume Poesia Reunida 1969 - 1996, oito anos após a morte da poeta. É costume descrever o temperamento de Orides Fontela em notas biográficas como esta, além de certa lenda que já se fixou em torno de sua biografia, para logo em seguida descartar esta mesma biografia em prol da descrição de sua poesia "enxuta", "concisa", "cristalina". Esta descrição condiz realmente com a obra da poeta, e em seus poemas a primeira pessoa do singular está consistentemente exilada de seu verbo. Mas eu gostaria de pensar em uma outra forma de conexão entre obra e vida do poeta: não estariam ligados, neste caso, a pobreza física e material de Orides Fontela e seu despojamento estilístico, o próprio desnudamento de sua poesia? Pobreza, veja bem, de uma poeta que negou o adorno e embelezamento poético até suas últimas conseqüências, e escreveu preferir, como trocas, "Um fruto por um / ácido / um sol por um / sigilo / o oceano por um / núcleo // o espaço por uma / fuga / a fuga por um / silêncio//- riquezas por uma / nudez." Fala-se de "neosimbolismo" em sua poesia, e os "símbolos" freqüentes de sua poética, com "pássaros", "espelhos" e "rios" circundando o mundo, convidam a isto. Mas alguns de seus melhores poemas demonstram sua atenção lingüística de poeta do pós-guerra, em um momento histórico que exigia de seus símbolos a consciência de serem signos, de uma poeta que compreendia nutrir sua simbologia pela linguagem, que a filtrava.


Em Orides Fontela, o símbolo se faz signo, num movimento de mão dupla, em fluxo e refluxo, como se a linguagem poética, em sua capacidade múltipla de concretude e abstração, passasse a ter marés. Se Fontela está ligada por temperamento a poetas como Cecília Meireles e, por sua vez, a Cruz e Sousa, seu simbolismo "sígnico" aproxima-a também de um poeta como Wallace Stevens, que fez da apropriação do mundo pela consciência através da linguagem o jogo poético por excelência. Poderíamos pensar também na Henriqueta Lisboa de um livro como Além da Imagem, de 1963. Mas, se em Stevens este embate e organização do mundo pela consciência é assunto humano e apenas humano, sem sombra de transcendência, Orides Fontela manteve um fio místico em sua poesia, e seus livros possuem movimentos rotatórios, sofrendo enxugamento e pousando em concretude no chão do mundo no poema de uma página, para logo em seguida abandonar-se em certo ambiente etéreo e simbolicamente carregado no poema da página seguinte. Como se a poesia de Orides Fontela não se decidisse de forma definitiva entre a destruição do mundo por uma força centrípeta ou centrífuga. Seus poemas têm, em minha opinião, apesar da superfície polida de cristal, uma violência sem muitos paralelos na poesia do pós-guerra no Brasil. O mesmo tormento possa talvez ser sentido na prosa de Hilda Hilst, mas nesta outra mística a solução era o escárnio e a exuberância do dilúvio, enquanto em Orides Fontela o desértico daquele que jamais possuiu coisa alguma era preferível. Algo deste fluxo e refluxo pode ser sentido em vários poemas. Em "São Sebastião", do livro Helianto (1973), temos a concreção centrípeta do símbolo fazendo-se signo, do verbo fazendo-se carne, do mito ganhando corpo de sangue e osso. Em "Clima", do livro Alba (1983), tal via de mão dupla da linguagem se faz presente com força, abstração centrífuga, concreção centrípeta, signo, símbolo: linguagem. É neste livro, Alba, que acredito que Orides Fontela encontrou seu ângulo de equilíbrio. O livro é um ponto luminoso na década de 80 (assim como Asmas, de Ronaldo Brito, publicado em 1982). Poeta contemporânea, poeta do pós-guerra, Orides Fontela sabia escrever poesia com símbolos herdados de uma tradição milenar, mas informados em um mundo que já tivera os escritos de Saussure, Wittgenstein, Jakobson. Orides Fontela sabia que o silêncio não provinha da falta de respostas, mas de nossa incapacidade e limitação no momento de fazer as perguntas através da linguagem, cujos limites são os limites do nosso mundo, nas palavras de Wittgenstein.



Esfinge


Não há perguntas. Selvagem
o silêncio cresce, difícil.


É tentador mitificar a mulher que viveu como viveu e escreveu estes poemas, que mais parecem cubos de energia concentrada, esperando para explodir no olho do leitor. Seus poemas, à primeira vista tão simples, singelos, exigem a concentração e atenção daquele que pode sussurrar, como no poema-exórdio do livro Alba:


A um passo
do pássaro
res
piro.



Sim, a lucidez alucina. Morta em um hospital público em 1998, sem família, indigente como uma poeta, exatos cem anos depois da morte de Cruz e Sousa e o transporte de seu corpo para o Rio de Janeiro em um trem de carga, num vagão para animais, estas duas datas (1898 - 1998) encerram, para mim, o século XX da poesia brasileira. ---

Ricardo Domeneck



















segunda-feira, 14 de abril de 2008

sábado, 12 de abril de 2008

Transcontextualização para Gregory Corso



Contextualização para Gregory Corso.



Ontem à noite guiei um carro


Ontem à noite guiei um carro

sem saber guiar

sem possuir um carro

Guiei e derrubei feito boliche

pessoas que amava

... a 120 sobre o piche.


Parei em Atibaia

e dormi na banco traseiro

... excitado em minha nova vida.



Last Night I Drove a Car


Last night I drove a car

not knowing how to drive

not owning a car

I drove and knocked down

people I loved

...went 120 through one town.


I stopped at Hedgeville

and slept in the back seat

...excited about my new life.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Tradução inédita de Frank O´Hara

Song (Is it dirty) - vídeo de Joseph Fusco com poema de Frank O´Hara



Is it dirty
does it look dirty
that's what you think of in the city

does it just seem dirty
that's what you think of in the city
you don't refuse to breathe do you

someone comes along with a very bad character
he seems attractive. is he really. yes very
he's attractive as his character is bad. is it. yes

that's what you think of in the city
run your finger along your no-moss mind
that's not a thought that's soot

and you take a lot of dirt off someone
is the character less bad. no. it improves constantly
you don't refuse to breathe do you



Canção (Estará sujo)

Estará sujo
como se parece sujo
é o que você pensa na cidade

será que só parece sujo
é o que você pensa na cidade
você não se recusa a respirar recusa

alguém chega com um belo dum mau caráter
parece atraente. será mesmo. sim muito
ele é tão atraente quanto mau caráter. será. sim

é o que você pensa na cidade
passe seus dedos por sua mente sem musgo
isto não é um pensamento é fuligem

e você tira muita sujeira das pessoas
será menos mau o caráter. não. melhora constantemente.
você não se recusa a respirar recusa


(tradução de Ricardo Domeneck)

sábado, 5 de abril de 2008

Poeta que faz

Ao citar o dito-cujo de Mallarmé em resposta a Degas, de que a poesia se faz com palavras, não com idéias, a ênfase geralmente recai sobre o dueto “idéias/palavras”. Axioma usado ao longo do século XX à maneira do interesse de cada poeta: “The words of a dead man / Are modified in the guts of the living.” Pureza, servindo ao sonho simbolista da poesia/literatura como sistema hermeticamente fechado em si, independente de contextos, reverberações prismáticas que pressupõem a inércia uma vez lançados os dados. Ao mesmo tempo, talvez William Carlos Williams, afirmando que o poeta não diz, mas faz: máquina de palavras de seu poema. Machine à émouvoir? Possível armadilha de uma dicotomia entre o vates e o faber: entre a imagem romântica do poeta que diz o belo/significativo/transcendente e a profissão classicizante do poeta como artesão, craftsman, il miglior fabro?

Imagino a luz incidindo sobre o “faz/faz” e não sobre “idéias/palavras”. Possível uso para esta mallarmada em dias de HOJE seria a recusa do “texto-fantasma” pairando acima/além do texto na página, noção que transforma poemas na mera máscara do discurso de sua exegese, ou expressão pública de experiência privada. Jacques Roubaud: “O poema diz o que diz, dizendo-o”, fazendo da única paráfrase praticável de um poema a repetição do poema. Exegese: ipsis litteris. Aqui (aqui) a realidade da concretude da linguagem: não por crenças de mot juste/precisão, levando à ilusão naive de objetividade lingüística, como em machos dos Modernismos; nem “language charged with meaning to the utmost degree”, levando os desavisados a uma apoteose da palavra nos bem-dotados ou elefantíase semântica nos menos habilitados. Talvez possamos “dizer:escrever – ditar” que o trabalho poético com a linguagem seja coisação sobjetiva. Concretude da linguagem passa a funcionar como não-transparência do signo.

O que fazer, em vista disso, da possível participação política do poeta?

Numa "sociedade de corvos", há quem creia que basta bancar L´Albatros reloaded, poeta caminhando entre os dejetos da urbe num misto de asco e fascínio, crendo-se acima do luxo e do lixo, nacionalizando-se em espécie, ah! os bons poetas mortos, Chrysocyon brachyurus. Poeta bom é poeta morto, dizem os cinqüentões. Mas a ineficiência já comprovada da resistência externa por trincheiras duais de poetas que se crêem "acima de qualquer suspeita", as mãos lavadinhas com sabonete enquanto se acusa Moss de desenhar moustaches na Mona Lisa ou Bündchen de sapecar a bunda de Bastet. Poeta que “atravessa a rua como se atravessasse o Hades.”

Há, porém, a opção de resistência interna, tática de guerrilha lingüística, do poeta que faz, mais que o poeta que diz. Sem entregar-se a outro discurso em meio a discursos (falha do filho de lavouras arcaicas), mas empreendendo um curto-circuito no discurso por uma ação (a filha que despedaça com uma dança a mesa da autoridade, quando o espelho do discurso do pai pelo filho mal arranhou-lhe a superfície da tábua). Poesia-performance, poesia-intervenção. Veja abaixo um exemplo disto no poema “Qaeda, quality, question, quickly, quickly, quiet” de Lenka Clayton. Não me parece à-toa que um dos poemas mais inteligentes dos últimos X anos tenha sido feito por umA artista visual, assim como muitos dos poemas mais eficientes do pós-guerra foram feitos pelo músico John Cage. Não importa, eu creio, se she herself considera este trabalho um poema. Ao recompor em ordem alfabética o discurso de George W. Bush, a britânica Lenka Clayton agiu como poeta. Sem expressar qualquer eu, sem um texto-fantasma que paire acima de outro texto, sem a mera possibilidade de gabar-se por precisão lingüística, ela faz sua intervenção neste poema-performance.

Fragmento "A - Because" do trabalho “Qaeda, quality, question, quickly, quickly, quiet”, de Lenka Clayton:




Terminaria com um quote de Rosmarie Waldrop. Ao ser convidada por Charles Bernstein para um conferência da L=A=N=G=U=A=G=E poetry, na qual Bernsten pediu aos poetas que se concentrassem nas palavras de Percy Bisshe Shelley, de que "poets are the unacknowledged legislators of the world", e de George Oppen, de que "poets are the legislators of the unacknowledged world", ela respondeu:

"Mas eu não fico apenas perplexa como incomodada com nossas duas citações. Soa para mim como uma ressaca dos tempos em que o poeta ocupava uma posição sacerdotal. Mas em nosso tempo, a poesia não tem esta função institucionalizada, e eu tenho que dizer que não me importo. Ou será uma ambição masculina? Eu certamente não tenho o menor desejo de instituir a lei. Em meu ponto de vista, a escrita tem a ver com a descoberta de possibilidades mais que com codificação. Minhas palavras-chaves seriam exploração e manutenção: explorar a floresta, não pela madeira que pode vir a ser vendida, mas para entendê-la como um mundo e para manter este mundo vivo."

But I am not only astonished but uneasy with our two quotes. It sounds to me like a hangover from the times when the poet occupied a priestly position. But in our time, poetry has no such institutionalized function, and I must say I am not sorry. Or is it a male aspiration? I certainly have no desire to lay down the law. To my mind writing has to do with uncovering possibilities rather than with codification. My keywords would be exploring and maintaining: exploring a forest not for the timber that might be sold, but to understand it as a world and to keep this world alive.

É bom saber que ainda há tanto por fazer.

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