Seguindo para o que interessa, estive relendo a austríaca Christine Lavant esta semana. Descobri seu trabalho em uma antologia há alguns anos e comprei então um pequeno volume da editora Surkhamp, com uma seleção de seus poemas, organizada por Thomas Bernhard. Traduzi um de meus favoritos há algum tempo.
§
POEMA DE CHRISTINE LAVANT
Eu quero partir com os loucos o pão,
migalhas diárias do desespero grande,
também o sino em meio ao peito,
ali onde o pombo aninha-se
e tem seu refúgio minúsculo
no ermo sobre as águas.
Residi por anos como pedra
no chão das coisas.
Eu ouvi, porém, o sino
sussurrar teu segredo
nos peixes com asas.
Hei-de aprender a voar e nadar,
deixar o pedregoso sob as pedras,
aconchegar em madrepérola
a melancolia, elevar aflição, ira.
Minhas asas são mais velhas
que tua paciência, minhas asas
vão à frente da coragem
que tomou sobre os ombros o louco.
Eu quero partir com os loucos o pão,
ali no ermo assustador do pombo,
onde o sino triparte o grande desespero
ao som tríplice do teu nome.
(tradução de Ricardo Domeneck)
§
Ich will das Brot mit den Irren teilen,
täglich ein Stück von dem grossen Entsetzen,
auch die Glocke im Herzen,
dort, wo die Taube nistet
und ihre winzige Zuflucht hat
in der Wildnis über den Wassern.
Lange habe ich als Stein gehaust
am Grunde der Dinge.
Aber ich habe die Glocke gehört
leise von deinem Geheimnis reden
in den fliegenden Fischen.
Ich werde fliegen und schwimmen lernen
und das Steinerne unter den Steinen lassen,
die Schwermut betten in Perlmutter,
doch den Zorn und das Elend erheben.
Meine Flügel sind älter als deine Geduld,
meine Flügel flogen dem Mut voraus,
der das Irren auf sich nahm.
Ich will das Brot mit den Irren teilen
dort in der furchtbaren Wildnis der Taube,
wo die Glocke das grosse Entsetzen drittelt
zum dreifachen Laut deines Namens.
Christine Thonhauser nasceu em Lavanttal, na Áustria, em 1915, assumindo o nome do vale onde cresceu (Lavant) como seu nome de poeta. Recém-nascida, ainda com poucas semanas no mundo, sofre o primeiro caso de escrófula que, nos anos seguintes e por toda a sua vida, a levaria ao hospital, desenganada inúmeras vezes, sofrendo ainda de tuberculose e casos recorrentes de pneumonia e outras infecções, que a deixariam, no fim da vida, praticamente cega e surda. Sua infância e adolescência seriam marcadas pela presença de médicos, passagens por hospitais e a promessa de uma vida curta. No entanto, contra todas as expectativas, a poeta sobreviveria a este período.
Começa a escrever no início da década de 30. Uma depressão, causada em grande parte pela vida difícil, pobre e marcada pela doença, mas piorada pela rejeição de seus romances por editoras da época, leva-a à primeira passagem por um hospital psiquiátrico, em 1933, em Klagenfurt. Esta experiência viria a ser descrita no romance Aufzeichnungen aus einem Irrenhaus (Relatórios de um hospício), de publicação póstuma. As primeiras publicações vêm após o fim da Segunda Guerra, com a novela Das Krüglein e a coletânea de poemas Die unvollendete Liebe, em 1949. Em 1954, a poeta recebe o prestigioso Georg-Büchner-Preis (Prêmio Georg Büchner), publicando nos anos seguintes as coletâneas Die Bettlerschale (1956), Spindel im Mond (1959), Sonnenvogel (1960), Der Pfauenschrei (1962) e Hälfte des Herzens (1967), além de novelas e coletâneas de contos. Sua obra seria reunida em 1972, após a poeta receber o Prêmio Nacional de Literatura da Áustria. No entanto, a vida da poeta seguia caótica e difícil. Nos dez últimos anos de sua vida, a poeta passaria entre hospitais e clínicas psiquiátricas, morrendo em 1973.
Sua poesia mística, com intenso tom religioso, é de difícil circulação nos países de língua alemã, território em que a maior parte dos poetas abandonou tal pesquisa poética. Em um período que viu a poesia austríaca, por exemplo, retomar certas estratégias das vanguardas germânicas, em especial a dos dadaístas de Zurique e Berlim, a poesia mística de Christine Lavant, baseada em um trabalho fortemente metafórico, acaba parecendo fora de sintonia com o seu período histórico. No entanto, poderíamos ver seu trabalho, como o de Ingeborg Bachmann ou mesmo o de Paul Celan (o inicial, pelo menos) e o de Rose Ausländer, como retomadas de certas pesquisas de expressionistas austríacos como Georg Trakl. São poetas que sabem muito bem que a escrita de uma poesia órfica custa algumas visitas ao Hades.
Esta pesquisa correria paralela à de poetas bastante diferentes, como Ernst Jandl e Erich Fried, ou poetas associados ao Grupo de Viena, como H.C. Artmann e Gerhard Rühm, que resgataram certas pesquisas dos dadaístas e construtivistas do início do século. A poética de Friederike Mayröcker parece-me funcionar como ponte entre estas pesquisas, muitas vezes opostas.
Talvez seja mais fácil encontrar tal trabalho, no Brasil, entre os primeiros modernistas, como Cecília Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima e Henriqueta Lisboa. No pós-guerra brasileiro, talvez possamos mencionar Dora Ferreira da Silva e Hilda Hilst. Se quisermos sair do território poético e literário, poderíamos também dizer que se trata da pesquisa est-É-tica de cineastas como Krzysztof Kieślowski e Andrei Tarkóvski.
Nos momentos de maior força, Christine Lavant mantem acesa a luz de uma poesia que assume suas metáforas como método de demonstração da fé na subsistência da Máquina do Mundo sobre nossas cabeças, em tempos de teoria do dessacralizado. Seu uso de metáforas, baseadas ainda na sonoridade de uma poesia marcada por aliterações e assonância, está de acordo com sua est-É-tica, eu diria kierkegaardiana, da fé como salto no escuro. O trabalho metafórico tem, aqui, uma função específica e essencial. Não creio, porém, que seja necessário ser católico, como a poeta, para apreciar o belo trabalho de que é capaz com sua língua.
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quinta-feira, 11 de março de 2010
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