Este mês ocorreu o centésimo-primeiro "Dia Internacional da Mulher". No Brasil, costuma-se há algum tempo fazer certo furdunço hipócrita a respeito. Trata-se do dia em que um dos países mais sexistas do planeta lava um pouco de sua consciência, antes de retornar para o rebolar de bundas na televisão. Debater no Brasil a questão de gênero, especialmente a relação GENDER/GENRE, é imensamente difícil. O debate esbarra em muita ignorância e preconceito, poderíamos dizer até em certo pavor, invariavelmente vindo de escritores muito ciosos de sua sonhada e idolatrada universalidade, temendo que este debate signifique pura e simplesmente a defesa de poetas sem talento, mas que se encaixam em alguma minoria. Não se trata disso. Insisto: não se trata de colocar a política acima da poética. Não se trata de alegar que TODOS deveriam lidar com estas questões. Não se trata de abandonar o trabalho lírico, ou deixar de escrever bons e belos poemas de amor. Não se trata de deixar de ler poetas porque foram fascistas ou racistas, ainda que eu acredite sim que isto pode influir e determinar a escrita, mesmo de bons autores.
(Creia-me, estes disclaimers todos são necessários, pois há sempre os que insistem em não entender do que estamos falando, especialmente os zeladores e porteiros do cânone.)
Nunca deixarei de ler Ezra Pound, mas sei que suas tendências políticas estão implícitas até nos gigantescos e imprescindíveis Cantos. Sempre amarei o trabalho poético brilhante de Gregório de Matos, como no soneto "Triste Bahia", um dos meus poemas favoritos em língua portuguesa, mas não quero nem posso me esquecer do contexto esclavagista em que seu trabalho foi escrito. Se alguém, algum dia defender que os filmes de Leni Riefenstahl deveriam ser queimados, eu seria o primeiro a correr em defesa da preservação dos filmes... mas eu não deixo nem me canso de insistir em afirmar que os filmes de Leni Riefenstahl são fascistas e provas cabais de sua adesão à ideologia nazista, assim como acredito ser de grande leviandade est-É-tica defendê-los simplesmente por sua "Beleza", ignorando suas implicações, dizendo que "sua mensagem não importa".
Os defensores da "Beleza" acima de qualquer coisa me parecem de uma ingenuidade perigosa. O que queremos é DEBATE, não uma Inquisição. Portanto, trata-se de investigar como alguns artistas textuais e visuais têm lidado com estas questões, sem abrir mão da qualidade poética e da inteligência crítica. Na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., tentamos participar do debate de forma a colaborar com uma discussão mais adulta e responsável sobre isso, apresentando o trabalho de poetas e artistas como Susana Thénon, Harryette Mullen, Mona Hatoum, Adília Lopes, Lyn Hejinian, Rosmarie Waldrop, Pipilotti Rist, Nathalie Quintane, Lenka Clayton, Diane di Prima, entre outras.
Trata-se, por fim, de buscar um trabalho crítico ainda mais complexo, um trabalho crítico que comece e prime pela FORMA, mas que não seja preguiçoso a ponto de ignorar a FUNÇÃO e o CONTEXTO. Sim, é mais trabalho ainda. Não se trata de facilitar o trabalho crítico, mas de torná-lo ainda mais complexo. Não se trata de sociologia, como muitos praticam, tornando a política mais importante que a poética. Trata-se de est-É-tica.
Nesta postagem, gostaria de apresentar um trabalho da norte-americana Dara Birnbaum, que revi há pouco tempo, estimulando-me a retornar a este espinhoso e desagradável debate e questionamento.
Hochgeladen von merzboy. - Sieh weitere Film & TV Videos.
Dara Birnbaum - "Technology Transformation: Wonder Woman" (1978), 5 minutos.
Trata-se da peça "Technology Transformation: Wonder Woman", de 1978, um trabalho não literário, mas visual, um "clássico" da videoarte, talvez o mais conhecido da nova-iorquina Dara Birnbaum, nascida em 1946. A escolha é apropriada, eu creio, para compreendermos algumas das estratégias mais interessantes de algumas artistas e autoras.
No trabalho de Dara Birnbaum, esta se apropria de imagens da cultura televisiva e pop, para reeditá-las, recontextualizando-as e usando estas imagens para expor e explicitar o que antes estava imposto e implícito. Podemos ligar a prática, por exemplo, às colagens da dadaísta alemã Hannah Höch (1889 - 1978).
colagem de Hannah Höch
Pensar que os poetas e artistas ligados ao Cabaret Voltaire e às revistas DADA e Merz estavam apenas interessados em "novidades estilísticas" é distorcer aspectos determinantes do trabalho de homens e mulheres como Hugo Ball, Tristan Tzara, Hans Arp, Hannah Höch, Raoul Hausmann, Kurt Schwitters, Sophie Taeuber, Richard Huelsenbeck, Emmy Hennings, John Heartfield ou Hans Richter. Além disso, sua poética era muito menos "pró-utópica" que "contra-distópica", operando em plena Grande Guerra.
No pós-guerra, muito desta est-É-tica é retomada pelos poetas do Lettrisme parisiense (Isidore Isou, François Dufrêne, Gil J. Wolman, etc) e do Grupo de Viena (H.C. Artmann, Gerhard Rühm, entre outros), e essa prática de "apropriação", que podemos ver nas colagens de Hannah Höch e no vídeo de Dara Birnbaum, pode também ser conectada à técnica do détournement, da Internacional Situacionista.
Guy Debord, excerto de "Réfutation de tous les jugements, tant élogieux qu'hostiles, qui ont été jusqu'ici portés sur le film 'La société du spectacle" (1975)
Encontramos paralelos poéticos, ainda que de forma distinta, em certas reescrituras de Ana Cristina Cesar (1952 - 1983) para poemas de Jorge de Lima (1893 - 1953), ou de Adélia Prado (n. 1936) para poemas de Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987); trabalhos textuais e de colagem de Jac Leirner (n. 1961); assim como, recentemente, em certos poemas como "Corpos simultâneos de cisne", de Lu Menezes (n. 1948) ou "Sereia a sério" e o dos versos iniciais "só / me consolaria: / o ejetor de teias / do homem-aranha", de Angélica Freitas.
Quanto ao uso de novas técnicas e tecnologias para este questionamento artístico, penso nas palavras de Marjorie Perloff:
"One may, as do the bulk of 'creative writing' teachers and students in workshops across the country, turn one's back on contemporary technology and write 'personal' poems in which an individual 'I' responds to sunsets and spiders and moths flickering on windowpanes or remembers a magical incident that occurred on a fishing trip with Father. Or one can take on the very public discourses that seem so threatening and explore their poetic potential."
:
Pode-se, como faz a maioria dos professores e estudantes de "criação literária" em oficinas do país todo, dar as costas à tecnologia contemporânea e escrever poemas "pessoais" em que um "eu" individual responde ao pôr-do-sol e aranhas e mariposas brilhando em janelas ou lembra de um incidente mágico numa pescaria com Papai. Ou podemos enfrentar os próprios discursos públicos que parecem tão ameaçadores, explorando seu potencial poético." Marjorie Perloff, tradução minha.
Este debate é inevitavelmente desagradável, pois trata-se da tentativa, por parte destes artistas, de desmascarar o que lhes parecem certas ilusões, das quais não queremos abrir mão. Pois, talvez não se trate tanto da pergunta se há realmente, como exemplos mais citados, uma escrita feminina, negra ou homossexual, mas de demonstrar como algo ou muito do que se chama de universal é, em verdade, literatura masculina, branca e heterossexual. Tudo? Não. Mas basta percorrer os botecos da Vila Madalena, em São Paulo, para conhecer alguns expoentes desta última, muitos surgidos na década de 90. Como disse a escritora Andréa del Fuego, de forma apta e concisa ao ser questionada se havia uma "literatura feminina", em entrevista ao Programa Entrelinhas, da TV Cultura: "Mas existe literatura de hominho também, vai", ironizando os temas recorrentes, como "o cara que não come ninguém", etc. Pense em algo como os "universais" Jack Kerouac, John Fante, Charles Bukowski, Rubem Fonseca e outros exemplos tão famosos de expoentes da "Literatura Universal". Mas também pretendo seguir lendo estes bons autores.
Quando passei a me interessar pelo pensamento crítico sobre o trabalho do poeta ou de qualquer escritor, a partir da tríade forma, função e contexto poéticos, seguia, por exemplo, a filosofia da linguagem de Wittgenstein, com proposições como a de que "o significado de uma palavra é seu uso na língua", negando essencialismos genéricos, imutáveis e idealizados. Perguntei-me à época se podia ser coincidência que os poetas e críticos em que encontramos com frequência esta maior consciência contextual, uma fidelidade à historicidade do fazer poético e a negação de cartesianismos abstratizantes, são em grande parte mulheres, como, por exemplo, Gertrude Stein, Clarice Lispector, Rosmarie Waldrop, Lyn Hejinian, Hilda Hilst, Susan Howe, Marjorie Perloff, Ana Cristina Cesar, Nathalie Quintane, Lygia Clark, Mona Hatoum, etc; homossexuais, como Frank O´Hara, Pier Paolo Pasolini, John Ashbery, John Cage, Roberto Piva, Ludwig Wittgenstein, Roland Barthes, Pedro Almódovar, José Leonilson, entre outros; assim como o questionamento de certos parâmetros literários eurocêntricos que vinha de homens como Jerome Rothenberg, George Quasha, Ricardo Aleixo e dos estudos de Antônio Risério, sobre a poesia de ascendência africana, e de Sérgio Medeiros sobre a poesia indígena. Trata-se de uma pergunta, não de uma asserção. Quem estiver (de maneira legítima) interessado apenas no trabalho formal do poeta, sinta-se livre para abster-se de qualquer resposta.
Em 2008, preparei uma postagem sobre a britânica Lenka Clayton para a Modo de Usar & Co., a partir de sua peça "Qaeda, quality, question, quickly, quickly, quiet", de 2004.
Lenka Clayton, excerto de "Qaeda, quality, question, quickly, quickly, quiet" (2004)
Na época, lembro-me de ter tido um debate muito interessante e estimulante com Dirceu Villa a respeito, um poeta de minha geração que possui um trabalho formal preciso, sem abandonar a preocupação com o contexto em que insere este trabalho formal, ainda que recorramos a práticas distintas. Villa alertava-me para o fato de que, em 1000 anos, quando George W. Bush for uma nota-de-rodapé constrangedora para a nossa época, o trabalho de Lenka Clayton deixaria de fazer sentido. É realmente possível. O que eu afirmaria é o seguinte: que, no momento em que George W. Bush for esquecido, a técnica de Clayton, o que ela FEZ nesse vídeo, poderá sugerir procedimentos interessantes e úteis para que algum poeta, em 1000 anos, possa lidar também com o bufão político perigoso de sua própria época. Por que ainda lemos o "Epigrama" em que Ósip Mandelshtam (1891-1938) satiriza Stálin? O poeta russo tem textos muito melhores, muito mais interessantes. Mas eu diria que, quando Stálin for mais um nome da longuíssima lista de ditadores genocidas do século XX, algum poeta do futuro possa ainda encontrar, neste poema, estratégias para satirizar o ditador genocida governando seu país do futuro. Acabando, provavelmente, também em um campo de trabalhos forçados, como Mandelshtam.
O poeta Érico Nogueira também nos alerta com frequência para os perigos deste debate. Ele mesmo defende por vezes a desimportância do contexto para o trabalho formal, ainda que sua prática poética demonstre que possui, na verdade, muita consciência contextual. E digo isso discordando de seu posicionamento crítico e político, mas respeitando (e muito) seu trabalho poético. O debate é possível.
Há realmente perigos inúmeros que cercam o trabalho poético e crítico ao enveredar por estas sendas pedregosas. Muitos se aproveitam deste debate para defender poéticas frouxas, auto-complacentes e tão perigosas quanto os problemas que combatem. Além disso, eu jamais exigiria "posicionamento político" de um bom poeta que já esteja nos ajudando tanto com seus lindos poemas de amor ou outras pesquisas necessárias, sobre outras questões espinhosas. Mas é possível também lidar com estas questões políticas, poetas sempre o fizeram, pois eu penso na inteligência com que Catulo e Marcial ou, em nossa época, Bertolt Brecht, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto, Glauber Rocha, Pier Paolo Pasolini e Harryette Mullen, entre tantos outros, lidaram com elas, sem abandonar a qualidade artística. Minha tendência é acreditar que trabalhos como Santa Joana dos Matadouros (1929), Poesia Liberdade (1947), O cão sem plumas (1950), Terra em transe (1968), Salò ou 120 Dias de Sodoma (1975) e Muse & Drudge (1995) serão sempre atuais, não apenas por suas excelências formais, mas também porque enfrentam problemas que têm se mostrado recorrentes e repetitivos, infelizmente.
Se eu tivesse que resumir a questão, com uma conscientemente perigosa proposição-tentativa, eu diria o seguinte:
É como se a estes poetas importasse menos o que chega aos ouvidos do Anjo de Rilke, do que o que passa pelos olhos do Anjo de Benjamin.
Ou, como escrevi no ensaio "Ideologia da percepção", iniciando minha carreira de acumular desafetos:
"Assim, todo poeta carrega em si os condicionamentos de sua estrutura individual, movendo-se num contexto coletivo, com problemas pessoais interligados a questões coletivas, e o que cada um pode fazer é, consciente de suas condições e de como elas influem ideologicamente em seu discurso, tentar sua contribuição pessoal, "what he alone must make", novamente nas palavras de Cage. Mas, sintonizado em sua gregariedade, pois ninguém está à frente de seu tempo, já dissera Gertrude Stein, outra context sensitive poet, ainda que alguns pareçam tentar a proeza de estar aquém dele. E cabe-nos, despertos para este condicionamento ideológico de nossa construção coletiva / individual / coletiva / individual da tal de realidade, em fluxo e refluxo, mantê-la aberta aos olhos de todos, sabendo que só podemos contemplar o mundo com nossos próprios olhos, conscientes, porém, desta "ideologia da percepção". Expor o imposto, sem contribuir com os jogos de poder e dominação presentes também em formas literárias.
Ou, na formulação de Susan Howe, "whose order is shut inside the structure of a sentence?"
O debate é desagradável, eu sei, mas necessário, eu creio.
§
DEDICADO à memória de Emmeline Pankhurst (1858 – 1928), Emma Goldman (1869 – 1940), Patrícia Galvão (1910 - 1962) e também a todo poeta que "no centro da própria engrenagem / inventa a contra-mola que resiste".
.
.
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário