quarta-feira, 3 de março de 2010

Uma revista alemã, um italiano e mais poetas

Na semana passada, o moço e eu decidimos fazer algo diferente e tomamos o trem para o lado extremo-ocidental de Berlim.

"Extremo" é apenas modo de dizer. Eu moro no antigo lado oriental da cidade, em Prenzlauer Berg, e só me mexo para o lado ocidental quando visito o moço em Neukölln. Berlim permanece sendo uma cidade extremamente descentralizada. Talvez sempre tenha sido, mas o muro acabou intensificando a existência de muitos centros distintos. Quem mora na West-Berlin raramente perambula pela Ost-Berlin e vice-versa. O meu centro continua sendo a Alexanderplatz e eu quase nunca vou para bairros do interior ocidental da cidade, como Charlottenburg ou Schöneberg. A famosa Bahnhof Zoo (Estação Zoo), no extremo oeste da cidade, é como outra cidade. Berlim é esquisitíssima neste aspecto. Ela não só muda completamente entre o verão e o inverno. 20 anos sem o muro não foram suficientes para fazer desta Frankenstein urbana um homem-cidade vitruviano.

Pois então, o moço e eu pegamos e trem e descemos na Savignyplatz, numa região com várias livrarias boas. Após visitar algumas, chegamos à melhor livraria da cidade, em minha opinião, a Autorenbuchhandlung (Livraria dos autores), com a mais impressionante estante de poesia da cidade, de uma qualidade que só em Barcelona e Buenos Aires cheguei a ver, mesmo que tenha me impressionado com algumas livrarias em São Paulo nesta última visita.

Eu comprei uma antologia do poeta coreano Ko Un (n. 1933) e o moço comprou o número 73 daquela que me parece uma das melhores revistas de poesia da Alemanha --- Schreibheft: Zeitschrift für Literatur. A revista é editada por Norbert Wehr e é semestral, dedicando cada número com frequência a poetas. Números anteriores trouxeram Ezra Pound, Jorge Luis Borges, Joan Brossa, Inger Christensen, Ghérasim Luca, William Gass, Daniil Charms, entre outros. O número 64 foi inteiramente dedicado a Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.


Este último número, de setembro de 2009, traz na capa um jovem e bonito Pier Paolo Pasolini (1922 - 1975), motivo pelo qual o moço a comprou, obcecado que é por Pasolini, um de seus heróis, a figura central que nós dois compartilhamos. Com frequência, o moço desconhece meus heróis, em geral poetas, e eu desconheço os seus, em geral romancistas. Isso tem mudado: por causa dele, comecei a ler autores como Stanislaw Lem e William Burroughs, por minha causa ele começou a ler poetas como Frank O´Hara e H.C. Artmann, além de brasileiros como Clarice Lispector. Dei a ele uma tradução alemã de A hora da estrela (1977) e ele se apaixonou, como eu já esperava. O Pasolini que ele ama é o cineasta, mas este número 73 da Schreibheft traz alguns de seus lindos poemas traduzidos para o alemão, além de ensaios que discutem o sofisticado poeta que foi Pier Paolo Pasolini.

Non è di maggio questa impura aria
che il buio giardino straniero
fa ancora più buio, o l'abbaglia

con cieche schiarite... questo cielo
di bave sopra gli attici giallini
che in semicerchi immensi fanno velo

alle curve del Tevere, ai turchini
monti del Lazio... Spande una mortale
pace, disamorata come i nostri destini,

tra le vecchie muraglie l'autunnale
maggio. In esso c'è il grigiore del mondo,
la fine del decennio in cui ci appare

tra le macerie finito il profondo
e ingenuo sforzo di rifare la vita;
il silenzio, fradicio e infecondo...

Tu giovane, in quel maggio in cui l'errore
era ancora vita, in quel maggio italiano
che alla vita aggiungeva almeno ardore,

quanto meno sventato e impuramente
sano
dei nostri padri - non padre, ma umile
fratello - già con la tua magra mano

delineavi l'ideale che illumina

(ma non per noi: tu morto, e noi
morti ugualmente, con te, nell'umido

giardino) questo silenzio. Non puoi,
lo vedi?, che riposare in questo sito
estraneo, ancora confinato. Noia

patrizia ti è intorno. E, sbiadito,
solo ti giunge qualche colpo d'incudine
dalle officine di Testaccio, sopito

nel vespro: tra misere tettoie, nudi
mucchi di latta, ferrivecchi, dove
cantando vizioso un garzone già chiude

la sua giornata, mentre intorno spiove.


--- primeiro movimento de Le ceneri di Gramsci (1956) ---


O número é dividido entre Pasolini e o poeta norte-americano Robert Duncan (1919 - 1988), com poemas traduzidos para o alemão, traduções de ensaios, de parte de sua correspondência com Denise Levertov (outra poeta ligada à Black Mountain College) e uma longa entrevista, em que Duncan discute seu trabalho e também o de Olson, Cage, Ginsberg, Pound, Whitman, Levertov, Creeley, etc. Quitute. Vou terminar esta postagem, fazer outro café e voltar para a leitura.

Often I Am Permitted to Return to a Meadow

as if it were a scene made-up by the mind,
that is not mine, but is a made place,

that is mine, it is so near to the heart,
an eternal pasture folded in all thought
so that there is a hall therein

that is a made place, created by light
wherefrom the shadows that are forms fall.

Wherefrom fall all architectures I am
I say are likenesses of the First Beloved
whose flowers are flames lit to the Lady.

She it is Queen Under The Hill
whose hosts are a disturbance of words within words
that is a field folded.

It is only a dream of the grass blowing
east against the source of the sun
in an hour before the sun's going down

whose secret we see in a children's game
of ring a round of roses told.

Often I am permitted to return to a meadow
as if it were a given property of the mind
that certain bounds hold against chaos,

that is a place of first permission,
everlasting omen of what is.


Robert Duncan

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