quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Vida longa à poesia pura

Vida longa à poesia pura

Escuta aqui, nós, poetas aguados,
caminhamos hoje
por entre plantas de nomes
mui bem catalogados,
mas os quais desconhecemos,
e assim confundimos muito
bem-me-queres e amores-dos-homens,
chamamos de taráxaco a calêndula,
e colhemos com frequência
a amargosa por malmequer.
Eu, por mim, preferiria
saber distinguir entre a hortelã
e a cidreira, esta e a camomila,
para salvar-me de ressacas quiçá
vindo de buracos e valas malsãs,
onde meninos esguios, longilíneos
feito enguias, seguram os limões
nada luminosos
de uma ex-caipirinha ou tequila.
Eis aqui minha ação
de graças,
poetas laureados, queridos
antepassados cosmopolitas
do último século,
vossa pureza de linguagem
salvou-nos
desses incômodos detalhes,
chegamos enfim ao universal,
e sabiá, busardo ou melro,
cantamos agora
apenas o pássaro
abstrato no galho
de uma árvore
que não sabemos nomear.


.
.
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9 comentários:

Jorge disse...

whole lotta love. apesar de estar numa fase coentro.

João Filho disse...

Assim vc me esculhamba, seu Ricardo, eheheheh Eu sou um poeta da "poèsie pure", brincadeira. Eu adoro a poesia pura de um Jorge Guillén, mas captei conteúdo-msg-e-forma. Este seu poema é uma "ars poetica", e muito bom!!! Uma provocação ou constatação, não sei: há um elemento (lado) de sua "militância" est-É-tica que se coaduna com o encontrado na poesia pura: a função espiritual, o pão para ao espírito alimentando o leitor, que se agarra ao poema e "salva-se", sua série aqui no blog Poemas que continuam salvando minha vida, seria um exemplo disso. Por sinal, adoro essa série. É um tema que desejo ainda desenvolver, apenas o constatei aqui.Se ainda estiver em Portugal beba um bagacinho por mim.
Beijos,

reuben disse...

cara, que poema! bateu na veia.

Anônimo disse...

Para mim é, de longe, a melhor poesia escrita (que li) deste século...
Márcio

Antônio LaCarne disse...

cheguei aqui no seu blog através do blog da angélica freitas.

surpreendido com seus poemas, parabéns.

abraço.

vodca barata disse...

ric, te fode.

Janara Soares disse...

Obrigada, Márcio. É bom respirar certos ares.

Ricardo Domeneck disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ricardo Domeneck disse...

Queridos,
agradeço as palavras, os elogios exagerados, e, principalmente, a leitura pura e simples.
Lembro aos amigos que eu próprio já esposei veleidades de "poésie pure", pratiquei-a canhestramente, basta ler a primeira parte do meu livro "Carta aos anfíbios". Deixo-os com um exemplo, poeminha de que gosto muitinho ainda.

Os materiais, a lição: cinco variações

I.

pés úmidos em terra seca:
montar um cavalo morto
enregela-nos o movimento.

(beijo ao caminho, à poeira)

o fértil
revolve os olhos
e mal contém-se
em coice:

pata impressa
em ervas.

II.

conglomerado sem esforço,
o corpo reunido vinga-se
do ar, dispersão contínua.

(e despenca-me em chuva)

o úmido
opõe ao vento
o núcleo
do seu aposento:

o corpo persevera
no extenso.

III.

escalar-se em chamas,
deitar no próprio corpo
como na última cama.

(prefiro o consumo do outro)

nosso palpável
peito unido
lambe o milagre
da carne única:

a trindade
opera-se grávida.

IV.

fala e água: ao chocarem-se
em continentes de carência,
o conteúdo dita a forma.

(o líquido modela o copo)

o sangue
procura deter-se
num trecho de pele
um instante:

toque do anátema,
farol, ex-amante.

V.

consciência purgada na falta
que ama: enfim, só se é cauto
em sins de olhos fechados.

(fé do absurdo no obstáculo)

o cavaleiro
executa
no escuro
o movimento.

sem aposta de páscoa:
um cavalo, um moinho, um vento.

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