domingo, 24 de junho de 2012

A função social do poeta




A função social do poeta

         
                                           a Daniel Saldaña París


A Perse e Parra, o poeta
funciona tal qual mala 
conciencia de la época.
Pergunto, se os traduzo:
consciência má? Pesada?
Peso na ou da cuja dita?
Para uns, trata-se do id
dos ânus do tempo, R.G.
da lama entre as linhas
de mapas. Quiçá raio-X
genérico dos portadores
dos XX & XY de um país.
Outros estão mui certos
de que esta sua fatura
aumenta deveras o PIB,
ou que sua voz é o GPS
dos perdidos en la noche
oscura. Quando juntos,
dão-se ares de BNDES.
Entre os egos, talvez
seja o poeta o super-
ego do seu momento,
como uma tia chata
que ao invés de dizer
em alto e bom tom:
"coma logo as ervilhas",
recorre a vários métodos
obscuros de persuasão,
"esta ervilha é um mundo",
"esverdeadas dar-te-ão
eterna vida", "este legume
é como o planeta coberto
de gramíneas", "das vagens
às várzeas da tua louça",
"estas trezentas soldadas
são espartanas, faz agora
do teu prato as Termópilas",
"ervilha minha senil que
te comeste, tão logo desta
janta descontente", "pelo
menos um fruto em teu
ventre, solteirona". Ainda
por cima nos tantaliza
com suas tautologias:
"a ervilha é verdinha", etc.
É óbvio que os bar-roucos
prefeririam: "Ervilha-Fénix
das aias do escarra-velhos
do Himalaia, iactantia est".
Pois se alguns há séculos
insistem em lembrar-nos 
que o céu é azul, pássaros
voam e as flores se abrem
no mês de ____ (escolha,
leitor, o seu hemisfério). 
Tia chata, recorra à sátira,
pois os subnutridos não
são moucos só ao riso:
"Não querias comer Elvira?
No interregno, às ervilhas!"
Esqueçamos os legumes.
Os mortos-vivos só dão
ouvidos a energúmenos.
Por mim, possuísse
algum alto-falante
potente ou bastante,
esgoelaria: "devorem
logo toda essa merda
no prato, nos poupem
o trabalho", mas ao fim
sei que ninguém
comeria, anyway.
É como passar a vida
a buscar novas formas
para olha o aviãozinho.
Ai, de Sísifo,
já me basta
o phallus.
Dirão que um poeta,
ao dizer isso, pratica
a auto-sabotagem.
Ora encerremos,
dessarte, com algo
ambíguo e suficiente
para as meditações
em nossos próximos
Minutos de Sabedoria:
"Poeta: geringonça
entregue a ciclos
circadianos sem
qualquer zeitgeber."
Cansa-me a beleza.



Rocirda Demencock, a rolar no chão rindo da cara de Ricardo Domeneck,
Bebedouro - São Paulo, 24 de junho de 2012.


§

Nota escrita a 15 de julho de 2012:


Este poema surgiu ao ler uma citação do poeta chileno Nicanor Parra na página (Tumblr) do poeta mexicano Daniel Saldaña París, a quem dediquei este poema. A citação era: en un mundo desprovisto de racionalidad / la poesía no puede ser otra cosa / que la mala conciencia de la época / lo demás es literatura grecolatina”, de um poema escrito em 1992. Ao publicar aqui este poema, as primeiras linhas eram: "Parra escreveu: o poeta / funciona tal qual mala / conciencia de la época", em referência direta ao chileno. Naquele dia, o poeta gaúcho Marcus Fabiano Gonçalves chamou-me a atenção para o fato de que o poeta francês Saint-John Perse dissera coisa muito parecida em seu discurso em Estocolmo, ao aceitar o Prêmio Nobel em 1961: Face à l'énergie nucléaire, la lampe d'argile du poète suffira-t-elle à son propos? Oui, si d'argile se souvient l'homme. Et c'est assez, pour le poète, d'être la mauvaise conscience de son temps.” Decidi incorporar Perse ao poema, passando a iniciar o texto com o aliterativo "A Perse e Parra, o poeta", mantendo no entanto a citação em castelhano do latinoamericano, por ser mais imediatamente compreensível a um leitor lusófono, e porque me interessa o jogo com mala, falso cognato em português e espanhol.

.
.
.

7 comentários:

Fabio disse...

Muito!

Angélica Freitas disse...

muito bom.

Marcus Fabiano disse...

ANTECEDENTES DA MÁ CONSCIÊNCIA

Nicanor Parra, em 1992:
“en un mundo desprovisto de racionalidad / la poesía no puede ser otra cosa/ que la mala conciencia de la época / lo demás es literatura grecolatina.”

(Lear Rey & Mendigo)

* * *
Saint-John Perse, em 1961:

“Face à l'énergie nucléaire, la lampe d'argile du poète suffira-t-elle à son propos? Oui, si d'argile se souvient l'homme. Et c'est assez, pour le poète, d'être la mauvaise conscience de son temps.”

(Discurso de Estocolmo, recebimento do Prêmio Nobel)

Ricardo Domeneck disse...

Obrigado, Angie e Fábio!

Marcus, querido,

É muito bonito mesmo o discurso de Perse, mas me pergunto se Parra se burlaria de certo tom talvez ainda grandioso para o papel do poeta, mesmo que nos lembrando da argila, na fala de Perse. Dizendo o mesmo, sabendo ou não do discurso de São João, os dois me parecem de sensibilidades tão distantes. De qualquer forma, não sou especialista algum em Perse. Confesso que o que mais me atrai na versão do Parra, mesmo sem ter aparecido no meu poema, é aquele complemento: "lo demás es literatura grecolatina." Senão, a gente não fica com um daqueles adágios como as "antenas da raça", de Pound?


beijos, queridos!

RD

Sebastião Ribeiro disse...

Engraçado como vezoutra entro neste blog e saio com um sorriso de lagato, sabendo que algo se depositou, ou como se houvesse um lembrete.

Valeu, Ricardo.

Antônio disse...

Marervilha, Ricardo!

Marcus Fabiano disse...

Querido Ricardo,
Há alguns anos eu me pus a ler a obra completa de Nietzsche (sugiro a edição Coli e Montinari e, no Brasil, as ótimas traduções de Paulo Cesar de Souza). Hoje considero Nietzsche um tipo mais sofisticado de literatura moral, uma espécie de Voltaire tardio, suscetível, infelizmente, a ser apropriado como “filosofia” por muitos que pretendem usurpá-la sem nunca a terem realmente frequentado com a disciplina e o estudo extensivos exigido (entre eles, alguns estudantes de letras, psicólogos, profetas do pós-modernismo francês, que via de regra se servem da filosofia como um grande banco de argumentos de autoridade). Foi Nietzsche quem desenvolveu e popularizou a ideia de Má Consciência (segunda dissertação de GENEALOGIA DA MORAL, que começa assim: “Criar um animal que pode fazer promessas [...] ”). Trata-se de uma tese postulando a interiorização de instintos agressivos que, uma vez reenviados ao seu próprio portador, produziriam o “amansamento” do homem e o surgimento da culpa, juntamente com o ódio e o rancor. Inspirando-se nessa ideia (mas sem o declarar), Freud chegaria a conclusões parecidas pela psicologização de um darwinismo ainda fresquinho, com o seu constructo do Superego. As alusões à animalidade e à sua coextensiva liberdade de instintos e pulsões tornam-se metáforas recorrentes. Mas ao associá-las a uma suposta “vingança dos fracos” (judeus e cristãos) Nietszche pintou um quadro decadentista da Modernidade, expressando ainda a melancolia pelo fim de uma época trágica. E justamente aí que ele começa a se atrapalhar gravemente. Assim, vista rapidamente, a ideia de Má Consciência é bastante sedutora (especialmente para os que procuram um motivo para não ter de lidar com a chamada “Tradição”). Vista de perto, ela forma-se por um grande acúmulo de erros, que hoje podemos classificar de “grosseiros” e que se dissipam por discursos pródigos em signos fantasmagóricos. Então, Ricardo, eu pessoalmente gosto de permanecer vigilante aos níveis discursivos da filosofia e da poesia, essas primas tão próximas e distantes. Acho que você, Perse e Parra quiseram dizer que o poeta é a consciência vigilante do seu tempo. E talvez tenham ainda quisto dizer que ele se faz o guardião, pela linguagem, do acesso às energias vitais e telúricas da experiência metaforizante (o que não é pouco e nem mesmo desprovido de consequências políticas e econômicas, daí a referência ao BNDES). Se for isso (que aliás se distancia sensivelmente da interpretação de Nietzsche ao trocar a perspectiva moral pela ontologizante), eu subscrevo a tese. Afinal, nesse seu belo e interessante poema de ervilhas & phallus, convém lembrar que essa trepadeira leguminosa nasce em uma vagem. Mendel (o pai da genética) e Nietszche (falando de Gaia) bem o sabiam.
Um abraço,

MF

Arquivo do blog