quinta-feira, 14 de junho de 2012

Da "Janela do caos", de Murilo Mendes

O pequeno ensaio abaixo foi originalmente publicado na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., em novembro de 2011. Há tempos queria reproduzir estas linhas de pensamento sobre O Mestre aqui. Aos que não o haviam visto e a quem mais possa interessar.


Da "Janela do caos", de Murilo Mendes




O mestre Murilo Mendes (1901 - 1975 e então a eternidade)


Publicado originalmente em Poesia Liberdade (1947), lançado na França já em 1949 em um volume com seis litografias de Francis Picabia e traduzido para o italiano por ninguém menos que Giuseppe Ungaretti, "Janela do caos" é um dos poemas imprescindíveis da poesia brasileira e em língua portuguesa, ainda que tenha encontrado acolhida parca no cânone, na bibliografia crítica e nas listagens dos gigantes, cujas vagas são em geral ocupadas por outros textos muito merecedores do espaço, como "A Máquina do Mundo" de Drummond, "Uma Faca Só Lâmina" de Cabral, ou, em casos raros, o "Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão" de Oswald de Andrade, talvez o poema que mais se lhe assemelhe em escopo, escolhas e contexto histórico. É claro que críticos muito bons se ocuparam dele e de seu autor, como Murilo Marcondes de Moura no excelente Murilo Mendes: a poesia como totalidade (São Paulo: Edusp, 1995). Vale também lembrar, entre outros, o livro de Júlio Castañon Guimarães, Territórios/Conjunções: poesia e prosa críticas de Murilo Mendes (Rio de Janeiro: Imago, 1993). Mas a importância deste texto pediria muito mais festança crítica e tentativas de emulação pupilar.

Em termos de fanopeia, talvez nenhum poeta brasileiro se compare a Murilo Mendes, maestria reconhecida por João Cabral de Melo Neto, que declarou haver aprendido com o mestre de Juiz de Fora a sempre dar precedência à imagem sobre a ideia (cito de memória). Em língua portuguesa, encontramos tamanha ousadia metafórica em poucos poetas, como Fernando Pessoa e Herberto Helder. Mas, a meu ver, tal uso da fanopeia como instância da hierofania ocorre em poucos poetas espalhados pela modernidade ocidental. O tipo de beleza que sinto em versos como "O céu cai das pombas. / Ecos de uma banda de música / Voam da casa dos expostos" ou aquela quinta parte, em que o mestre Murilo Mendes diz-nos que "Nenhum som de flauta, / Nem mesmo um templo grego / Sobre colina azul / Decidiria o gesto recuperador. / Fome, litoral sem coros, / Duro parto da morte. / A terra abre-se em sangue, / Abandona o branco Abel / Oculto de Deus", faz-me pensar na potência imagética de certos versos do Pessoa do "coração como balde despejado" ou, ousaria dizer, em momentos em que a fanopeia também manifesta-se como instância de hierofania no Gerard Manley Hopkins de "The Wreck of the Deutschland", como "I am soft sift / In an hourglass—at the wall / Fast, but mined with a motion, a drift, / And it crowds and it combs to the fall; / I steady as a water in a well, to a poise, to a pane", mesmo que eu esteja ciente que Hopkins talvez seja um dos mestres insuperados (também Pessoa, em menor medida) da arte de conjugar, em equilíbrio quase sempre perfeito, fanopeia, melopeia e logopeia, quando Murilo Mendes foi em geral mestre supremo daquela primeira.


Sintaticamente, não consigo pensar em uso melhor e mais necessário do hipérbato que naquela última parte, a décima primeira, em que este assume caráter praticamente isomórfico, para usar abusadamente uma expressão cara a Augusto de Campos, que desempenha (como uma performance) a ideia-sensação de ascensão transcendente, ao deixar para o último verso aquele "Subindo vão", ao mesmo tempo que, de maneira gráfica, digamos, cria uma espécie de embate entre ascensão e queda ao fazer dele o ulterior e último dos versos. Há aqui uma relação interessante a ser pensada sobre os efeitos vocais e auditivos do poema quando é falado/ouvido e seus efeitos visuais quando é lido. Não seria impossível também pensar no verso final, a partir da quebra-de-linha, como uma espécie de sínquise a fazer de "vão" não um verbo, mas adjetivo, sem concordância direta com as linhas anteriores, doando certa desesperança ao poema não conhecêssemos a fé de seu autor.


Talvez mais condizente com o pensamento de Murilo Mendes seria a sugestão do poeta gaúcho Marcus Fabiano, em correspondência particular sobre esta possibilidade, a de ler "vão" nem como verbo nem como adjetivo, mas como substantivo, criando a imagem de ascensão por aquele "vão azul" que nos pareceria vazio apenas porque nós, segundo um verso do poema, "só vemos o céu pelo avesso". Pois, quase no extremo oposto de um poeta como Wallace Stevens, que escreveu que "Poetry / Exceeding music must take the place / Of empty heaven and its hymns, / Ourselves in poetry must take their place", Murilo Mendes não cria vazio o céu nem imaginaria que nós pudéssemos substituir o sagrado com a poesia, especialmente não colocando esta acima da música, já que M.M. era melomaníaco notório.

Estas possíveis leituras do último verso de "Janela do caos", de certa forma (trata-se aqui de sensação minha), talvez evoquem a sensibilidade e imagética mística anterior de poetas como Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, poetas que parecem presidir ou ao menos prenunciar a poesia mística brasileira moderna, a de Murilo Mendes e de seus excelentes companheiros Jorge de Lima, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes (da primeira fase) e Henriqueta Lisboa. Entre os poetas do pós-guerra, poderíamos mencionar Hilda Hilst e Leonardo Fróes, todos estes, ao mesmo tempo, poetas muito distintos entre si.

Outro aspecto que seria importante discutir neste poema é a relação entre linguagem metafórica e linguagem metonímica em sua textualidade, pois Murilo Mendes mescla-as de forma inteligentíssima, apontando para advertências do próprio Jakobson sobre o perigo de estabelecermos fronteiras demarcadas demais entre as duas, assim como este poema é uma lição incontornável sobre o equívoco de certos poetas e críticos contemporâneos, que insistem em crer que a função poética da linguagem cancela as outras funções, como a referencial, quando nada disso pode ser comprovado nos grandes poemas de todos os tempos. A linguagem poética parece operar e funcionar, em seu material, forma, função e contexto, em "Janela do caos" e em tanta grande poesia, na fronteira entre transparência e não-transparência do signo, como insisto com frequência.

Nestes nossos tempos de equívoco crítico desastrado que busca equivaler como se sinônimos, de forma confusa e desengonçada, conceitos como "pós-utópico", "trans-histórico" e "sincrônico", Murilo Mendes retorna como mestre supremo e indispensável. Pois é importante dizer que o "surreal" em Murilo Mendes talvez se manifeste com força real de escrita automática apenas em um livro como As Metamorfoses (1944), como Murilo Marcondes de Moura já argumentou, já que M.M. parece ter usado o surrealismo apenas para educar-se em sua futura maestria do que já foi chamado de "metáfora dissonante" e para a própria conjunção entre linguagem metafórica e metonímica que parece operar em um poema como "Janela do caos". Há pouquíssimo de "automático" na escrita do mestre mineiro. Um poema como "Janela do caos" apresenta-se consciente em cada filigrana de sua textualidade, atento à conjugação do temporal, secular e histórico como campos de ação do sagrado, daí o caráter hierofânico de sua fanopeia. Pois se ele está ligado, sim, a esta que foi uma das vanguardas mais utópicas do século XX, o surrealismo de Breton, Picabia e Éluard, entre outros, a poesia de Murilo Mendes, que foi chamado de "conciliador de contrários" por Manuel Bandeira, sempre demonstrou a consciência de que a defesa do utópico (que se manifesta em M.M. no bojo de sua crença inabalável na parúsia) precisa estar unida a um ataque ao distópico, pois ele sabia bem que a humanidade balança-se, em pêndulo, entre distopia e sua antesala.

Num momento em que liberdades civis estão claramente ameaçadas tanto em São Paulo como em São Petersburgo; com sangue jorrando no Egito e outros países árabes; prisioneiros políticos em prisões como Guantânamo e Guanajay; partidos de extrema direita vencendo eleições em países europeus e expulsão de estrangeiros de países como a França; sem mencionar as matanças por questões étnicas que nunca cessam, eu, pessoalmente, retorno uma vez mais a mestres como o Murilo Mendes de "Janela do caos" e o Oswald de Andrade de "Cântico dos cânticos para flauta e violão", estes brasileiros que sabiam que a poesia lírica sai e soa alienada tão-só dos e para os que têm panfletos inúteis ou cartões de crédito nas cavidades onde deveriam residir seus miocárdios e cérebros.


--- Ricardo Domeneck


§


O POEMA DO MESTRE MURILO MENDES


Janela do caos


1


Tudo se passa
Em Egitos de corredores aéreos
Em galerias sem lâmpadas
À espera de que Alguém
Desfira o violoncelo
- Ou teu coração?
Azul de guerra.


2


Telefonam embrulhos,
Telefonam lamentos,
Inúteis encontros,
Bocejos e remorsos.
Ah! Quem telefonaria o consolo
O puro orvalho
E a carruagem de cristal.


3


Tu não carregaste pianos
Nem carregaste pedras
Mas na tua alma subsiste
- Ninguém se recorda
E as praias antecedentes ouviram -
O canto dos carregadores de pianos,
O canto dos carregadores de pedras.



4


O céu cai das pombas.
Ecos de uma banda de música
Voam da casa dos expostos.
Não serás antepassado
Porque não tiveste filhos:
Sempre serás futuro para os poetas.
Ao longe o mar reduzido
Balindo inocente.


5


Harmonia do terror
Quando a alma destrói o perdão
E o ciclo das flores se fecha
No particular e no geral:
Nenhum som de flauta,
Nem mesmo um templo grego
Sobre colina azul
Decidiria o gesto recuperador.
Fome, litoral sem coros,
Duro parto da morte.
A terra abre-se em sangue,
Abandona o branco Abel
Oculto de Deus.


6


A infância vem da eternidade.
Depois só a morte magnífica
- Destruição da mordaça:
E talvez já a tivesses entrevisto
Quando brincavas com o pião
Ou quando desmontaste o besouro.
Entre duas eternidades
Balançam-se espantosas
Fome de amor e a música:
Rude doçura,
Última passagem livre.
Só vemos o céu pelo avesso.


7


Cai das sombras das pirâmides
Este desejo de obscuridade.
Enigma, inocência bárbara,
Pássaros galopando elementos
Do fundo céu
Irrompem nuvens eqüestres.
Onde estão os braços comunicantes
E os pára-quedistas da justiça?
Vultos encouraçados presidem
À sabotagem das harpas.


8


Que esperam todos?
O vento dos crimes noturnos
Destrói augustas colheitas,
Águas ásperas bravias
Fertilizam os cemitérios.
As mães despejam do ventre
Os fantasmas de outra guerra.
Nenhum sinal de aliança
Sobre a mesa aniquilada.
Ondas de púrpura,
Levantai-vos do homem.


9


Penacho da alma,
Antiga tradição futura:
?Se a alma não tem penacho
Resiste ao Destruidor?


10


A velocidade se opõe
À nudez essencial.
Para merecer o rompimento dos selos
É preciso trabalhar a coroa de espinhos.
Senão te abandonam por aí,
Sozinho, com os cadáveres de teus livros.



11


Pêndulo que marcas o compasso
Do desengano e solidão,
Cede o lugar aos tubos do órgão soberano
Que ultrapassa o tempo:
Pulsação da humanidade
Que desde a origem até o fim
Procura entre tédios e lágrimas.
Pela carne miserável,
Entre colares de sangue,
Entre incertezas e abismos,
Entre fadiga e prazer,
A bem-aventurança.
Além dos mares, além dos ares,
Desde as origens até o fim,
Além das lutas, embaladores,
Coros serenos de vozes mistas,
De funda esperança e branca harmonia
Subindo vão.



Murilo Mendes, Poesia Completa e Prosa, Nova Aguilar, 1994.


.
.
.

2 comentários:

Daniel F disse...

ótimo ensaio. A poesia de Murilo Mendes é mesmo plena e íntegra, por seu humanismo, sua força ímpar, sua lucidez e sua beleza (não uma beleza banal, mas, na falta de expressão melhor: uma beleza em pânico).

Abraço.

Daniel F disse...

ótimo ensaio. A poesia de Murilo Mendes é mesmo plena e íntegra, por seu humanismo, sua força ímpar, sua lucidez e sua beleza (não uma beleza banal, mas, na falta de expressão melhor: uma beleza em pânico).

Abraço.

Arquivo do blog