quarta-feira, 13 de junho de 2012

Homenagem de Marcus Fabiano Gonçalves aos portugueses Fernando Pessoa, Antônio Vieira e Santo Antônio de Lisboa, seguida de outros poemas do gaúcho

No ano passado, preparei uma postagem com poemas então inéditos de Marcus Fabiano Gonçalves para a Modo de Usar & Co., além de dois poemas de seu primeiro livro, O Resmundo das Calavras (2005). Hoje, em que completariam (e completam) anos (de morte e de vida, respectivamente) os grandes portugueses Fernando Martins de Bulhões ou Santo António de Lisboa (Lisboa, 15 de Agosto de 1195 - Pádua, 13 de Junho de 1231) e Fernando Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de Novembro de 1935), o poeta gaúcho divulgou um poema inédito em homenagem a eles, intitulado "CARTA À POETA QUE EXAMINA SEUS MEDOS OU GLOSA SOB OS AUSPÍCIOS DA LÍNGUA DE SANTO ANTÔNIO DE LISBOA (TAMBÉM DITO DE PÁDUA) QUE OPEROU MILAGRES QUANDO FOI PREGAR AOS PEIXES E TOMAR SOPA ENVENENADA". O poema é introduzido por um pequeno texto do autor gaúcho. Encerro a postagem com os poemas publicados na Modo de Usar & Co. em maio de 2011.



SANTO ANTÔNIO, PADRE VIEIRA E FERNANDO PESSOA
por Marcus Fabiano Gonçalves

Na idade média, os pobres que deviam a agiotas eram encarcerados e tinham suas esposas forçadas a se prostituírem para o resgate de suas dívidas. Centenas de famílias de plebeus foram assim aniquiladas. Era a crueldade do “capitalismo” da época. No século XIII, um português brilhante, grande jurista e exímio orador, teve uma ideia: organizar frentes de trabalho de monges para a compra da libertação desses homens e o alívio do sofrimento de suas mulheres. Com a força dos braços e com sermões implacáveis ele moveu uma campanha contra a infâmia da prisão civil por dívida e conquistou mudanças pioneiras nas legislações feudais. Tratava-se do nobre português Fernando de Bulhões, que receberia de Francisco de Assis o nome de Antônio. Por ter ficado conhecido como Santo Antônio de Pádua (lugar próximo de onde morreu, em 1232), muitos pensam que ele seja italiano. Mas não. Sua língua milagrosamente nunca apodreceu. E é uma genuína língua portuguesa, por isso ele também é chamado Santo Antônio de Lisboa (onde nasceu, em 1195). Em sua homenagem, seriam batizados com o seu nome dois dos maiores escritores de nossa Língua: o padre Antônio Vieira e o poeta Fernando Antônio Nogueira Pessoa, que aliás lhe rende dupla homenagem, tendo nascido exatamente no seu dia, 13 de junho. Eis aqui um trecho do filme SAN ANTONIO DI PÁDOVA, de Umberto Marino, no qual se pode conferir a fortíssima cena do "miracolo della menestra" (o milagre da sopa). E logo abaixo um poema meu, de caráter pseudoanagógico, rendendo homenagem a esse grande Antônio em um país que o tem na baixíssima conta de mero santo casamenteiro.




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“Esta é a língua, peixes, do vosso grande pregador, que também foi rêmora vossa, enquanto o ouvistes; e porque agora está muda (posto que ainda se conserva inteira) se veem e choram na terra tantos naufrágios.” --- Padre Vieira, Sermão de Santo Antônio aos Peixes

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CARTA À POETA QUE EXAMINA SEUS MEDOS OU GLOSA SOB OS AUSPÍCIOS DA LÍNGUA DE SANTO ANTÔNIO DE LISBOA (TAMBÉM DITO DE PÁDUA) QUE OPEROU MILAGRES QUANDO FOI PREGAR AOS PEIXES E TOMAR SOPA ENVENENADA
Marcus Fabiano Gonçalves

você já deveria saber que no meu bloco desfilam balões e bolcheviques, fuzis e margaridas. e só agora nota essas fitas alegóricas ao redor do andor? meu olho não é seco, é de terra. por isso quando uma água o molha não vem da íris nem é nada cristalina. é um barro, uma lama. mas erra muitíssimo quem a pense suja. não está sempre aí, ela surge. e quando vem, é uma argila. dessa mesma que é feito o homem e suas costelas, pois as barras dessas jaulas que no peito levam nossos tigres não detêm o sopro de um colibri. não é só da carne que lhe falo. é também da alma, da miraculosa língua de santo Antônio, até hoje conservada intacta. quem prega sacrifícios se santifica. mas será que vive ou se mantém cativo? também o santo vai à praia quando o povo lhe dá as costas. e então a sua palavra faz piscosas umas águas antes só de algas. porém nem sempre o remorso previne erros com cautelas. no “miracolo della menestra” a fé mudou o veneno em alimento quando Antônio disse ao agiota: por vossa alma eu tomo essa peçonha de cobra. aí convém aceitar a humana realidade e arriscar o ímpeto apesar da falha. a soberba doma a alma se a invocação de um santo indaga: tentando se é tentado? embora peque e morra, o santo é mais forte porque acredita. ele acode quando menos se imagina. a sua fé ama enquanto desafia. ela é a fome de um pão ainda sem seu trigo. a confiança que une a graça ao pedido. é pura promessa e espera porque conhece o lugar onde a semente guarda o tempo. sei e sabemos que é do humano tanto a raiva quanto o ciúme. e que por muito pouco pode a vida se tornar mais ácida, afinal toda carne apodrece e passa. mas enquanto aguarda a palavra é mágica. e ela fica, não finge que acredita. a luz é boa mesmo se às vezes o seu brilho é duro, sobretudo quando reúnam, junto à santa língua, diamante e dinamite. a fé transmuta quem dela se ilumine. a fé aclara muito quando se duvida. ela não entende, não explica, não decifra. só redime e nem sempre é macia. e se ela remove até montanhas, não lhe seria fácil demolir a esfinge? contudo a fé a trata como inexistisse. seu mistério não é charada nem enigma. não devora nem adivinha. só inspira. se é fácil? quem disse? no bem querer, o simples é ainda mais difícil.

(in Arame Falado, no prelo)






Marcus Fabiano Gonçalves nasceu em Santana do Livramento, na fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, em 1973. Cedo transferiu-se para Porto Alegre e é formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre e Doutor em Teoria e Filosofia do Direito, prepara doutoramento em antropologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Morou também em Florianópolis e Natal. Radicado na cidade do Rio de Janeiro, é atualmente professor da Universidade Federal Fluminense. Estreou em livro com O Resmundo das Calavras (2005), e sua segunda coletânea, intitulada Arame Falado, será lançada este ano.

O trabalho de Marcus Fabiano Gonçalves já havia aparecido neste espaço, mencionado com seu poema "Oração do favelado" no artigo "Das fatrasies medievais a DADA, do Sapateiro ao Rilke shake", que discute as possibilidades da poesia satírica e alguns exemplos deste trabalho em certos contemporâneos, ligando-os à tradição da poesia medieval que vai mais tarde desaguar na poesia do nonsense britânica e na dadaísta germânica, por exemplo. Poética que tem no Brasil dois excelentes representantes em Gregório de Matos e Sapateiro Silva.


POEMAS DE MARCUS FABIANO


Agulha e palheiro


quem ao palheiro se desse
munido apenas de um ímã
e dali tirasse a tal agulha
que ninguém garimpa

afeito ao tato da cegueira
quem nem a detectasse
por essa magnética patrulha
da improvável coisa miúda

mas sim a resgatasse cravada
feito uma seringa na nádega
como quem podendo a luz do mercúrio
garimpasse afinal sua pepita no escuro

e assim descobrisse pela agulha
o sentido de uma outra procura:
achar no ordinário do palheiro
a dádiva da palha, o aconchego.


§


Diário de bordo


um tanto de arroz
acautela a avareza da miséria:
uma cara mansa e rubicunda
de olhos trêfegos
mergulhados na tigela

o sorriso cínico ainda mercadeja
a dúvida dos céticos no bosque dos afetos
e um aleijão mendiga a piedade da repulsa
ostentando o seu falso caroço de corcunda

contudo, recorda-te:
anos 1800 – Gibraltar represa o Mediterrâneo
e a China dorme o ópio dos britânicos

anos 1900 – Celan pula da ponte da vida
sem perguntar ao carpina
o quanto verga sem quebrar
a severina compleição judia

anos 2000 – a árvore da vida desfolha
e em seu diário de bordo Noé anota:
afogado noutro dilúvio compulsório
ainda exerço os ofícios da memória.


§


Shukran


a Mahmoud Darwish


no armazém das migalhas
ser o chefe dos almoxarifes:
mesmo nos grandes negócios
jamais pechinchar seu bakshish
só pelo prazer de dizer shukran
aos deuses que falam ídiche.


§


A máquina do fundo


a pesca escassa, o rio poluído, a quotação da dracma
um heraclítico engenho rege o mundo das máquinas

na margem, a draga do imponderável rio sem fundo
sem opor o puro ao sujo, aceitando o fluxo de tudo

a lama negra das imagens infiltra o oco dos crânios
no entulho da palavra gaga, a jaula do orangotango

reúne uns cacos de naufrágio, enjambra umas tábuas
vê se salva as aves da linguagem nessa arca de sucata

une o conteúdo à sua forma mais perfeita e intransitiva
e embora toda solda, cuida de mantê-la móvel e flexível

coa a lama toda dessa draga e separa bem tua saliva
retém a gota e o grão no sorriso amarelo das espigas

observa o dedo lerdo catando seu milho na datilografia
de grão em grão germina um corvo no ventre da galinha

chocando a ave faz esfinge de quem ignora o enigma
mas na verdade ela bem sabe que no fundo nada finda.



::: poemas inéditos de Marcus Fabiano, incluídos em seu livro Arame Falado (no prelo) :::


§


Oração do favelado


pai nosso
que nos deixa ao léu
santificada seja a nossa fome
venha a nós o vosso treino
e seja feita a vossa vontade
aqui na guerra
como entre os réus

o pão nosso de cada dia
roubai hoje
e perdoai a nossa imprensa
assim como perdoamos
as migalhas que nos têm oferecido,
não nos deixeis cair na transação
mas livrai-nos do sistema penal,
amém.


§


Panifico e construo


sou em regra cortês
mas jamais peço licença sinhô
ou permiso señor

pulo a cerca corto o arame
arrombo a porteira cavo túnel
construo pontes improviso canoas
adivinho o segredo do cofre
salto contorno roubo a chave das algemas
me refugio em incertos algures
apago os rastros do meu paradeiro
disfarço-me em padeiro e pedreiro
panifico e construo
e meus pães eu distribuo
como quem oferece pedras
em uma ceia de banguelas

vim vi e vivi:
não vigiem minha viagem

vim vi e viciei:
não vasculhem minha bagagem

vim vi e vibrei:
não vomitem por minha beberagem




:::: poemas extraídos do livro O Resmundo das Calavras (Porto Alegre: WS Editor, 2005) ::::

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2 comentários:

Marcus Fabiano disse...

Muito grato pela publicação, Ricardo.

Parece que a correção automática do Word insiste em colocar MINISTRA no lugar de MENESTRA, com que se perde a rima toante com CAUTELA...

um grande abraço,

Mf

Ricardo Domeneck disse...

Caro Marcus,
creio agora ter corrigido todas as ministras por MENESTRA. Quem dera fosse também tão fácil corrigir certas MINISTRAS.
abraço
Domeneck

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