quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Numa tarde chuvosa em São Paulo, pequena crônica

Chove em São Paulo. Um pé d’água, um toró. À saída da estação de metrô da Consolação, uma jovem deixa cair seus livros na rua onde já se formavam poças. Imediatamente, uma senhora mais velha acudiu, um rapaz também abaixou-se para pegar livros, e uma outra moça começou a mover compras de uma sacola de plástico a outra para que uma delas se esvaziasse e ela pudesse cedê-la à moça dos livros agora molhados, que agradecia, agradecia, obrigado, obrigado, obrigado. Se o leitor considerar isso relevante, o grupo era formado por duas moças de ascendência europeia, um rapaz de ascendência africana e uma senhora de ascendência asiática.

Não era uma catástrofe a queda dos livros, não mudava os rumos da República, não deteve o trânsito. Mas era uma urgência, e as três pessoas ao redor da moça — dos livros nas poças de chuva — agiram com a presteza e a rapidez que pedia a situação. Rápido!, os livros se molham, não foram feitos para molhar-se os livros. Não sei nem sabiam eles em quem os outros votaram nas últimas eleições, o que pensam sobre qualquer questão que talvez os levasse a se ofender mutuamente nas redes sociais. Não importava naquela urgência das coisas que se estragam. Os livros molhavam-se, a moça tinha as mãos presas, agiram rápido, sem pensar, era o outro na chuva com suas coisas relevantes, irrelevantes. Agradeceram-se e partiram sob a chuva.
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terça-feira, 18 de dezembro de 2018

As mangas e os bois




Jamais rasguei no dente
o coração de um boi
para saber se a consistência
é a mesma entre as carnes
da manga e do mamífero.
Sei que foi destinada a meus dentes
a polpa da fruta
para chegar às sementes,
desnudá-las e espalhá-las
entre bois que adubem o chão
da sua frutificação.
Percebo que o coração de boi
e a coração-de-boi
são imagem e semelhança
assim como a crista-de-galo
e o galo e sua crista.
Dizer porém o quê
da espada-de-são-jorge
e a espada de São Jorge?
Da costela de Adão
e a costela-de-adão?
Ontem, à mesa de um bar,
o amigo nomeou seu destino
nos próximos meses,
disse “Cabeça do Cachorro”,
causou susto, interrogatório.
Tudo tem provas, um mundo
cartografado com cuidado,
é isso que nos legaram
os antepassados, mortos
entre os polos Norte e Sul.
O amigo logo mostrou-nos
no mapa digital, invocável
pela voz, a região
no extremo noroeste
do país, no estado
do Amazonas, na fronteira
com Colômbia e Venezuela.
Como é possível jamais
soubesse que a terra possuía
uma cabeça de cachorro?
Nunca olhei tão longe?
Vivo nos seus intestinos.
Ora, parece-se mesmo
com a cabeça de um cachorro,
latindo, latindo, enraivecido,
pensei eu, enterrando os dentes
no coração dos bois
e na coração-de-boi,
com a minha cabeça de cão,
minhas costelas de Eva e Adão.
Talvez seja hora apenas
de aceitar o calor que colore
as mangas, esse dezembro
em que derretemos
mas, ao menos, juntos,
de amar com igual suculência
o próximo e o distante,
planejar viagens curtas e longas
ao Lago das Garças e a Chã de Alegria,
a Anta Gorda e à Cabeça do Cachorro.
Amar o nativo e o enxertado,
assim como talvez-quiçá amarmos
a nós mesmos, há tanto enxertados
como as mangas e os bovinos,
que já nos tratamos por nativos.

— São Paulo, 16 de dezembro de 2018.

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sábado, 27 de outubro de 2018

Crônica de um domingo pré-eleitoral

Após tomar meu café neste domingo, fui convidado por meu anfitrião a acompanhá-lo à feira para dividir a dívida e o peso do carregamento. Pareceu-me justo, hospedado com conforto como estou, além de eu mesmo sentir agitar-se na barriga aquelas vontades grávidas de certas guloseimas paulistanas, ainda que não do machismo pitoresco dos feirantes da cidade.

Lá chegando, procedi a empanturrar-me de forma pantagruélica com pastéis (de bauru, aos mais curiosos) e copos de garapa (pura, pois sou purista nestas questões culinárias). Admirei-me, em primeiro lugar, da sinceridade mercantil do pasteleiro ao anunciar que o pastel de bauru trazia, por recheio, queijo, tomate e apresuntado, não presunto. Pareceu-me que seria um bom começo para a República em geral, ou seja: anunciar que é apresuntado o apresuntado e não presunto. Você estaria preparado para concordar, caro leitor?

Isto posto, percorri sorridente as vielas da feira onde fui abordado duas vezes em inglês por feirantes, algo que muito me feriu, não crendo ter voltado americanizado como cantou Carmen Miranda, nem mesmo germanizado (ah! o purismo da ‘mot juste’!), eu, euzinho ainda em plena posse do meu ziriguidum se não dos meus balangandãs.

Permiti-me um único ‘supérfluo’, que é como meu finado pai referia-se a qualquer coisa que julgasse luxo consumista quando íamos ao supermercado: comprei pinhas, aquilo que alguns de vocês chamam de atas e outros, de frutas-do-conde. Custaram-me os olhos-da-cara e quase também o olho-do-cu, mas ora, fiz-me um agrado que julguei merecido, já que, como escreveu Adília Lopes, “Deus não / me deu / um namorado / deu-me / o martírio branco / de não o ter”. Portanto, pinhas aos solteiros. Chegando à casa de meu anfitrião, taquei-as — as pinhas — para dentro do estômago já pastelizado e engarapado. Passei mal e dormi, enquanto o amigo dizia não comer frituras por causa da pança. Ora, a essa altura do campeonato erótico em que sigo perdendo de goleada, lá vou me preocupar com a própria pança?!

Querendo salvar o dia tentei ser produtivo culturalmente, essa doença paulistana, e corri para uma exposição. Dei-me mal, querido leitor. Pois mal sabia eu que toparia na Avenida Paulista com as hordas bolsonaristas festivamente preparando-se para retornar aos quintos dos infernos onde vivem. Decidi insistir. Apinhei-me no metrô, cantarolando em homenagem a meus compatriotas tão patriotas: “Se gritar ‘pega ladrão’, não fica um, meu irmão.”

Ao descer nas Clínicas fui surpreendido com maiores multidões, pois além das hostes verde-amarelas viria a se unir a nós a torcida do Palmeiras! Esqueci-me que o Estádio do Pacaembú é logo ao lado e não sou dos mais informados em assuntos primitivescos como o futebol. Logo ficaram mais verdes que amarelas as massas. Era de difícil análise o fenômeno de esverdeamento do amarelado, e não sabia eu por vezes se estava diante de um bolsonarista ou um palmeirense. É de se julgar que haja tanto bolsonaristas palmeirenses quanto palmeirenses bolsonaristas, assim como o leque de gradações entre tais polos.

Ora, o leitor me desculpe, mas há limites até para o mais convicto dos democratas. Herdei da casa paterna o cristianismo e o corinthianismo. Você, caro leitor, saberá bem que não pratico qualquer uma dessas religiões, mas mantive uma certa impressão infantil de que satanistas e palmeirenses são gente ligeiramente cafona, ainda que esteja pronto para concordar que são-paulinos podem ser piores. Os amigos satanistas e palmeirenses me perdoem, estou tentando ser uma pessoa melhor.

Assim sendo, voltei derrotado à casa do anfitrião, onde comerei pinhas e esperarei a chegada do amigo William Zeytounlian para que ao menos veja uma coisa bonita e vermelha antes que o dia acabe. Eis aqui, caro leitor e concidadão, a descrição de meu domingo neste Ano de Nossa Senhora da Escuridão 2018.

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São Paulo, 21 de outubro de 2018.

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terça-feira, 4 de setembro de 2018

De um museu em chamas e um sermão ouvido na infância

Eis o país. Salve! Salve!

Uma tragédia de tristeza acachapante. O museu havia completado 200 anos há poucos meses. Parabéns, ministros da Cultura e da Educação de Michel Temer, Dilma Rousseff, Luiz Inácio Lula da Silva, Fernando Henrique Cardoso, e ignóbil etc. Sugiro recolhermos as cinzas para uma exposição na Arena das Dunas ou no Estádio Nacional de Brasília, rebatizando qualquer um destes elefantes brancos de ‘Novo Museu Nacional’.



Entre as 20 milhões de peças que muito provavelmente perdemos com o incêndio do Museu Nacional, no antigo Palácio de São Cristóvão na Quinta da Boa Vista, estava o crânio de Luzia, a mais antiga ossada humana encontrada no território. É uma destruição da história dessa terra que alcança uma dezena de milênios. No último ano, em várias performances relacionadas ao Brasil feitas na Europa, eu as iniciava dedicando-as a Luzia. Tenho toda uma série de poemas dedicados a ela, que já era só osso e agora virou cinzas. Virou algo brasil. Este poema meu é de 2015:

luzia do brasil
algo, um resto,
uma sobra,
luzia da terra,
luzia enterrada
essa migalha,
se do passado
ou futuro
não
se sabe,
mas segue-se
dando nomes
luminosos
a façanhas
e ossadas
dessa terra,
a brasa
na lama,
a luz
no fundo
da terra,
cava-se
até não
sobrar,
arranca-se
até não
restar,
e eis
que aqui
jaz
luzia, osso
ou caroço,
resíduo
ou semente,
não
se sabe,
será cálcio
ou caule
num sulco
ou túmulo,
mas ainda
luzia, luzia,
a primeira,
a primeira
que restou,
a última
que sobrou,
seus restos
os primeiros,
os últimos
do solo
que se faz
território
a que um dia
dariam outro
nome luzidio,
brasil, e luzia
que certo
não
sonharia
essa noção
de trapos
e bagaço
e lama
e detritos
e pó
que se
chamou
colônia,
império,
república,
estado
-nação,
não,
luzia
não
sonhou
brasil
nenhum,
quiçá
brasil
seja tão
o pesadelo
repetindo-se
no vão
do tempo
dentro
do crânio
de luzia

And then “these fragments” we had “shored against our ruins” went up in flames.

O luto pelo Museu Nacional ocorreu em frente à Biblioteca Nacional, que certamente está na mesma situação periclitante em que se encontrava o Palácio de São Cristóvão na Quinta da Boa Vista.

O Museu do Ipiranga em São Paulo está fechado desde 2013. No Norte, colegas alertam para a situação de descaso com o Museu Emílio Goeldi. Em visita a Juiz de Fora há um par de semanas, ouvi coisas escabrosas sobre o Museu Mariano Procópio.

Enquanto isso, deve estar luzidia ao sol a Arena do Pantanal, assim como outros mamutes (feito a Usina de Belo Monte). Já os restos de Luzia viraram cinzas brasis.

Se os senhores ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, e ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab, não estão agora mesmo preparando suas cartas de renúncia, espera-se que estejam mexendo seus pauzinhos para a liberação de verbas maciças para os museus do país.

Mas, em ano eleitoral, alguém ouviu alguma pergunta sobre Cultura nos debates dos “presidenciáveis”?


Curt Nimuendajú nos jardins do Museu Nacional, Rio de Janeiro, 1913.

Entre os pequenos alívios em meio à catástrofe está saber que o acervo de Curt Nimuendajú havia sido digitalizado recentemente. Alguns fragmentos vão sendo encontrados para escorar as ruínas das nossas ruínas.


'A tentação' - Hugo van der Goes, 1470


Eu me lembro de um sermão ouvido quando criança. O pregador relatava sobre a Queda, e como, ao apresentar-se Deus no Jardim, Adão jogara a culpa toda em Eva que por sua vez culparia a Serpente.

Foi o que me veio à mente observando ontem os discursos dos que seriam responsáveis pela maior coleção de arte e conhecimento da América Latina, repositório ainda de muita joia imaterial, como línguas indígenas já mortas.

O senhor ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão - certamente ao ver que muitos pediam sua cabeça - foi para as redes sociais declarar que o Museu Nacional estava sob os auspícios da Universidade Federal do Rio de Janeiro e portanto sob os auspícios do Ministério da Educação. Foi também o que disse o senhor ministro da Secretaria de Governo, Carlos Marun, acrescentando: 'Agora que aconteceu tem muita viúva chorando'. A leviandade é embasbacante. Do senhor ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab, não li sequer um pio até agora. Tampouco do próprio senhor ministro da Educação, Rossieli Soares da Silva.

Quem é o responsável, afinal? Um par de amigos estrangeiros me perguntou: mas ainda não rolou uma cabeça sequer?

Enquanto isso, o senhor presidente da República, Michel Temer - também conhecido como o Vampiro do Jaburu - lamenta o ocorrido.

Neste país, permite-se que rios morram (refiro-me tanto ao Rio Doce como ao Xingu), e museus queimem. Estamos passando por uma crise verdadeiramente política, não no sentido que tal palavra assumiu no país, onde se confunde o “político” com o “partidário”. É uma crise da pólis,

da co-vivência.

O rio Doce. O Xingu.
O Rio de Janeiro.
O rio Museu Nacional.
O RIO de DENTRO

como João Cabral de Melo Neto escreveu sobre aquele rito de Murilo Mendes: “nos rios, / cortejava o Rio, / o que, sem lembrar, / temos dentro.”

Talvez porque nossos avós e pais e nós mesmos aceitamos por tempo demais essa ‘guerra de exaustão civil’ que é esta República. Essa rês pública na qual todos queremos mamar. Vamos precisar de um fôlego de maratonista, porque só os ingênuos acreditam que a eleição presidencial deste ano nos tirará deste buraco.

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(Texto recolhido de várias publicações nas redes sociais)

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

No sítio da terra pequena


                          a Leonardo Fróes

Jamais pensei um dia entre capivaras
e coatis descobrir a costela-de-adão,
ereta às vésperas do enfolhamento.
Que monstra deliciosa! Fazia sombra
alta o amansa-senhor, suas flores
vermelhas e seu chá antigo, sonífero
que espera os buchos dos condes
e barões do Rio de Janeiro de hoje.
Como se para mim, o manacá florescia
às bordas do caminho, para mim!
eu que os conhecia apenas da pintura
de Tarsila do Amaral. E quanto
cresceu o guapuruvu, pau-de-tamanco,
desde minha chegada a este sítio?
Ao redor aninhavam-se outros bichos
nas rochas da Serra dos Órgãos.
A cerração baixa deixava o ar ruço.
Não longe, calva como outras pedras
enormes dessa terra, erguia-se
a Maria Comprida em gnaisse-granito,
que outro poeta escalou para ser-lhe
permitido escrever sobre todos
os animais de montanha:
“agora tem de aprender a descer.”
Eu, que perco o fôlego nas escadarias
dos prédios de novos condes e barões
com seus elevadores sociais
e de serviço, cosmopolitinha-caipirão,
perguntava que pássaros
eram aqueles que lembravam faisões.
Jacus! Jacus. Ali estava eu, menos
Adão com o poder de nomear
do que tataraneto mestiço de colonos
e nativos entremeados na morte
das línguas, perguntando cabisbaixo:
será tarde, ao zunir dos mosquitos
da febre-amarela, para fugir pela mata,
irmão de lobos-guarás e vira-latas,
das cinzas e brasas dos paus-brasis?

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Petrópolis — Rio de Janeiro, 24 a 29 de agosto de 2018.

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quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Pedra da Maria Comprida e um poema de Leonardo Fróes


Tive o prazer de rever o poeta Leonardo Fróes neste último fim-de-semana, desta vez em Petrópolis, e então seguir com ele e sua esposa, a fotógrafa Regina D'Olne, para o já lendário sítio do poeta nos arredores de Secretário, onde passei com eles alguns dias. Esta postagem é uma das memórias desta viagem.



A Pedra da Maria Comprida é um grande monolito de gnaisse-granito (como o Pão de Açúcar e outras das nossas pedras calvas), com 1.926 metros de altura, situada no território do município de Araras, no estado do Rio de Janeiro. 

A foto acima, que não faz jus à pedra e seu nome, foi feita ao longe por mim enquanto o poeta me dizia que foi escalando esta montanha que lhe surgiu talvez seu mais famoso poema.

Introdução à arte das montanhas

Um animal passeia nas montanhas.
Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
um organismo em movimento reagindo a passadas,
e só. Não sente fome nem saudade nem sede,
confia apenas nos instintos que o destino conduz.
Puxado sempre para cima, o animal é um ímã,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvens,
acha que reconheceu os seus limites. Mas não sabe,
ainda, que agora tem de aprender a descer.


— Leonardo Fróes, in Argumentos Invisíveis (1995).

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quarta-feira, 25 de abril de 2018

Epístola dos dragões aos sãos


"São Jorge e o Dragão", Hans von Kulmbach (circa 1510).


Epístola dos dragões aos sãos

Enviaram-nos,
os narradores e publicitários,
the spin doctors das mil doutrinas,
em expedição a uma guerra santa
– diziam pelos alto-falantes:
que se mate o dragão

ou se mate o soldado,
são generosas com seus Sãos
as milícias inanes da sanidade,
e nós, mamífero e réptil,
já não sabemos ao certo
o que e o quem,
desde então há só esse balé,
esse tango, esse quebra-nozes
de quebrados nós, essa paixão
de fogo e lança, queimaduras
de terceiro grau e penetração,
esse amor-ódio
entre o homem e o dragão,
o medo mútuo e o terror recíproco
de vencer a batalha
e derrotar quem nos dá razão
de viver, e assim tornarmo-nos
supérfluos, sós ao sol,
virar efígie! balela de baleia branca,
romance de unicórnios
e pinóquios, moeda de troca,
não! não ser história
para boi e vaca e bezerro
dormirem se não dormimos
nós mesmos
há tanto tempo de martírio,
enrodilhados um no outro
já não sabemos
quem é quem, o que é o quê,
São Dragão e Jorge!
quem, o que
ao contemplar nossa iconografia
poderá veramente dizer
se nos digladiamos
ou fazemos amor,
nesta civilização risível 
que exige de nós que cumpramos 
nossos papeis na trama,
na qual ninguém mais vê a diferença
entre as comédias românticas e os filmes de terror,
o amoroso garfo e o amoroso lança-chamas
aqui e acolá seguimos, abraçados
por metros de tela e litros de óleo
nessa batalha para edificação
da canalha, nessa cama sublunar
sofrendo a cada século
mais incisiva nossa crise de identidade
tão particular, meu nome, nosso nome,
que nome,
São Drão,
São Drorge,
São Jargão,
mamífero e réptil,
homem e lagarto
sãos.

§

Berlim, abril de 2018.

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domingo, 18 de março de 2018

O Corpo e o Morse


Doentes.
Nós, todos

doentes. Há
muito doentes

todos. Nós
em forcas.

Pungidos
e impunes.

Não,
não impunes.

Não
se constrói

impune casa
sobre covas

comuns. Não
se ergue

o prédio
em cemitério.

Não sem
velados, lavados

os ossos
e os dentes.

Não ungidos.
Untados.

Não impunes.
Doentes

de cada gota
do líquido

espesso. Derr
-amado.

Por nós, avós.
Parentes

doentes
em cada gota

que circula.
Essa corrente.

A casa abala-se.
O sangue

embebe alicerces.
A mola

mestre afrouxa.
O reboco

despenca. Não
se constrói

impune
nas costas

de gente,
escravos, depois

se mente impune,
finge-se

fraterno, diz
irmão, irmã.

Não sente
na pele,

não cose
as costas,

não pede
a bença.

Da casa
sobre covas,

do prédio
sobre costas,

frangalhos. Nem
carneiro nem cão.

Até os bois,
as balas são

mais sagrados.
Punidos

não fomos,
mas não

impunes.Estamos
doentes.

Nossas costas
em trinchas. Entre

trincheiras
do café-da-manhã

à janta. Nossas
casas escarlates.

E o Omo não lava
os ossos.

E o sangue. Omo
nenhum lava.

SOS SOS tele-
grafam ossos.

Doentes. Cada
mãe

de pele colorada.
De rubro

e de negro. Cada
mãe roubada.

E morta. Omo
não lava.

As manchas,
que a família

merece. Refeição
temperada

a coloral. Não
urucum. Nódoas

que secam
no asfalto. Todos

nós, doentes
de comer

carne, nós
que moemos

carne. Pôncios
Pilatos

nessa Jerusalém
infernal.

Não há
Cristo que baste.

Não há Cristo
que lave

com sangue
o sangue. Basta

de lavar sangue
com sangue. Basta.

Doentes,
pilhamos ossos.

Dormentes,
secamos. Cálcio.

Cauterizados,
nós, calcificados.

SOS SOS telegrafam
os ossos.

A nós, doentes
entre doentes.



*

[in memoriam Marielle Franco]

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quinta-feira, 8 de março de 2018

VICTOR HERINGER UNE-SE AOS EGUNS


1.

Como naquela rara fotografia
juntos, com sua cabeça
a pender sobre meu peito,
esse gesto que diz entre nós
muito mais do que o aperto de mão,
muito mais do que o beijo na boca,
porque é o colo,
aquele que em nossa terra
expandimos para além da caixa torácica
para ir da garganta até os joelhos,
como a rede em que nos embalavam
as mães antigas,
como as cadeiras em que nos ninam
as mães novas,
cantarolando que a Cuca
não há-de vencer.

2.

Estava entre amigos
quando as mensagens de voz de amigos
começaram a entupir meu telefone
mas as ignorei, por estar entre amigos
e aos amigos presentes dá-se
toda prioridade,
como você mesmo o faria,
gladiador da ternura e do candor.

3.

É só uma notícia. Uma notícia. Pasmo
de susto, assustei eu mesmo
os vivos na sala, ao dar uma golfada de ar
adentro, como quem emerge a cabeça
para fora d’água segundos antes
de afogar-se, mas em verdade
submergia naquele instante.

4.

É como se houvesse morrido
a última gentileza.
Hoje extinguiram-se deveras
todos os dodôs.

5.

As pequenas ruas da Glória e do Catete
perderam um historiador, nestes tempos
em que não há mais historiadores de ruas.
Você sai das ruas da Glória e do Catete
e passa a fazer parte da história das ruas.

6.

Estão imediatamente órfãos alguns objetos
que só você teria visto como importantes:
uma pena de pombo qualquer, uma pedra
ou concha, que você teria erguido
em amuleto.

7.

Tenha sido cândido, gentil e terno
como era você, cavalheiro, cavaleiro,
Omolú ao cortar o cordão de prata.

§

Berlim, 7 e 8 de março de 2018, triste até o caroço.

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segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

CONVERSA SOBRE ENSAÍSMO (parte 3)


Comecei nas redes sociais uma conversa sobre o "ensaio" como gênero independente, insinuando minha impressão de que não o praticamos da mesma forma aberta e por vezes híbrida como, por exemplo, os norte-americanos. Vários colegas comentaram, dando exemplos de trabalhos que poderiam ser discutidos nesta conversa:

* os ensaios biográficos de Paulo Leminski (mencionado por Ricardo Corona); 

* o "jornalismo literário" de Antonio Callado em 'Esqueleto na Lagoa Verde' (mencionado por Matheus de Souza Almeida); 

* os ensaios de Lélia Gonzalez (mencionada por Matheus Marçal); 

* a própria discussão sobre o ensaio feita por Antonio Candido (mencionado por Celia Pedrosa) ou os trabalhos de Candido e de Gilberto Freyre (mencionados por Marcia Denser); 

* os artigos de Carlos Drummond de Andrade em 'Passeios na Ilha' e 'Confissões de Minas' (mencionados por Marcelo Ferreira de Oliveira);

* a discussão de Luis Augusto Fisher sobre os textos de Nelson Rodrigues que, como disse Eduardo Sterzi (que mencionou o livro), possuem uma densidade que os afastam da crônica para se aproximarem do ensaio;

* os textos de Jessé de Souza, José Guilherme Merquior e Glauber Rocha foram mencionados por Bruno Gaudêncio;

* os textos de 'Ó', do Nuno Ramos, foram mencionados por Eduardo Sterzi e por Paulo Caetano, que também mencionou José Paulo Paes;

* Roberto Schwaz e Paulo Arantes foram mencionados por José Rodrigo Rodriguez;

* os textos de Waly Salomão em 'Armarinho de Miudezas' e os de Caetano Veloso em 'Alegria, Alegria' foram mencionados por Diogo Cardoso.

* por fim, creio, houve a menção a Antonio Risério por Reuben da Rocha;

Continuo pensando nisso, por ter um interesse gigante pelo gênero, tal como ele é praticado em certos lugares. Marco Catalão argumentou que talvez se trate de uma questão de denominação. Como disse em meu texto inicial, é possível que estejamos nesta conversa em meio a nossas idiossincrasias catalográficas.

Insinuei também naquele texto que talvez chamemos de "artigo" o que os americanos chamam de "ensaio". Alguns argumentaram que seria a "crônica". Mas não pode ser apenas uma questão de fronteiras entre gêneros. Será?

Minha impressão, para seguir com a conversa, é que o "ensaio" jamais se estabeleceu entre nós justamente como "gênero independente". O ensaio, entre nós, parece ser um gênero a-serviço-de. Há o ensaio literário, o ensaio antropológico, o ensaio sociológico, o ensaio biográfico. Mas não há o ensaio-em-si. Livre, híbrido. Será isso? Uma hipótese. As fronteiras bem demarcadas entre gêneros? Estas terras a gente demarca...

Mas aqui toco em outra questão sobre a qual venho refletindo em relação à literatura brasileira, moderna ou contemporânea. Lá vai: nosso aparente horror crítico ao híbrido. Àquilo que não se encaixa perfeitamente na fórmula. Muito tinta crítica idiota já foi gasta por nossas confusões diante do híbrido literário. Alguns exemplos de hibridismo podem ser encontrados especialmente na minha geração, e especialmente entre mulheres: Veronica Stigger, Marília Garcia, Érica Zíngano. A nova geração, com a exceção talvez de Reuben da Rocha, parece ter voltado ao bem-comportadismo dos gêneros bem delineados. Não que não estejam produzindo algumas coisas lindíssimas dentro dos gêneros reconhecíveis. Perdoem: não seria eu se eu não fizesse uma provocaçãozinha. E dizem que é sempre bom ser-se a si mesmo, a não ser que se possa ser um unicórnio. Aí é melhor ser um unicórnio. Mas unicórnios são híbridos e já disse ter a impressão de que temos um certo horror-asco crítico ao híbrido. Talvez por isso certa defasagem ensaística de liberdade? Poderíamos parir ao menos mais ornitorrincos.

§

A parte 2 era só um murmúrio meu, dizendo que sinto muita falta da crítica impressionista.

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domingo, 25 de fevereiro de 2018

CONVERSA SOBRE ENSAÍSMO (parte 1)


Uma pergunta aos colegas brasileiros. Eu estaria certo em afirmar que o gênero “ensaio” é praticado de forma bastante específica entre nós? De uma forma que talvez se atenha demais ao gênero acadêmico-expositivo? Ou a maneira bastante livre com que os estadunidenses, por exemplo, praticam o “ensaio” esteja mais próxima do que nós chamamos de “artigos” e “memórias”?

Quais são os seus livros de ensaios preferidos no Brasil, que não sejam ensaios sobre escritores no seu caráter mais acadêmico? (Não uso “acadêmico” de forma pejorativa). Ensaio em seu caráter mais... digamos... ora, montaigneano.

Penso aqui naquela prática bastante livre e fluida de autores tão diversos quanto Walter Benjamin (‘Infância berlinense por volta de 1900’), Roman Jakobson (‘A geração que desperdiçou seus poetas’) e Joseph Brodsky (‘On Grief and Reason’), e entre os estadunidenses: James Baldwin (‘The Devil Finds Work’), Susan Sontag (‘Illness as Metaphor’), Joan Didion (‘Slouching Towards Bethlehem’), William H. Gass (‘On Being Blue’). Recentemente: Mary Ruefle (‘Madness, Rack and Honey), Ta-Nehisi Coates (‘Between the World and Me’), Rebecca Solnit (‘A Field Guide to Getting Lost’), David Foster Wallace (‘A Supposedly Fun Thing I’ll Never Do Again’). Etc.

Em língua inglesa, o gênero teve uma explosão criativa no pós-guerra. É uma das coisas que mais amo em literatura. O prazer de observar um escritor ou escritora em liberdade, simplesmente pensando e discorrendo sobre coisas que muitas vezes nada têm a ver com literatura. É impressão minha, ou praticamos menos ou de outra maneira a liberdade do ensaio? Refiro-me ao ensaio como literatura em si e não como artigo, por mais brilhante que seja, sobre literatura. Temos grandes jornalistas, memorialistas, críticos literários. É apenas uma questão de idiossincrasias de catalogação?

Há livros que se tornaram clássicos, como ‘Itinerário de Pasárgada’, de Manuel Bandeira, ou ‘Idade do Serrote’, de Murilo Mendes, e que poderiam ser talvez enquadrados aqui nesta conversa. Mas tenho a impressão de que há uma especificidade (que considero negativa) no caso brasileiro.

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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Texto em que o poeta medita sobre os custos da beleza do menino-garçom do outro lado do balcão no Café La Pompe em Bruxelas



Teus olhos puxados de gato
e o nariz curvado de águia
escancaram desmascaram
a teia
de heranças que compartilhas
com felinos e aves
em nossos genes que sabem
modelar urdir tecer
nossas roupas feitas
de pelos penas escamas
mas que seguem
a planta arquitetônica
a técnica de alfaiataria
o manual de instruções
escrito em meio a catástrofes
as climáticas as vulcânicas
as meteóricas as viróticas
que extinguiram uns felinos
e levaram outras aves
a se lançarem às águas
a estratégia dos pinguins!
e fizeram de guaxinins
golfinhos
e de certos dinossauros
galinhas
e pergunto que fuzarca
genocida homosapiense
terá doado a ti
menino-garçom
estes olhos felinos
este nariz aquilino
que mulheres pagaram
com o útero 
pelas invasões sucessivas 
nesse continente
que hímens rasgados à força
custearam
tuas formas texturas e cores
garçom-menino
é cara a beleza
custa sim caro
a beleza herdada
por tantas violências
as expansionistas
as emancipatórias
sem notas de rodapé
nos livros de história
eu me pergunto
aqui em Bruxelas
Capital da Desunião
que gauleses e romanos
hoje esquecidos
que francos e normandos
hoje escondidos
nesses olhos e nariz
espiam-me espiar-te
resta-me só esta
excitação ovulante:
compartilhar a luz
com tuas pupilas
compartilhar o oxigênio
com tuas narinas
mesmo que o gás carbônico
que produzo
seja rejeitado
pelos teus pulmões
assim visitamo-nos
um ao outro
assim entramos
um no outro
assim contribuímos
com essa teia
que os dois coabitamos
com gatos e águias
e as outras cobaias
felinamente aquilinos
aquilinamente felinos

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