segunda-feira, 8 de março de 2010

Algumas mulheres na escrita poética brasileira



NOTA: Este texto, com sua pequena seleção, não tem a menor ambição de instituir ou influir em cânones. É guiada apenas pelo prazer e por parâmetros pessoais, pensando na influência e importância específica de algumas mulheres para muitos poetas de hoje.


A textualidade em algumas poetas brasileiras 

do século XX e início do XXI



por Ricardo Domeneck


Durante seus primeiros séculos de criação, as mulheres estiveram quase completamente ausentes da escrita da poesia e literatura brasileiras oficiais e registradas, com a exceção de uma ou outra moralista árcade. Personagens, manifestações do desejo masculino. De Marília, sabemos o que fluiu pela garganta de Dirceu. Como sabemos que a moça Iracema era muito formosa, com seus lábios de mel ou, de Capitu, o que Bentinho tinha a dizer. Apenas no final do século XIX uma mulher alcançaria certo renome com seu trabalho poético, como foi o caso de Francisca Júlia (1871 - 1920), a partir da publicação de seu Mármores (1895). Dizem que escandalizou a sua época, talvez por sonetos como "Dança das centauras", com versos tais: "Patas dianteiras no ar, bocas livres dos freios, / Nuas, em grita, em ludo, entrecruzando as lanças, / Ei-las, garbosas vêm, na evolução das danças / Rudes, pompeando à luz a brancura dos seios".

Deste lado de cá do modernismo, colocamos toda a poesia daquela época sob suspeita, distantes do nosso paladar, mas, lendo com olhos livres, não é difícil perceber que Francisca Júlia tem alguns sonetos sofisticados e melhores que os de muitos de seus contemporâneos machos e famosos. Há, em minha opinião e leitura, um coisismo muito mais concreto e objetivo em um soneto como este "Egito", abaixo, que em muito da poesia parnasiana de antologias.

EGITO
Francisca Júlia

No ar pesado, nenhum rumor, o menor grito;
Nem no chão calvo e seco o mais pequeno adorno;
Um velho ibe somente arranca um raro piorno
Que cresce pelos vãos das lájeas de granito.

A aura branda, que vem do deserto infinito,
Arrepia, ao de leve, a água do Nilo, em torno.
Corre o Nilo, a gemer, sob um calor de forno
Que, em ondas, desce do alto e invade todo o Egito.

Destacando na luz, agora o vulto absorto
De um adelo que passa, em caminho da feira,
Dá mais um tom de mágoa ao vasto quadro morto.

Bate na areia o sol. E, num sonho tranqüilo,
Pompeia, ao largo, a alvura uma barca veleira,
A tremer, a tremer sobre as águas do Nilo.


de Mármores (1895).


O Grupo de 22 não mudou muito a situação. O obra de Patrícia Galvão, por exemplo, só seria resgatada na década de 80 graças a Augusto de Campos e seus esforços hercúleos de sempre, com seu Pagu: vida-obra (1982). Pagu foi uma daquelas figuras larger than life, com personalidades radiantes, e nos deixou alguns textos de grande talento imagético, com versos que poderiam conectá-la, por veios poéticos subterrâneos, a poetas como Pedro Kilkerry, de "É o silêncio", por exemplo. 

Natureza morta *
Patrícia Galvão, publicado com o pseudônimo de Solange Sohl

Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas.
Estou dependurada na parede feita um quadro.
Ninguém me segurou pelos cabelos.
Puseram um prego em meu coração para que eu não me mova
Espetaram, hein? a ave na parede
Mas conservaram os meus olhos
É verdade que eles estão parados,
Como os meus dedos, na mesma frase.
Espicharam-se em coágulos azuis.
Que monótono o mar!
Os meus pés não dão mais um passo.
O meu sangue chorando,
As crianças gritando,
Os homens morrendo,
O tempo andando,
As luzes fulgindo,
As casas subindo,
O dinheiro circulando,
O dinheiro caindo.
Os namorados passando, passeando,
O lixo aumentando,
Que monótono o mar!

Procurei acender de novo o cigarro.
Por que o poeta não morre?
Por que o coração engorda?
Por que as crianças crescem?
Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?
Por que existem telhados e avenidas?
Por que se escrevem cartas e existe o jornal?
Que monótono o mar!
Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo.
Se eu ainda tivesse unhas
Enterraria os meus dedos nesse espaço branco.
Vertem os meus olhos uma fumaça salgada,
Este mar, este mar não escorre por minhas faces.
Estou com tanto frio, e não tenho ninguém ...
Nem a presença dos corvos.


Não estou me esquecendo de Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa, é que seus trabalhos me parecem pertencer a uma linhagem um tanto distinta do modernismo brasileiro. Na década de 20, Meireles ainda estava envolvida com os intelectuais católicos da revista Festa e o cenáculo cruz-sousista. Gosto do trabalho de Meireles e ela nos deu uma lírica cristalina e simples, muito bonita, que provavelmente será lida ainda por muito tempo. Isso aqui é realmente muito elegante:

Canção
Cecília Meireles

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
- depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito;
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.



Pessoalmente, prefiro o trabalho de Henriqueta Lisboa (1901 - 1985), especialmente os dos seus livros da década de 60 e 70, como Além da imagem (1963), O alvo humano (1970) e Reverberações (1976). Além da imagem é um volume ótimo, cristalino, no qual a autora se mostra não mais tão ligada à poética simbolista, mas com uma linguagem mais tesa e consciente de si. Ou, talvez como escreve no poema "Condição", deste volume: "Fecham-se, pois, os reposteiros / do princípio e do fim. / Cessam as vibrações orquestrais / do transcendente, do inefável, / do absoluto."

Frutescência
Henriqueta Lisboa

Em solidão amadurece
a fruta arrebatada ao galho
antes que o sol amanhecesse.

Antes que os ventos a embalassem
ao murmurinho do arvoredo.
Antes que a lua a visitasse
de seus mundos altos e quedos.
Antes que as chuvas lhe tocassem
a tênue cútis a desejo.
Antes que o pássaro libasse
do palpitar de sua seiva
o sumo, no primeiro enlace.

Na solidão se experimenta
a fruta de ácido premida.

Mas ao longo de sua essência
já sem raiz e cerne e caule
perdura, por milagre, a senha.

Então na sombra ela adivinha
o sol que a transfigura em sol
a suaves pinceladas lentas.
E ouve o segredo desses bosques
em que se calaram os ventos.
E sonha invisíveis orvalhos
junto à epiderme calcinada.
E concebe a imagem da lua
dentro de sua própria alvura.
E aceita o pássaro sem pouso
que a ensina, doce, a ser mais doce.

de Além da imagem (1963)

As páginas de poesia na Rede geralmente concentram-se na obra inicial de H. Lisboa, mais mística e abstrata, dos poemas de A face lívida (1945) e Flor da morte (1949), que foram, no entanto, bem recebidos por críticos inteligentes como Sérgio Buarque de Holanda. Mas a obra final de Henriqueta Lisboa nos entregou uma poeta não apenas consciente de sua condição como mulher, como uma escritora bastante material.


Modelagem / Mulher 
Henriqueta Lisboa

Assim foi modelado o objeto:
para subserviência.
Tem olhos de ver e apenas
entrevê. Não vai longe
seu pensamento cortado
ao meio pela ferrugem
das tesouras. É um mito
sem asas, condicionado
às fainas da lareira
Seria uma cântaro de barro afeito
a movimentos incipientes
sob tutela.
Ergue a cabeça por instantes
e logo esmorece por força
de séculos pendentes.
Ao remover entulhos
leva espinhos na carne.
Será talvez escasso um milênio
para que de justiça
tenha vida integral.
Pois o modelo deve ser
indefectível segundo
as leis da própria modelagem.

in Pousada do Ser (1982)


Publicado pela Editora Global há alguns anos, o volume Os Melhores Poemas de Henriqueta Lisboa, com organização de Fabio Lucas, traz alguns dos excelentes poemas de Além da imagem e exemplos do que há de melhor em poesia minimalista no Brasil, com textos do volume Reverberações (1976), com o qual muitos de nós hoje poderíamos aprender a escrever poesia realmente concisa, sem ser desarticulada.


Calendário
Henriqueta Lisboa

Calada floração
fictícia
caindo da árvore
dos dias


de Reverberações (1976)


No pós-guerra, a situação se transforma consideravelmente. Clarice Lispector (1925 - 1977) e Hilda Hilst (1930 - 2004) são guias maiores para uma est-É-tica contemporânea, incontornáveis, imprescindíveis. É na década de 50, enquanto estávamos (e seguimos) ocupados com os machos-alfa com pitadas de enfant terrible das neovanguardas, que estas mulheres começam a entregar alguns dos artefatos est-É-ticos mais perturbadores do pós-guerra brasileiro, com trabalhos como A maçã no escuro (1951), A paixão segundo G.H. (1964) e A hora da estrela (1977), de Lispector, e Qadós (1973) e A obscena senhora D (1982), ou poemas tão bonitos como os de Júbilo Memória Noviciado da Paixão (1974) ou Da morte. Odes mínimas (1983), entre os outros volumes maravilhosos de Hilst.


Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.


Do desejo (1998)


ou


Difícil de explicar, ia dizendo aos borbotões que essas coisas senhora são para fazer uma limpeza na minha alma devo começar por aí não sei se a senhora entende mas o branco é demais importante para começar as orações e acendendo as velas fica visível para a Excelência que sou eu mesmo que me acendo, matéria de amor etc. etc. A maioria revirava os olhos, torcia a boca, umas coçavam os cotovelos, a cintura, diziam: homem, se queres comida eu entendo mas não tenho, o resto é confusão, despacha-te. Às vezes davam-me panos pretos, ou alaranjados ou com listas ou vermelho com florzinhas, nunca o branco, Excelência, e como último recurso para conseguir os círios eu entrava numa loja aos solavancos, o olho girassol e gritava: duas velas por favor, a mãe agoniza, em nome do vosso nosso Deus duas velas para as duas mãos de mamãe. E saía como o raio, como o cão danado, como Tu mesmo que te evolas quando Te procuro, ai Sacrossanto por que me enganaste repetindo: hic est filius meus dilectos, in quo mihi bene complacui? Nudez e pobreza, humildade e mortificação, muito bem, Grande Obscuro, e alegria, é o que dizem os textos, humilde e mortificado tenho sido, mas alegre, mas alegre como posso? Se continuas a dar voltas à minha frente, estou quase chegando e já não estás e de repente Te ouço, bramindo: mata o rei, Qadós, o inteiro de carne e de pergunta, pára de andar atrás de mim como um filho imbecil. Como queres que eu não pergunte se tudo se faz pergunta? Como queres o meu ser humilde e mortificado se antes, muito antes do meu reconhecimento em humildade e mortificação, Tu mesmo e os outros me obrigam a ser humilde e mortificado? Como queres que eu me proponha ser alguma coisa se a Tua voracidade Tua garganta de fogo já engoliu o melhor de mim e cuspiu as escórias, um amontoado de vazios, um nada vidrilhado, um broche de rameira diante de Ti, dentro de mim? E as gentes, Máscara do Nojo, como pensas que é possível viver entre as gentes e Te esquecer? O som sempre rugido da garganta, as mãos sempre fechadas, se pedes com brandura no meio da noite que te indiquem o caminho roubam-te tudo, te assaltam, e se não pedes te perseguem, se ficas parado te empurram mais para frente, pensas que vais a caminho da água, que todos vão, que mais adiante refrescarás pelo menos os pés e ali não há nada, apenas se comprimem um instante, bocejam, grunhem, olham ao redor, depois saem em disparada. Andei no meio desses loucos, fiz um manto dos retalhos que me deram, alguns livros embaixo do braço, e se via alguém mais louco do que os outros, mais aflito, abria um dos livros ao acaso, depois deixava o vento virar as folhas e aguardava. O vento parou, eis o recado para o outro: sê fiel a ti mesmo e um dia serás livre. Prendem-me. Uma série de perguntas: qual é teu nome? Qadós. Qa o quê? Qadós. Qadós de quê? Isso já é bem difícil. Digo: sempre fui só Qadós. Profissão. Não tenho não senhor, só procuro e penso. Procura e pensa o quê? Procuro uma maneira sábia de me pensar. Fora com ele, é louco, não é da nossa alçada, que se afaste da cidade, que não importune os cidadãos. Sou quase sempre esse, matéria de vileza e confusão para os outros, para os Teus olhos um nada que te persegue, um nada que se agarra às tuas babas, e como é difícil te perseguir, nem o rasto, nem a estria brilhante (aquela que os caracóis deixam depois da chuva) eu vejo, pois é pois é, seria fácil para o teu inteiro gosma e fereza, o teu inteiro amoldável, me dar umas pequeninas alegrias e te mostrares um dia Grande Caracol baboso aguado brilhante, te mostrares um dia intimidade, vê Cão de Pedra, agora não sei, fui íntimo para um uma ou dois, nem me lembro, e a princípio como me trataram bem, cuidado na fala, langor no olhar, a minha palavra era véu dourado que pouco a pouco pousava, translúcido, luminosidade delicada, eu Qadós falava e o espaço era pérola, leite fresco, pistilo, um ou três relinchos para aquecer ainda mais tanta mornura, sorriam, lábio frouxo encantado, gula de me possuir inteiro, se era mulher ela me dizia isso mesmo gula de te possuir inteiro, Qadós, se era homem também, aí eu me escondia, dias e dias sobre Plotino, outros dias apenas flutuava sobre o verde dos parques, de longe me seguiam, eu de névoa transfixado, melindre dissolvência, Qadós O Inteiro Desejado.

de Qadós (1973)

§

No entanto, uma das melhores escritoras do pós-guerra, Maria Ângela Alvim (1926 - 1959), acabou, para nossa perda, deixada às margens do cânone, ainda que tenha sido a autora de alguns dos textos mais claramente logopaicos da poesia do pós-guerra, poesia com um veio místico que, no entanto, não descamba para o que Wittgenstein chamava de mero tranzendentales Geschwätz, ou baboseira transcendental.


dos Poemas em Agosto
Maria Ângela Alvim

Moro em mim? No meu destino, largado
partido em mil?
Moro aqui? Demoraria
sempre aqui, sem me saber - fugindo sempre
estaria?
Eis um lugar. Degredo
(de quê?). Dimensão se perseguindo
num sonho? - Sim, que me acordo.
Tudo existe circunstante
e ninguém para me crer.
Sou eu o sonho,
momento da ausência alheia (que devasso quase fria).
Morte, vida recente,
subindo em mim a resina,
ungüento de noite, amor.

As sombras e seus véus,
tantos véus - o mais sucinto
preso a meu corpo (aparente?)
me divide em dois recintos.
Um deles sendo equilíbrio
noutro posso me conter.
Avanço no sono aberto
até a altura do dia,
fria, fria,
mais fria, minha pele
filtra a aurora - neste tempo
aquela hora, seu pulso de instante e ocaso.

Eis que me encontro. Limite
de transparência e contato
entre a luz e meu retrato, na casta
parede - a louca?
Marulho d'água, caindo
dentro de mim, claridade.
Graça de mãos mais presentes,
que minhas mãos, já vazias
de sua forma, na palma.
Que gesto extenso as reteve
sempre além, configuradas?

E este azul, quase em branco
se desfazendo (na carne?).
Ah! Três retinas cortadas
de um prisma, se amanhecidas
nestes vidros, na vigília.
Ah! Três retinas pousadas
em ver, em ver contemplando
(ser, será o esquecimento
de quanto somos - pensando?).

§

Quero crer-me este sentido
de longa memória branca.
Sobre ele não lembrar,
- ficar, ficar,
no encontro de tudo em pouco:
o tempo se refez no instante
deste espaço, superfície,
chão que nem me sustenta
(dura sou, eu, e dura amargura é a minha).

Não, não me lembrarei,
seria pensar começos
e outros fins - ó lunares
lembranças, doridos passos
(muitos fui acompanhando
de longe e mais me pisaram
aqui, ali, onde sei).

Estou? Se estou me consentem
os gestos e os movimentos?
Nenhum ruído se atenta
que dentro não fosse ouvido.
E tudo em mim se repete
enquanto durante e sempre
a lembrança vai baixando
a seu leito mais dormente.

Os pensamentos seriam
roteiros menos sofridos?
Deixá-los que se solveram
nestes noturnos tormentos
da mente se procurando,
da idéia, refluindo
sobre dúvida, distância
e certeza, aéreo marco
de um repouso em si medido.

Deixá-los. Deixar-me enquanto
existe um consenso oculto.
Pensarei que desvivi
num limite-lucidez
lá e, no entanto, aqui.

in Maria Ângela Alvim, Poemas (Unicamp, 1993).


Na década de 50 estrearia ainda outra elegante poeta lírica, a capixaba Marly de Oliveira (1935 - 2007), com uma estreia muito bonita em Cerco da primavera (1957) e o também muito bonito A suave pantera (1962). Confesso gostar bastante também de O mar de permeio (1998), costumava ler e reler alguns daqueles poemas em livrarias, em pé, na época em que foi lançado o livro. Quem pensa que um texto como este, abaixo, é fácil de fazer e atingir, está muito enganado. Compreende-se, de certa maneira, como isso pôde passar despercebido em uma década como a de 60, mas é nossa perda pessoal que sigamos ignorando poesia desta qualidade.


A suave pantera
Marly de Oliveira

I


Como qualquer animal,
olha as grades flutuantes.
Eis que as grades são fixas:
Ela, sim, é andante.
Sob a pele, contida
- em silêncio e lisura -
a força do seu mal,
e a doçura, a doçura,
que escorre pelas pernas
e as pernas habitua
a esse modo de andar,
de ser sua, ser sua,
no perfeito equilíbrio
de sua vida aberta:
una e atenta a si mesma,
suavíssima pantera.



II

É suave, suave, a pantera,
mas se a quiserem tocar
sem a devida cautela,
logo a verão transformada
na fera que há dentro dela.
O dente de mais marfim
na negrura toda alerta,
e ser do princípio ao fim
a pantera sem reservas,
o fervor, a força lúdica
da unha longa e descoberta,
o êxtase da sua fúria
sob o melindre que a fera,
em repouso, se a não tocam,
como que tem na singela
forma que não se alvoroça
por si só, antes parece,
na mansa, mansa e lustrosa
pelúcia com que se adorna,
uma viva, intensa jóia.



de A suave pantera (1962)

§

Para uma compreensão da textualidade brasileira do pós-guerra, parece-me ainda estimulante pensar nas implicações poéticas do trabalho de Mira Schendel (1919 - 1988), sobre as quais escrevi um artigo para a Modo de Usar & Co., em colaboração com Marília Garcia.


(Mira Schendel, "Bendizei o senhor")

§

Estreando na década de 60, uma das poetas brasileiras que mais me interessam no pós-guerra, como já deixei claro inúmeras vezes, é a paulista Orides Fontela (1940 - 1998), com sua poesia oscilando entre o simbólico e o semiótico ou, como já escrevi em outro momento, "como se sua poesia não se decidisse de forma definitiva entre a destruição do mundo por uma força centrípeta ou centrífuga. Seus poemas têm, em minha opinião, apesar da superfície polida de cristal, uma violência sem muitos paralelos na poesia do pós-guerra no Brasil. O mesmo tormento possa talvez ser sentido na prosa e poesia de Hilda Hilst, mas nesta outra mística a solução era o escárnio e a exuberância do dilúvio, enquanto em Orides Fontela o desértico, daquele que jamais possuiu coisa alguma, era preferível." Algo deste fluxo e refluxo, entre o concreto e o abstrato, entre o símbolo e o signo, pode ser sentido em vários poemas. Em "São Sebastião", do livro Helianto (1973), temos a concreção centrípeta do símbolo fazendo-se signo, do verbo fazendo-se carne, do mito ganhando corpo de sangue e osso.

São Sebastião
Orides Fontela


As setas
– cruas – no corpo

as setas
no fresco sangue

as setas
na nudez jovem

as setas
– firmes – confirmando
a carne.


ou

Clima

Neste lugar marcado: campo onde
uma árvore única
se alteia

e o alongado
gesto
absorvendo
todo o silêncio - ascende e
imobiliza-se

(som antes da voz
pré-vivo
ou além da voz
e vida)

neste lugar marcado: campo
imoto
segredo cio cisma
o ser
celebra-se

- mudo eucalipto
elástico
e elíptico.



Aqui chamo a atenção para o trabalho de Mariajosé de Carvalho (1919 - 1995), que descobri há pouco tempo e precisa ser urgentemente reeditado:

o iniciado
Mariajosé de Carvalho


que nome te dar

na faca e no gume
na lima e no lume
na lama dos limos
na lança no laço
na trança no traço
na trama dos limbos

que névoa te envolve
                   e densa
turva
teu sacro perfil
se destravando
                        a treva
emerso a iluminaste
e
na dança do templo
que o corpo enlaça
a pupila embaça
o passo trava
e o sangue desata
em salva de prata
contido o lábio
na doce taça

que nome te dar

que medo te impele
que tolhida asa
o vôo te impede
que secreta chaga
de ferida pluma
te enluta o âmago

e que maga imagem
te dispara a seta
que o peito afeta
em bruma
               e arfagem
ó
iniciado

que êxtase
nos espera
que ardente
dardo
através da estirpe
         de transe
           e treva
           a dor
              extirpa
           o ir
           é nosso rio
         ao bramir
         do touro
           o ouro
          de teu corpo
                           ao sol
o manso bezerro
o túrgido úbere
a plúmbea ave
o fruto maduro
lança e raiz
o chão e o sal
tua urdidura são
ao sol posto
evocamos
             a chaga
que a taça embaça
e o violáceo laço
de obscura trama
neste agosto
                 deposto
nos envolve o rosto
                   a palavra
                   o chá



Na década de 70 é que ocorre a manifestação clara da importância que algumas mulheres passariam a ter para a poesia brasileira contemporânea. É inevitável aqui falar sobre aquela que já foi de adorada a infame, mas hoje parece estar aos poucos encontrando a apreciação exata de seu incrível talento, em um trabalho realmente interessante e surpreendente, especialmente quando nos lembramos que a autora morreu com apenas 31 anos: Ana Cristina Cesar (1952 - 1983). A própria poeta estaria entre as primeiras a realmente abordar a questão de uma escrita feminina, retornando, por exemplo, a Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa, mas criticando-as, em suas palavras, pela admiração exagerada por homens como Carlos Drummond de Andrade, insinuando certa "dependência" estética em suas predecessoras, um desejo de imitação que denotava subserviência. A própria A.C. Cesar passaria a devorar intertextualmente, mas de forma menos respeitosa, poemas de homens como Drummond e, principalmente, Jorge de Lima. Como em qualquer poeta a morrer tão jovem, deixou-nos alguns poemas que hoje me parecem horrorosos e outros que me parecem primorosos, mas creio que Ana Cristina Cesar seguirá sendo um vulto importante nas décadas por vir.

Flores do mais
Ana Cristina Cesar

devagar escreva
uma primeira letra
escreva
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais


ou

Poema

Quando entre nós só havia
uma carta certa
a correspondência
completa
o trem os trilhos
a janela aberta
uma certa paisagem
sem pedras ou
sobressaltos
meu salto alto
em equilíbrio
o copo d’água
a espera do café


§

Apenas o pudor me impediria de falar sobre outra poeta surgida na década de 70, que produziu vários  poemas de que confesso gostar bastante: a mineira Adélia Prado (n. 1935), especialmente alguns de Bagagem (1975) e de O pelicano (1987). Adélia Prado também se entregaria à reescritura dos textos de certos homens, localizando-se em algum ponto equidistante entre a admiração das poetas dos anos 30 e a sedução de Ana Cristina Cesar?

Com licença poética
Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
-- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


§

Fatal

Os moços tão bonitos me doem,
impertinentes como limões novos.
Eu pareço uma atriz em decadência,
mas, como sei disso, o que sou
é uma mulher com um radar poderoso.
Por isso, quando eles não me vêem
como se dissessem: acomoda-te no teu galho,
eu penso: bonitos como potros. Não me servem.
Vou esperar que ganhem indecisão. E espero.
Quando cuidam que não,
estão todos no meu bolso.



Entre as duas famosas poetas da década de 70, as senhoras Cesar e Prado, há outras que aprecio, menos conhecidas mas talvez até melhores em vários aspectos, como a carioca Elisabeth Veiga (n. 1941), que estreou em 1972 com o volume Gosto de fábula, e só vinte anos mais tarde voltaria a publicar, o que talvez explique um pouco sua obscuridade.

Perda
Elisabeth Veiga

Da primeira vez que me quebraram
toda
dobrei os joelhos,
caí sem joelhos,
me dobrei toda sobre
o vazio dos braços.
Os ossos tiritavam,
a cabeça estalava
um sino:
toda um estaleiro
sem navios,
só pavios de viagem,
toda uma estalagem
bêbada de sombras
e sinas,
não sabia mais
quantas primaveras
fazem um cisne,
não sabia
beber a não ser
com as mãos em cuia,
eu era um pires
com a cara redonda
que os gatos lamberam
e fugiram,
um piano com febre
em desarticulação nervosa,
uma pátina derretida,
uma patavina
atarantada
com os caracóis da poeira
sumida no horizonte.



ou


Algias

Elegia 1

Já repeti o antigo encantamento
e só o cimento respondeu,
rastro de cinzas de maçã vencida,
desvestígio de gosto,
estanque julho que moeu vindimas
e deixou no espaço seu vinagre branco.
Onde havia um deus
os dias emboloram nuvens
de estrita agonia antepassada
que se olha no espelho
antes do adeus.
Inexiste, não soa, o que havia
fixou-se atrás da mente:
fim estalado de fotografia.
É agosto seco. É hoje e nunca houve.


Alergia 2

Já repeti o velho encantamento
e o antigo deus Xipanto não azarou
na minha gleba de piche solferina.
Peguei o convescote, as sandálias murchas
e mudei de travesseiro lírico,
para afinar meu sambão em outros infernos.


§

Também com estreia na década de 70, mas que somente na década de 90 alcançaria maior atenção para seu trabalho, temos a maranhense, vivendo no Rio de Janeiro, Lu Menezes (n. 1948). Gosto especialmente de poemas como estes:

Corpos simultâneos de cisne
Lu Menezes

Branco ideal e branco real
o mesmo cisne no espaço
de um saco de sal

ocupam
mas eis
transmigrante

lei que em mantimentos transfez
obsoleta
ampulheta: um cisne de sal

segue o curso
do tempo

e míngua

até ser
somente

de plástico transparente



ou


Molduras

Sonhara ter,
refletida em explícitos espelhos,
vida burguesa
de pintura holandesa do século XVII

Tocou-lhe ser
simples Sísifa de si,
com rotina que ganhou, todavia, algum valor
quando perdida em frios dias de terror
como o
Jóquei perdido de Magritte se achou

Hoje palmeiras não mais a hasteiam
Resta o passeio guiado por certo sapato
de gáspea longa que cai como meia

Como um matiz de Matisse,
manter-se à superfície
é dom de jeunesse

- jamais de velhice,
turno de Turner,
pendor invisibilizador



Não poderia deixar de falar da espetacular prosadora Márcia Denser, antes de deixar a década de 70. Ainda em atividade, Denser tem textos impressionantes e apenas a incompetência crítica no país a mantém na obscuridade. Talvez a descubram quando estiver às vésperas de adentrar o esquife, como fizeram os patifes com Hilda Hilst.

Deitamos ouvindo Roberto Carlos, a voz dos motéis, “por que me arrasto a seus pés?”. Porque sexo é isso mesmo. Essa gana de rastejar com Roberto, no coito dos motéis. Ele diz:esse motel já foi bom, e eu olho o banheiro, caixa amplificadora de fibroplast, as toalhas embaladas em sacos plásticos, os lençóis castanhos com ramagens duvidosas entre encardido e vestígios de cor, os três espelhos redondos, montados em curvim (um em frente ao outro, no meio a cama, o terceiro no teto, sobre a cama), claro que para transformar-nos numa espécie de confuso coquetel de siris assados: pernas, braços, carnes vivas, canteiro de patas, antenas, pêlos moventes, espiando de esguelha uma outra hidra em perspectiva no espelho da frente, de trás, de cima, de baixo, devassados, misturados, confundidos, a 850,00 a diária, porque (e então eu sei porque) todos os motéis é sempre o mesmo motel, o animal mitológico, a quimera que se arrasta interminávelmente na madrugada ao som de Roberto Carlos.

(trecho de "O animal dos motéis", de Márcia Denser)


Surgindo na década de 80, duas poetas atraem minha atenção, muito diferentes entre si: Lenora de Barros (n. 1953), com um trabalho que transita entre a escrita e a visualidade, manifestando-se em textualidade poética, e Miriam Alves (n. 1953), com um trabalho de grande força política.


Lenora de Barros

§

Fumaça
Miriam Alves



Estou a toque de máquina
corro, louca, voo, suo
a fumaça sou eu

Estou a toque de nada
vivo, ando
como a comida envenenada
e o comido sou eu

estou a toque de selva
os ferros torcidos, sacudidos
dentro de uma marmita
e a marmita sou eu

Nego, mas vivo dizendo
Sim
a tudo que me dói na cabeça
e o doido sou eu


Paro, mas estou sempre correndo
doem as pernas, os pés
e este corpo é o meu

Amanhã me encontra acordada
como a noite deixou
e o insone sou eu

Indago, mas não estou escutando
a pergunta anda solta
e ninguém explicou
que a resposta sou eu


(in Cadernos Negros n. 5, 1982)



A década de 90 gerou talvez um retorno à poética do simbólico da década de 30, mas mulheres como Josely Vianna Baptista (n. 1951) e Claudia Roquette-Pinto (n. 1963) nos deram alguns poemas muito bonitos. Gosto destes dois poemas, ainda que pudesse também usá-los para dialogar sobre muitas de minhas discordâncias quanto a certas escolhas dos poetas daquela década, algo que já expus em diversos momentos. Prefiro, aqui, ler os poemas:

cadeira em mykonos
Claudia Roquette-Pinto

I

nela não se auréola, nem é falsa
a idéia, que dela se alça,
como o fogo da lenha
um grego, aliás, quem a
aprisionou, como a um inseto
sobre a camurça-conceito:
na língua, terceiro objeto,
menos cadeira, se a escrevo
tampouco devo (se a quero)
nos arrabaldes das sílabas
buscar madeira de mobília
preciso (para que a tenha)
adestrar-me ao negativo,
do branco contíguo
da parede, hauri-la
como figura: literal
(modo-de-éden) nua
entre lençóis de cal


II

ícaro sem penas
noiva muda em cendais de secagem rápida
quadrúpede engendrado para solidões


§

Onde o céu devore a terra
Josely Vianna Baptista


o breu devore à noite
o próprio rasto;
no solo ocre, de rojo,
o escuro escureça,
noite tão noite
que se dobre em dia
os charcos zoem
outra vez insetos;
virem os regos
de lodo
em que chafurdo
– com o sol –
pó púrpuro,
ou longos rolos
que o vento
eleva e enovela
a prumo o solo fusque
a si mesmo,
e a tarde entardeça
num crepúsculo
bojo de sombras,
lusco-fusco de névoas
(frutos apodrecendo
na gamela)


§

Estreando no final da década de 90, a pernambucana Jussara Salazar (n. 1959) tem publicado belos exemplos de poesia tesa, unindo-se a poetas tão distintas entre si quanto Marly de Oliveira, Elisabeth Veiga e Ana Cristina Cesar, em seus melhores momentos.

Plegária
Jussara Salazar


Verde, âmbar as
pedras,
e as violetas rosadas –
eternas e o humo que
cobria o chão negro
como a noite, e quisera
falar-lhe em seu idioma
antigo
e recordar os lobos
correndo ao redor da
casa e a hera selvagem
cobrindo os vestidos e
os animais, pequenos,
nos bordados coloridos e
ramitos a entreabrir-se
brancos e escuros, cristal
de la luna ao reflexo
como a aparição das
lebres e das ovelhas
correndo os campos sob
as nuvens e a subterra
profunda do horto na
pele do ar em minutos
precisos, envolvendo o
tempo quando vi morrer
o sol, e o vento girando,
soprando mirações da
cor da água, nas rosas e
nos insetos. Quisera falar
seu idioma antigo e
guardar-lhe nas luzitas
do espelho como os
cravos também tão
antigos sobre a toalha
branca, e uma lua de
seda derrama um rosário
de ouro mais os rumores
de um sonho, quisera.


§

Pessoalmente, encontro também muito estímulo no trabalho de uma artista como Jac Leirner (n. 1961), com seu trabalho de colagem textual e visual.


(trabalho visual de Jac Leirner)

§


Adentrando o século XXI, posso dizer, sem dificuldade ou hesitação, que a maior parte da poesia brasileira que me interessa hoje tem sido escrita por mulheres. Algumas são ainda inéditas em livro, como Izabela Leal (n. 1969) e Juliana Krapp (n. 1980).

Oriental Hotel
Izabela Leal

na poeira se perdem os amantes,
entre os escombros.
as esquinas com letreiros luminosos
dardejam os passantes de brasas nas mãos
e bocas transversas
de batom.

antes foi cingapura

eles estavam lá,
na solidez dos quartos de hotel,
e se desencontravam
sempre
e sempre
sob a intermitência do amor.

no futuro repousam as memórias perdidas

um comboio atravessa as noites de Hong Kong
- o eterno desvio,
uma dobra de tempo no cetim do lençol -
enquanto as imagens passam
e rasgam
as sombras do ventre.

ela sacudia as pernas nos clubes noturnos
e o neon emanava um manto de andróide.
era um adágio,
solúvel em água como uma das tantas palavras
anotadas em nanquim com caligrafia milenar
a escorrer pelos poros
de papel.



§

Limite
Juliana Krapp

Sebe é um acúmulo de varas entretecidas
cerceando
por vezes sim por vezes não

eu sei
do esforço para persuadir
naturezas terríveis

simultaneamente
à graça dos perímetros
que permanecem estanques

(a dor de coabitar
tanto as frinchas quanto os
confinamentos)

Quando rarefeitos, os movimentos
aguardam mais do que a conclusão, preferem
o desdém e o resguardo
ou mesmo esse estalido
(um arquejo)
embalado
pelo embaraço hipnótico
das pequenas sombras

Somente as ventanias são de fato enamoradas
e apenas nelas alijam-se
as imundícias mais profundas

como somente os ramos
estraçalham-se e engravidam-se
num único carretel de músculos em escombros

(um aparelho de tensões
alimentado pelo ritmo
dos sumidouros)



Com outras destas mulheres tenho tido o prazer de trabalhar e dialogar, como as companheiras Angélica Freitas e Marília Garcia, sobre quem já escrevi em outras ocasiões.

Linha 14
Marília Garcia


I.

custa esquecer o último túnel, o tempo
subterrâneo e o demorar
aquela hora.

no mapa, é como um fio lilás e o
vidro tem espessura de muralha:
quase um perigo iminente. enquanto
submergem em alta velocidade, não desvia
para ver quem vem atrás. ali
ainda atuam as leis
da gravidade

(sabe que precisa
responder mas talvez não entenda a
pergunta. um leve movimento
de rosto cobre os círculos
na parede) talvez não responda
porque gastou o
mecanismo.

II.

atravessou o cemitério antes
de descer as escadas, o viu
encostado no mármore branco,
4 passos para o sul, 17
para o oeste.

quer descer, escapar,
ninguém que tenha descido
pôde jamais voltar (não responde porque seu tempo
é diferente ou porque
já não entende).


III.

acima de 120 decibéis começa a correr
risco, mas insiste: você quer
vir comigo? o eco da
voz no vidro. do outro lado
sempre responde algo sem som,
um acento diferente
na falta de voz.

de 20 poemas para o seu walkman (2007)

§

sereia a sério
Angélica Freitas

o cruel era que por mais bela
por mais que os rasgos ostentassem
fidelíssimas genéticas aristocráticas
e as mãos fossem hábeis
no manejo de bordados e frangos assados
e os cabelos atestassem
pentes de tartaruga e grande cuidado

a perplexidade seria sempre
com o rabo da sereia

não quero contar a história
depois de andersen & co
todos conhecem as agruras
primeiro o desejo impossível
pelo príncipe (boneco em traje de gala)
depois a consciência
de uma macumba poderosa

em troca deixa-se algo
a voz, o hímen elástico
a carteira de sócia do méditerranée

são duros os procedimentos

bípedes femininas se enganam
imputando a saltos altos
a dor mais acertada à altivez
pois
a sereia pisa em facas quando usa os pés

e quem a leva a sério?
melhor seria um final
em que voltasse ao rabo original
e jamais se depilasse

em vez do elefante dançando no cérebro
quando ela encontra o príncipe
e dos 36 dedos
que brotam quando ela estende a mão


de Rilke shake (2007)

Aqui, permitam-me fazer uma justaposição, na colagem de vozes no trabalho de Veronica Stigger (n. 1973) e de Stela do Patrocínio (1941 - 1997). Stigger tem um trabalho de apropriação interessantíssimo de falas da rua, como em seu livro Delírio de Damasco (2012). Stela do Patrocínio, que nasceu em 1941, e viveu, desde 1962, internada na Colônia Juliano Moreira, só seria "descoberta" neste século. Sua fala poética chegou a nós transcrita de cassetes por Viviane Mosé, que organizou essa textualidade no volume Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue, 2002).

Não sou eu que gosto de nascer
Eles é que me botam para nascer todo dia
E sempre que eu morro me ressuscitam
Me encarnam me desencarnam me reencarnam
Me formam em menos de um segundo
Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver
Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto
Ou pra cabeça deles e pro corpo deles

(Stela do Patrocínio, em diagramação de sua fala por Viviane Mosé)

§

Quando eu era jovem
eu vomitava
que era uma beleza

(Veronica Stigger, Delírio de Damasco)


Gostaria de encerrar esta postagem, com uma minúscula seleção que não se quer completa ou canônica, justamente com aquela que a iniciou, a mulher na foto de abertura: Hilda Machado (1952 - 2007). Nascida no mesmo ano que Ana Cristina Cesar, escolheu o mesmo fim que esta, cerca de 25 anos mais tarde. Não publicou livro. Dois de seus poemas, incluindo o deslumbrante "Miscasting", abaixo, foram publicados por Carlito Azevedo na revista Inimigo Rumor número 10. Outros 4 poemas nós publicamos no segundo número impresso da Modo de Usar & Co.. Se houver no espólio de Hilda Machado outros poemas desta qualidade, seremos leitores de poesia felizes nesta década que está para se abrir.


Miscasting
Hilda Machado


estou entregando o cargo

onde é que assino
retorno outros pertences
um pavilhão em ruínas
o glorioso crepúsculo na praia
e a personagem de mulher
mais Julieta que Justine
adeus ardor
adeus afrontas
estou entregando o cargo
onde é que assino


há 77 dias deixei na portaria
o remo de cativo nas galés de Argélia
uma garrafa de vodka vazia
cinco meses de luxúria
despido o luto
na esquina
um ovo
feliz ano novo
bem vindo outro
como é que abre esse champanhe
como se ri

mas o cavaleiro de espadas voltou a galope
armou a sua armadilha
cisco no olho da caolha
a sua vitória de Pirro
cidades fortificadas
mil torres
escaladas por memórias inimigas
eu, a amada
eu, a sábia
eu, a traída


agora finalmente estou renunciando ao pacto
rasgo o contrato
devolvo a fita
me vendeu gato por lebre
paródia por filme francês
a atriz coadjuvante é uma canastra
a cena da queda é o mesmo castelo de cartas
o herói chega dizendo ter perdido a chave
a barba de mais de três dias

vim devolver o homem
assino onde
o peito desse cavaleiro não é de aço
sua armadura é um galão de tinta inútil
similar paraguaio
fraco abusado
soufflé falhado e palavra fútil

seu peito de cavalheiro
é porta sem campainha
telefone que não responde
só tropeça em velhos recados
positivo
câmbio
não adianta insistir
onde não há ninguém em casa

os joelhos ainda esfolados
lambendo os dedos
procuro por compressas frias
oh céu brilhante do exílio
que terra
que tribo
produziu o teatrinho Troll colado à minha boca
onde é que fica essa tomada
onde desliga



§

NOTA DO AUTOR: Há outras mulheres importantes no pós-guerra, que merecem maior atenção crítica, como Dora Ferreira da Silva e Zulmira Ribeiro Tavares, entre outras. Tentarei escrever sobre elas no futuro. Surgidas neste século, já escrevi em outros lugares sobre Fabiana Faleiros e Érica Zíngano, por exemplo. A seleção acima é apenas um início de contribuição ao debate.

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* O autor agradece a Juliana Bratfisch pela assistência em localizar textos de Patrícia Galvão.

4 comentários:

Juliana Vaz disse...

Olá Ricardo,

obrigada pelo post! leio com frequência o blog e também compartilho a admiração por poetas mulheres. pergunto se conhece a poeta alemã Hilde Domin, que tenho lido recentemente. a descoberta veio justamente num momento em que me queixava (talvez, por pura ignorância) da quase ausência de grandes poetas em língua alemã. Pode recomendar outras?

Abraços,

Juliana

Ricardo Domeneck disse...

Obrigado pela visita, Juliana!

Conheço sim a Hilde Domin. Você já viu minhas traduções para poemas da Rose Ausländer, na Modo de Usar & Co.?

Na semana que vem devo publicar duas traduções da poeta contemporânea (excelente) Monika Rinck, nascida em 1969.

abraço

Ricardo

Lu Menezes disse...

Ricardo,
esta sua antologia dá orgulho de ser mulher brasileira.Obrigada pela honrosa inclusão. Quando possível, dois mínimos ajustes em Molduras,please: o século é o XVII (trocaram-no em Otra línea...); e o pendor, "invisibilizador", embora "civilizador" seja bem mais alentador.Parabéns pelo belo desempenho poético e crítico - hipercivilizador.Grande abraço,
L.M.

Ricardo Domeneck disse...

Cara Lu Menezes,

o prazer é meu em poder ler seus poemas e divulgá-los. Fiz as correções.

beijo

Ricardo

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