sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Terminando com música o ano e a década: três canções prediletas lançadas em 2010.

Três canções para o momento: "Só eu posso morrer porque estou vivo"

Porque a alegria talvez seja mais serena do que penso, porque é minimalista e é experimental sem que se perceba, pois quiçá não grite aos transeuntes que se desbundem com suas pirotecnias.

A alegria, a não ser que seja a "difícil" sobre a qual relatou Clarice Lispector, aquela alegria que é irmã da lucidez, sobre a qual Orides Fontela alertou ("alucina"), a alegria, ela repete "sol, sol, sol". Ela anda de bicicleta e sempre vai a caminho do mar. Ela sabe que nada sabe ou que só sabe o que lhe cabe saber naquele exato momento. É o que desejo a mim mesmo e a todos os que amo em 2011, a alternância entre estes três estados de espírito, estes aqui, nestas canções abaixo, que sobem, sobem.


Caribou - "Sun"

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Dimitri BR - "O encontro de Mary Hansen e Tom Jobim no céu"

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James Blake - "I Only Know (What I Know Now)"

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quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O prosador mais memorável que li neste 2010: Vasily Grossman (1905 - 1964)

Vasily Grossman como correspondente durante a Segunda Guerra Mundial


Meus hábitos de leitor de prosa são caóticos. Há épocas em que devoro romances, um atrás do outro, mas há também outras épocas em que a simples visão de uma página repleta de signos da esquerda à direita já me faz bocejar. Isso acontece geralmente em relação à ficção. Livros de prosa crítica e filosofia nunca me entendiam, e estou sempre a ler algum crítico ou filósofo. Mas romancistas podem ser tão tediosos, especialmente para poetas viciados na tal materialidade sígnica e tal. A prosa contemporânea no Brasil é, com exceções, um sonífero.

Em 2010, li pouca ficção. Minha mochila ou meu bornal continham sempre um ou dois livros de poesia, acompanhados de um livro de crítica literária, poética, ou política. Li neste ano de 2010 muita coisa dos críticos que amo, como Hugh Kenner e Walter Benjamin, li outros que não amo e dos quais discordo com frequência mas que são estimulantes, como Fredric Jameson e Terry Eagleton, descobri o trabalho inteligentíssimo de Alfonso Berardinelli, emocionei-me com o lindo memoir de Jakobson sobre Maiakóvski, A Geração Que Esbanjou Seus Poetas (publicado em uma linda edição pela Cosac Naify), mas pouca prosa de ficção.

Arrastei, entre outras, a leitura do famoso romance satírico de Witold Gombrowicz, Ferdydurke (1937), por exemplo. Mas foi, há um par de meses, uma coletânea de contos e artigos do soviético/ucraniano/russo Vasily Grossman que acordou novamente meu paladar para a prosa e me deixou faminto por boa ficção.

Grossman esteve nas notícias culturais aqui da Alemanha há pouco tempo e com grande estrondo, pois foi traduzido para o alemão seu grande romance proibido pelo Kremlin, intitulado Vida e Destino. Houve resenhas e artigos sobre o "soviético" em todos os grandes jornais.

O volume que li, no entanto, chama-se The Road, traduzido para o inglês por Robert Chandler e publicado pelo New York Review of Books, trazendo contos como "Na cidade de Berdichev", o primeiro que Grossman publicou, e artigos como "No Inferno de Treblinka", um dos primeiros sobre a Shoah. Correspondente de Guerra genial, Grossman foi um dos primeiros jornalistas e escritores a entrarem em um campo de concentração. Sua descrição é uma das coisas mais assustadoras que já li, indo onde mesmo muitos filmes não poderiam ter ido.

Grossman é o tipo de escritor que me pega pela garganta. Não é um estilista frio e calculado, obcecado pela frase perfeita. É extremamente próximo, caloroso. Talvez vá parecer absurdo para alguns, já que seus contextos biográficos são tão diferentes, mas durante a leitura de Grossman havia algo que constantemente fazia-me pensar em Clarice Lispector. Não conseguia evitar a impressão e ficava me perguntando o porquê.

Há certos pontos de contato. Grossman nasceu em Berdichev, antigamente parte do Império Russo, hoje parte da Ucrânia. Lispector também nasceu na Ucrânia, e também em uma família judia. Obviamente, este fator biográfico teve maior importância na vida de Grossman que na vida de Lispector, mas há que se pensar na influência dos pais de Lispector sobre sua formação e criação. Contudo, a ligação, eu creio, talvez seja literária e só vim a descobrir depois. Ao fim do volume, há um memoir de Fiodor Guber, filho adotivo de Vasily Grossman, relatando suas lembranças sobre o escritor, e falando sobre a paixão deste por Anton Tchekhov. É aí, eu diria, que talvez resida uma conexão entre os dois, pelo menos para explicar esta minha impressão de semelhança estética, pois também Clarice Lispector me parece uma escritora tchekhoviana, ainda que os críticos sempre se refiram a James Joyce e Virgina Woolf como modelos para a brasileira. Não estou falando tanto sobre influência direta quanto em linhagem, espírito.

Em algum momento de 2011 quero começar a ler o grande Vida e Destino de Grossman, que alguns dizem ser o Guerra e Paz do século XX. Mas entrei numa onda russa graças a ele e agora estou lendo Um Dia Na Vida de Ivan Denisovich (1962), de Alexander Soljenítsin (ou Aleksandr Solzhenitsyn, como se diz na língua do Império). Queria ler O Arquipélago Gulag (1973), mas não o encontrei no sebo.

Estes russos e seus épicos, que parecem cobrir o continente geográfico e físico, e o continente moral e psicológico. Chega a ser assustador.

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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Um músico britânico e um fotógrafo alemão

foto de Jörg Brüggemann


A última publicação da Hilda Magazine neste ano de 2010 e nesta década (sigo insistindo que a década termina agora para protestos de meus amigos aqui) é dupla e traz dois jovens artistas europeus que têm chamado muito a atenção das críticas em suas respectivas atividades nos últimos dois anos.


Clique nos links abaixo:


Em primeiro lugar, uma série fotográfica do alemão Jörg Brüggemann (n. 1978), um dos jovens fotógrafos mais respeitados do país e membro da prestigiosa agência Ostkreuz, fundada pela recentemente falecida Sibylle Bergemann (1941 - 2010) e outros grandes fotógrafos da antiga Berlim Oriental, como Ute Mahler e Harald Hauswald.


JÖRG BRÜGGEMANN NA HILDA MAGAZINE


E também quatro composições do jovem músico britânico James Blake (n. 1989), cujo trabalho tem sido recebido com verdadeiro furor pela imprensa musical europeia, com uma resenha de Marius Funk sobre o trabalho do londrino.


JAMES BLAKE NA HILDA MAGAZINE




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domingo, 26 de dezembro de 2010

Um UIVO de presente de Natal para O Moço




Quando O Moço e eu nos conhecemos, ele já tinha seu herói Beat, e este era William Burroughs, de quem ele já havia lido praticamente tudo e eu pouquíssimo. Confesso que os Beats não participaram de forma óbvia em minha formação. Eu li On The Road (1957) por exemplo, mas à época me parecera que havia muito mais spontaneous prose em um livro como The Autobiography of Alice B. Toklas (1932), de Stein, que naquela narrativa bastante estruturada de Kerouac. Entre os poetas da década de 50 norte-americana, minha atenção havia se voltado para dois outros homossexuais: primeiro, Frank O´Hara (1926 - 1966), e então Jack Spicer (1925 - 1965), que deixaram uma marca muito grande em minha cabeçoila de poeta.

É claro que, como adolescente, "Howl" (1956) havia tido seu impacto sobre minha imaginação. Aquele início ainda me parece algo tão direto e ao mesmo tempo hipnótico: "I saw the best minds of my generation destroyed by madness, starving hysterical naked, / dragging themselves through the negro streets at dawn looking for an angry fix, / Angel-headed hipsters burning for the ancient heavenly connection / to the starry dynamo in the machinery of night..."

Mas naquele primeiro momento em que crescia e me formava como poeta adolescente, regia sobre o país o "pânico do discursivo" e o "terror do subjetivo", proclamados na TV, nos jornais, nas revistas como os maiores pecados de um poeta. Então eu lia João Cabral de Melo Neto, Augusto de Campos e os poetas declarados antidiscursivos e objetivos, secos, econômicos, para não crescer tagarela e acabar no Gulag dos Poetas Gordos. Ah! Como nós poetas perdemos tempo às vezes! Quanta energia desperdiçada, quando todos nós vamos morrer e apodrecer, os secos e os caudalosos, os classicistas e os vanguardistas! Alas! ("Alas" a ser compreendido tanto em sua acepção anglófona como lusófona). O mundo é tão simpático.

Tudo isso passou. Eu hoje leio os Beats com prazer, muito da prosa de Kerouac segue fresca, ainda que me pareça respingar testosterona demais. Descobri outros que hoje são poetas favoritos meus, como a maravilhosa Diane di Prima. Para mim, um poema de Ginsberg como "Wichita Vortex Sutra" é modelo para a busca de poemas que funcionem na página e na voz. Mesmo os trechos mais infantis de "Howl" eu hoje olho com carinho. Entusiasmo de poeta de vinte e poucos anos, que delícia. Lembro-me dos meus enquanto escrevia Carta aos anfíbios (2005).

O trabalho de Ginsberg só pode ser apreciado em toda a sua força crítica, creio eu, se soubermos localiza-lo no tempo, tanto em sua diacronia como em sua sincronia, em equilíbrio centrípeto-centrífugo, ah! a estase da sobrevivência canônica. Em diacronia, explico-me: seu aspecto de intervenção contextual, sua importância para a poesia norte-americana daquele momento, voltando tanto a Pound como ao verso de Whitman, questionando os dogmas do New Criticism, que vinha apregoando uma das poesias mas assépticas do século passado. Mas não só: há que se pensar em seu aspecto revolucionário de costumes. Nele, Ginsberg reapropria-se da função social do poeta, vai contra a crença de certa ala modernista de que o poeta está desligado da História, conclama o poeta-xamã, reivindica-se como poeta que critica sua comunidade, ri dela, busca sua redenção. Em sincronia, não se trata de novidade, mas justamente de sua religação à tradição antiquíssima do bardo celta, do escaldo escandinavo, do milenar poeta-performer. Sou obrigado a pensar mais uma vez na minha distinção entre o poeta/artista em seu papel de artesão e seu papel de interventor.

Há duas semanas, O Moço e eu assistimos ao filme Howl (2010), que reconta a História do poema de Ginsberg.




James Franco faz um excelente trabalho como Ginsberg, e tenho certeza que Ginsberg ficaria muito feliz que escolheram um homem tão lindo para interpretá-lo. Há animações péssimas e desnecessárias para ilustrar o poema, mas mesmo elas não estragam demais o resultado: um filme honesto e delicado.

Fascinado com a coisa toda, O Moço disse que queria ler Ginsberg. Pois então dei-lhe um Uivo como um de seus presentes de Natal.


O Brasil anda precisando de uns uivos?



Ginsberg oraliza a primeira parte de "Howl" (1956).

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sábado, 25 de dezembro de 2010

Lendo Vinícius de Moraes com seu "Poema de Natal" e pensando sobre a sinuosa fortuna crítica de seu autor

especial para a Modo de Usar & Co.


A recepção e fortuna dos poemas de Vinícius de Moraes (1913 - 1981) talvez marquem uma das carreiras mais sinuosas da poesia brasileira. Ao mesmo tempo um dos mais populares e também mais subestimados poetas do século XX ativos no Brasil, já houve quem insinuasse que a relação entre sua popularidade com os leitores e seu subestimar entre poetas e críticos tenham uma relação causal. Mesmo assim, várias gerações de poetas e leitores formaram algo de sua sensibilidade com a leitura de seus poemas e a audição de suas canções, e ele talvez tenha sido um dos últimos brasileiros a assumir perante o público o papel difícil de poeta oficial, do poeta como figura pública.

Na segunda metade do século XX, quando a sensibilidade crítica hegemônica no Brasil pareceu valorizar os poetas que se autodenominavam antilíricos, houve uma espécie de declínio no prestígio dos poetas que construíram sua obra sobre os pilares da tradição lírica ibérica, como a também carioca Cecília Meireles ou a mineira Henriqueta Lisboa, representantes brasileiros da lírica pura modernista que teve em outros países um destino crítico também complicado e marcado por comoções políticas. Mas esta lírica pura floresceu, assumindo nomes distintos e sendo agregada a diferentes movimentos em outras línguas, criando um trabalho que sobreviveu a todas as imposturas críticas e ideológicas do entreguerras e pós-guerra, como foi o caso de Anna Akhmátova ou Joseph Brodsky em russo, Antonio Machado ou Juan Ramón Jiménez em espanhol, Else Lasker-Schüler ou Ingeborg Bachmann em alemão. Seu "Poema de Natal" é um texto de qualidades intrínsecas perceptíveis talvez apenas a quem se mostra sensível à tradição que conecta estes poetas, com sua claridade de pensamento ligada a uma sensibilidade direta e simples.


Vinicius de Moraes - Poema de Natal by Modo de Usar & Co.
Vinícius de Moraes oraliza seu "Poema de Natal", com acompanhamento de musical de Toquinho ao violão.


Poema de Natal
Vinícius de Moraes

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos –
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos –
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai –
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte –
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.


in Poemas, sonetos e baladas (São Paulo: Gaveta, 1946)



Outro elemento a tornar Vinícius de Moraes uma figura criticamente complexa para a historiografia simplista do modernismo brasileiro foi seu uso das formas fixas, tornando-o ainda pouco exemplar para os grupos de vanguarda brasileiros do pós-guerra. Alguns de seus sonetos são no entanto exemplos de sua habilidade invejável de criar machines à émouvoir, para mencionar a expressão de Le Corbusier que o antilírico João Cabral de Melo Neto tanto admirava, e seu poema "A pera", por exemplo, ainda me parece um dos textos mais controlados, concisos e belos da poesia brasileira. Poucos poetas dos últimos trinta anos, tão afoitos em repetir os dogmas da objetividade, foram capazes de criar textos desta qualidade e precisão.


A pera
Vinícius de Moraes

Como de cera
E por acaso
Fria no vaso
A entardecer

A pera é um pomo
Em holocausto
À vida, como
Um seio exausto

Entre bananas
Supervenientes
E maçãs lhanas

Rubras, contentes
A pobre pera:
Quem manda ser a?



Mais tarde, o abandono da poesia escrita pela poesia cantada foi uma consequência simplesmente lógica da sensibilidade de poeta lírico que comandava o escritor Vinícius de Moraes.




Apresento aqui apenas o texto cantado, pois foi composto para isso. Ora, se nós não condenamos como inferiores os textos que só funcionam na página e para os olhos, por que seguiríamos condenando como inferiores os textos que só funcionam na garganta, para a voz?


Há um poema de Vinícius de Moraes que ainda me parece um dos mais belos e interessantes dentre os poemas mais longos da poesia brasileira no século XX, poema que poderia estar ao lado de "As Cismas do Destino", "Janela do Caos", "A Máquina do Mundo" ou "Uma Faca Só Lâmina", apesar de sua totalmente distinta sensibilidade quando comparada com estes outros poemas longos: refiro-me à "Última Elegia". Publicado no volume Cinco Elegias (1943), é o melhor poema do volume e o único que parece não envelhecer. Não há na poesia brasileira melhor estilização da alegria, da euforia. Além disso, há outros elementos experimentais no poema que, talvez pelo difícil status oficialesco de seu autor, tampouco encontraram acolhida nas listas de influências vanguardistas, mas que mesmo assim o distinguem de grande parte da poesia brasileira modernista: seu multilinguismo, seus neologismos e sua intertextualidade, experimentos que eram até então praticamente inéditos no modernismo brasileiro. Se a nossa poesia nasceu multilinguista e experimental com Gregório de Matos (1636 - 1696), desde Joaquim de Sousândrade (1833 - 1902) e o episódio conhecido como "O Inferno de Wall Street" no seu O Guesa (1884) um poeta brasileiro não experimentava desta forma com o multilinguismo. No caso de Vinícius de Moraes há um elemento biográfico e contextual importante: ele escreveu o poema em Londres, na Inglaterra; mas outros poetas compuseram poesia em suas excursões diplomáticas e nem por isso abandonaram uma visão purista e às vezes quase castiça da língua, fosse ela a portuguesa ou brasileira.

Os neologismos que usa têm maior respaldo na prática modernista, mas se o compararmos com um poeta como Raul Bopp, que tinha este pendor especialmente em Cobra Norato (1931), perceberemos as diferenças claras entre eles. Não há na "Última Elegia" qualquer desejo de ser acessível ou popular, mas de encontrar a melhor forma de expressar o pouco tradicionalmente poético sentimento da alegria, do estado eufórico. Até nisto o poema é singular. O único que tentara anteriormente compor neste diapasão foi Mário de Andrade, principalmente em alguns poemas de Paulicéia Desvairada (1922).

Sua intertextualidade parece ecoar versos de Shakespeare (1564 - 1616) e Keats (1795 - 1821), algo talvez marcado também pela situação biográfica de estar compondo na Inglaterra, apontando de certa forma para a futura influência hegemônica da poesia anglófona sobre a poesia brasileira de hoje. Além disso, o poema reinaugura na nossa poesia a pesquisa tipográfica e visual, anos antes da pesquisa do Grupo Noigandres. Por todas estas características, Vinícius de Moraes e sua "Última Elegia" seguem euforicamente vivos.



--- Ricardo Domeneck


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POEMA DE VINÍCIUS DE MORAES



A Última Elegia
Vinícius de Moraes




O






L




O
F




E
S


R


S


H


E
O




OFC




A

Greenish, newish roofs of Chelsea
Onde, merencórios, toutinegram rouxinóis
Forlornando baladas para nunca mais!
Ó imortal landscape
no anticlímax da aurora!
ô joy for ever!
Na hora da nossa morte et nunc et semper
Na minha vida em lágrimas!
uer ar iú
Ó fenesuites, calmo atlas do fog
Impassévido devorador das esterlúridas?
Darling, darkling I listen...
"... it is, my soul, it is
Her gracious self..."
murmura adormecida
É meu nome!...
sou eu, sou eu, Nabucodonosor!
Motionless I climb
the wa
t
e
r

Am I p a Spider?
i
Am I
p a Mirror?
e
Am I s
an X Ray?

No, I’m the Three Musketeers
rolled in a Romeo.
Vírus
Da alta e irreal paixão subindo as veias
Com que chegar ao coração da amiga.
Alas, celua
Me iluminou, celua me iludiu cantando
The songs of Los; e agora
meus passos
são gatos
Comendo o tempo em tuas cornijas
Em lúridas, muito lúridas
Aventuras do amor mediúnico e miaugente...
So I came
– from the dark bull-like tower
fantomática
Que à noite bimbalha bimbalalões de badaladas
Nos bem-bons da morte e ruge menstruosamente sádica
A sua sede de amor; so I came
De Menaipa para Forox, do rio ao mar – e onde
Um dia assassinei um cadáver aceso
Velado pelas seis bocas, pelos doze olhos, pelos centevinte dedos espalmados
Dos primeiros padres do mundo; so I came
For everlong that everlast – e deixa-me cantá-lo
A voz morna da retardosa rosa
Mornful and Beátrix
Obstétrix
Poésia.

Dost thou remember, dark love
Made in London, celua, celua nostra
Mais linda que mare nostrum?
quando early morn'
Eu vinha impressentido, like the shadow of a cloud
Crepitante ainda nos aromas emolientes de Christ Church meadows
Frio como uma coluna dos cloisters de Magdalen
Queimar-me à luz translúcida de Chelsea?
Fear love...
ô brisa do Tâmisa, ô ponte de Waterloo, ô
Roofs of Chelsea, ô proctors, ô preposterous
Symbols of my eagerness!
– terror no espaço!
– silêncio nos graveyards!
– fome dos braços teus!

Só Deus me escuta andar...
– ando sobre o coração de Deus
Em meio à flora gótica... step, step along
Along the High... "I don't fear anything
But the ghost of Oscar Wilde..." …ô darlingest
I feared... A ESTAÇÃO DE TRENS... I had to post-pone
All my souvenirs! there was always a bowler-hat
Or a POLICEMAN around, a stretched one, a mighty
Goya, looking sort of put upon, cuja passada de cautchu
Era para mim como o bater do coração do silêncio (I used
To eat all the chocolates from the one-penny-machine
Just to look natural; it seemed to me que não era eu
Any more, era Jack the Ripper being hunted) e suddenly
Tudo ficava restful and warm... – o sííííííííí
Lvo da Locomotiva – leitmotiv – locomovendo-se
Through the Ballad of READING Gaol até a vísão de
PADDINGTON (quem foste tu tão grande
Para alevantares aos amanhecentes céus de amor
Os nervos de aço de Vercingetórix?). Eu olharia risonho
A Rosa-dos-Ventos. S. W. Loeste! no dédalo
Se acalentaria uma loenda de amigo: "I wish, I wish
I were asleep". Quoth I: – Ô squire
Please, à Estrada do Rei, na Casa do Pequeno Cisne
Room twenty four! ô squire, quick, before
My heart turns to whatever whatsoever sore!
Há um grande aluamento de microerosíferos
Em mim! ô squire, art thou in love? dost thou
Believe in pregnancy, kindly tell me? ô
Squire, quick, before alva turns to electra
For ever, ever more! give thy horses
Gasoline galore, but to take me to my maid
Minha garota – Lenore!
Quoth the driver: – Right you are, sir.

*


O roofs of Chelsea!
Encantados roofs, multicolores, briques, bridges, brumas
Da aurora em Chelsea! ô melancholy!
"I wish, I wish I were asleep..." but the morning
Rises, o perfume da madrugada em Londres
Makes me fluid... darling, darling, acorda, escuta
Amanheceu, não durmas... o bálsamo do sono
Fechou-te as pálpebras de azul... Victoria & Albert resplende
Para o teu despertar; ô darling, vem amar
À luz de Chelsea! não ouves o rouxinol cantar em Central Park?
Não ouves resvalar no rio, sob os chorões, o leve batel
Que Bilac deitou à correnteza para eu te passear? não sentes
O vento brando e macio nos mahoganies? the leaves of brown
Came thumbling down, remember?
"Escrevi dez canções...
... escrevi um soneto...
... escrevi uma elegia..."
Ô darlíng, acorda, give me thy eyes of brown, vamos fugir
Para a Inglaterra?
"... escrevi um soneto...
... escrevi uma carta..."
Ô darling, vamos fugir para a Inglaterra?
..."que irão pensar
Os quatro cavaleiros do Apocalipse..."
"... escrevi uma ode..."
Ô darling!
Ô PAVEMENTS!
Ô roofs of Chelsea!
Encantados roofs, noble pavements, cheerful pubs, delicatessen
Crumpets, a glass of bitter, cap and gown... – don't cry, don't cry!
Nothing is lost, I'll come again, next week, I promise thee...
Be still, don't cry...
... don't cry
... don't cry
RESOUND
Ye pavements!
– até que a morte nos separe
ó brisas do Tâmisa, farfalhai!
Ó telhados de Chelsea,
amanhecei!


Londres, 1939

in Cinco elegias (Rio de Janeiro: Pongetti, 1943)

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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

E o mundo vai ficando mais entediante: morreu na semana passada Don Van Vliet, mais conhecido como Captain Beefheart





Aconteceu na sexta-feira passada. A notícia pipocou pelas redes sociais, mas eu estava na Espanha e absorto no festival, acabei não podendo ler muito a respeito ou ouvir as canções do homem e sua banda para celebrá-lo.






Don Van Vliet foi um dos poetas, músicos e artistas visuais mais esquisitos e geniais do pós-guerra. Nasceu na Califórnia. Amigo de Frank Zappa (músico de quem confesso não conseguir gostar), teve alguns de seus álbuns produzidos e lançados por ele. Adotou o moniker Captain Beefheart no fim da década de 60. Primeiro chamou a atenção com sua versão para a canção "Diddy Wah Diddy", de Bo Diddley, e então com seu primeiro álbum, Safe As Milk (1967).







Dois anos depois ele lançaria o genial Trout Mask Replica (1969), e vários outros álbuns com poemas vocais e canções inteligentes, na fronteira entre o pop e o experimental, como Lick My Decals Off, Baby (1970), Mirror Man (1971), The Spotlight Kid (1972), Unconditionally Guaranteed (1974), Shiny Beast (Bat Chain Puller) (1978), Doc at the Radar Station (1980) ou Ice Cream for Crow (1982), entre outros trabalhos.







Captain Beefheart morreu na Califórnia, em decorrência de múltipla esclerose. Espero que outras criaturas geniais estejam nascendo e crescendo pelo mundo porque nos últimos anos, como diz o poema de Ungaretti, "aqui se está / como no outono / as folhas".




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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A primeira grande retrospectiva da obra de Gil J. Wolman

Está em exibição no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, o MACBA, talvez a primeira grande retrospectiva do trabalho do poeta e artista francês Gil J. Wolman (1929 - 1995), sob o título Gil J. Wolman - Eu sou imortal e estou vivo, que permanece em exposição até fevereiro de 2011. Foi muita sorte estar em Barcelona a tempo de visitá-la, sou admirador ferrenho do homem.


Mais mencionado que realmente conhecido, esta retrospectiva e seu ótimo catálogo finalmente põem em circulação mais ampla e mostram a um público contemporâneo o trabalho realmente inovador e brilhante de Gil J. Wolman, inclassificável, numa rebelião contra os gêneros estanques que claramente faz de Wolman um precursor incontornável de todos os poetas e artistas contemporâneos transitando entre gêneros.

Ao mesmo tempo artista, poeta e cineasta, sua obra é uma das contribuições mais inteligentes à pesquisa sobre a materialidade da linguagem no pós-guerra, retomando muito da pesquisa dos dadaístas, principalmente.

Gil J Wolman, Sem título (Mao), 1967


A mostra traz muitos dos trabalhos visuais, colagens e instalações fotográficas, assim como dá ao público de Barcelona a chance de presenciar (não se trata mais de "assistir") o lendário "filme" de Wolman, chamado L´Anticoncept (1952).

Ao mesmo tempo cinema e negação do cinema, instalação sonora e poesia vocal, L´Anticoncept é um dos trabalhos mais interessantes do cinema léttriste. Feito para ser projetado contra uma esfera, negando o bidimensional da tela comum, L´Anticoncept não tem imagens, apenas flashes de luz e um potente poema/ensaio vocal. Foi mostrado pouquíssimas vezes. Encontrei um excerto na Rede, com tradução para o português:


Excerto do filme L´Anticoncept (1952), de Gil J. Wolman.

Wolman também criou uma poesia sonora extremamente original, na qual abandona o texto e escrita, voltando-se para o elemento mais vital e primordial da poesia: a respiração, tornando-se precursor de toda a pesquisa de Henri Chopin, por exemplo, ou de outros artistas que gosto de chamar de biominimalistas, como a alemã Eva Hesse (1936 - 1970) e o brasileiro José Leonilson (1957 - 1993).


Gil J. Wolman - Mégapneumes by Modo de Usar & Co.
Poema sonoro de Gil J. Wolman, dos "Mégapneumes".

Ouvindo um poema sonoro como este de Gil J. Wolman, penso mais uma vez na distinção que fiz aqui há algum tempo, em um ensaio, entre o artista como artesão e o artista como interventor.

Em março de 2008, publiquei na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co. uma postagem dedicada a ele, com um de seus poemas sonoros e a tradução de um fragmento de um de seus poemas-roteiro. Reproduzo-a abaixo, encerrando esta postagem com um vídeo do próprio MACBA sobre a retrospectiva.


Gil J. Wolman (1929 - 1995)
Ricardo Domeneck, especial para a Modo de Usar & Co.
9 de março de 2008.

Nasceu e morreu em Paris. Poeta, pintor e cineasta, seu trabalho mais conhecido (ou citado, seria melhor dizer) é o filme L´Anticoncept de 1952, um dos trabalhos de recusa mais radicais do cinema, mesmo dentro de um movimento como o Lettriste parisiense (do qual fez parte por dois anos, desligando-se do grupo para formar a Internacional Letrista e mais tarde a Internacional Situacionista, da qual seria expulso por Guy Debord), em que tais trabalhos de discrepância entre imagem e som (ou mesmo abandono completo da imagem) foram norma e alvo de pesquisa, como em filmes de Isidore Isou (Traté de Bave et d`Eternité, 1951), Maurice Lemaître (Le Film est déjà commencé?, 1951), Guy Debord (Hurlements en faveur de Sade, 1952), François Dufrêne (Tambours du jugement premier, 1952) e do próprio Wolman. Alguns destes filmes poderiam ser vistos como o elo entre o cinema da primeira metade do século e os filmes experimentais mais conhecidos e reconhecidos do pós-guerra, de cineastas como Jean-Luc Godard ou Stan Brakhage.

Outra contribui
ção de Gil J. Wolman surgiu no terreno da poesia sonora com seus “Mégapneumes”, em que Wolman abandona a língua por uma poesia da respiração, levando a extremos radicais o que um poeta como Charles Olson defendia à mesma época nos Estados Unidos, ou seja, uma poesia baseada não mais na métrica, mas no fôlego do poeta ("a man on his feet talking").

Os poemas sonoros de Wolman teriam um impacto determinante sobre alguns poetas do pós-guerra, especialmente sobre Henri Chopin (1922 – 2008), que levaria a pesquisa iniciada por Wolman em seus mégapneumes a outras conseqüências, com o uso de gravadores e fitas magnéticas. Tal influência foi reconhecida por Chopin que, apesar de mais velho que o contemporâneo parisiense, homenagearia Gil J. Wolman no livro Poesia Sonora Internacional incluindo-o entre os mestres da primeira metade do século XX, como Pierre Albert-Birot, Hugo Ball, e Raoul Hausmann, por exemplo.

O trabalho com a linguagem em roteiros de filmes como L´Anticoncept viria a influenciar também poetas sonoros textualistas como Bernard Heidsieck, ainda que este mesmo roteiro declare: "O TEMPO DOS POETAS ACABOU. EU AGORA DURMO."

Em uma das páginas de L´Anticoncept, com o espa
çamento visual cobrindo com parcas palavras a página de margem a margem como em certos poemas de Pierre Albert-Birot, lemos:




O roteiro-poema, com cerca de 15 páginas, termina com as palavras:
“renova as situações passadas / a vida não é coisa retrospectiva”.

Abaixo, o poema sonoro "La Mémoire", um dos "mégapneumes" de Gil J. Wolman:





"o anticonceito é o título de um filme que concluí a 25 de setembro de 1951
projetado no palácio de chaillot a 11 de fevereiro de 1952 o filme será proibido
pela censura e apresentado no festival de cannes em s
essão fechada
neste filme oponho a uma idéia significada e definida
a indefini
ção de uma idéia significativa
eu escrevo
o tempo dos poetas acabou eu agora durmo
isto é
já n
ão respondo por mim
passo a vez
isto é
meu trabalho me escapa
durmo para escapar do trabalho
mais tarde escreveremos sobre os muros
jamais trabalhem
eu escrevo
o anticonceito é a utiliza
ção ao máximo de cada um dos elementos internos que vírgula constituídos vírgula formavam o conceito
isto é
para wolman a separa
ção não é de ontem"

Gil J. Wolman


(tradução, nota e preparo do vídeo/áudio: Ricardo Domeneck)




§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§



Vídeo do MACBA sobre a exposição:




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domingo, 19 de dezembro de 2010

Madri, os dois últimos dias do festival ReVox e uma pequena amostragem poética de cada participante.

Chegamos todos a Madri na quinta-feira de manhã. Naquela noite, ocorria já a primeira apresentação dos poetas do festival no Auditório 400 do Museo Reina Sofía (Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía), aberto em 1988 no antigo prédio do Hospital General, e que em 2005 recebeu uma ampliação com aquele prédio luxuoso projetado pelo arquiteto francês Jean Nouvel (n. 1945).




O programa em Madri trazia ainda uma apresentação do austríaco Jörg Piringer, e o poeta local a se apresentar foi Peru Saizprez (em Barcelona havia sido Albert Balasch). Assim, na quinta-feira à noite, por volta de 19:30, com auditório lotado, começa o braço madrilenho do Festival ReVox - Novas Experiências na Poesia Sonora. O poeta digital austríaco Jörg Piringer abriu a noite (veja abaixo um vídeo de sua apresentação no Festival Proposta, de Barcelona, em 2002):

JÖRG PIRINGER


Exemplo do trabalho de Jörg Piringer: sua apresentação no Festival Proposta em 2002.


Veio então a grande atração do Festival ReVox este ano: Décade: a colaboração iniciada em 2009 entre o poeta vocal francês Anne-James Chaton (n. 1970), o artista sonoro alemão Carsten Nicolai a.k.a. Alva Noto (n. 1965) e o músico experimental inglês Andy Moor (n. 1962), mais conhecido como guitarrista da banda The Ex. Os três são respeitadíssimos em cada uma de suas áreas, e a performance deles foi realmente maravilhosa, especialmente em Barcelona. O equipamento de som em Madri não deu conta da mesma maneira das sutilezas do trabalho de cada um, mas também foi ótimo.


DÉCADE: ANNE-JAMES CHATON, ALVA NOTO & ANDY MOOR


Exemplo do trabalho do trio Décade: apresentação no Festival Hors-Pistes em Nantes (2009).

No dia seguinte, sexta-feira e último dia do festival, apresentamo-nos Jelle Meander, Peru Saizprez e eu no Auditório 200 do Museo Reina Sofía. Também para casa cheia, eu iniciei a noite. Fiz quase o mesmo programa em Madri que já fizera em Barcelona na terça-feira, com a exceção da peça de abertura, trocando a oralização do "Texto em que o poeta celebra o amante de vinte e cinco anos" pela peça sonora "This is the voice". Para quem não conhece esta parte do meu trabalho, mostro abaixo vídeos de performances passadas, exemplos das minhas peças de abertura e encerramento em Madri:

Abri com a peça "This is the voice", que você pode ver no vídeo abaixo, de minha apresentação em outro festival de Madri, o ótimo Yuxtaposiciones.



Encerrei com minha peça permutacional "Six songs of causality", que você pode ver no vídeo abaixo, de minha apresentação solo no Espai d´Art Contemporani de Castelló, Valência.

Ricardo Domeneck - "Six songs of causality" @ Espai d´Art Contemporani from Ricardo Domeneck on Vimeo.



Após a minha apresentação, subiu ao palco o poeta vocal belga Jelle Meander:

JELLE MEANDER


Exemplo do trabalho de Jelle Meander: sua apresentação no Festival Krikri em Brugge, este ano.


Encerrou a noite o poeta oral peruano, residente em Madri, Peru Saizprez.

PERU SAIZPREZ




O Festival foi um dos melhores de que já participei e os dias na Espanha foram cheios e ótimos. Voltei ao Berlimbo, soterrado em neve, e quero descansar por uns dias.

Avante!

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quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Em Barcelona, participando do festival ReVox, no qual estreei um dos poemas mais viados de toda a Literatura Brasileira

Cheguei ontem a Barcelona, onde apresentei meu trabalho videopoético à noite no festival ReVox (visite a página do festival), que conta este ano com a participação do coletivo Décade ::: uma colaboração entre o poeta sonoro francês Anne-James Chaton, o artista sonoro alemão Alva Noto e o guitarrista inglês Andy Moor, e ainda dos poetas vocais e sonoros: Jelle Meander (da Bélgica), Albert Balasch (da Catalunha, que se apresentou com o músico Hans Laguna) e Peru Saizprez (do Peru, vive em Madri), além de moi.

A apresentação em Barcelona foi no centro cultural Arts Santa Mònica, que no momento abriga também uma exposição sobre o compositor de vanguarda catalão Josep Mestres Quadreny, que colaborou em trabalhos poético-visuais, sonoros e inclassificáveis com Joan Miró, Joan Brossa, Antoni Tàpies e outros. Amanhã seguimos todos para Madri, onde repetimos as performances no Museo Reina Sofía.

Meu setlist de ontem foi:

1- "Texto em que o poeta celebra o amante de vinte e cinco anos" - oralização do texto, com tradução de Cristian De Nápoli para o castelhano.
2 - "Mula" - vídeo, com performance vocal minha sobre peça sonora, uma colaboração com o fenomenal duo Tetine.
3 - "Eustachian Tube in Staccato" - vídeo, com performance vocal minha sobre peça sonora, uma colaboração com o talentosíssimo músico britânico Joseph Ashworth.
4 - "X + Y: Uma Ode" - vídeo, com oralização ao vivo.
5 - "Six songs of causality" - vocalização permutacional-acumulativa dos seis textos, com apresentação visual.

Qual foi o hit? Invariavelmente recebo os maiores elogios pelas "Six songs of causality", e é por isso que sempre termino com elas, talvez minha pecinha mais redondinha conceitualmente.

Mas o que mais me divertiu foi oralizar um dos meus textos mais recentes, que se chama "X + Y: uma ode", um poema que me divertiu horrores enquanto o escrevia. Talvez possa dizer que se trata do poema mais viado da literatura brasileira? Não, acho que este Oscar goes to Roberto Piva em algum de seus livros. Mas aqui está o texto, parte da minha busca por uma poética não tanto concreta, densa ou concisa, mas sim tesa. Ah! Uma poética leve e tesa, que sonho seria atingi-la! Que sonho! Tesa como uma ereção duradoura! Oh, illusion! oh, bliss!


X + Y: uma ode

An refert, ubi et in qua arrigas?
Suetônio

Houvesse nascido
mulher, já teria dado
à luz sete
filhos de nove
homens distintos.
Agora, vivo entretido
com as teorias
a explicarem meu gosto
por odores específicos,
certa distribuição de pelos
nas pernas alheias,
os cabelos na nuca
e no peito
sem seios, ainda que aprecie
certas glândulas mamárias
de moços e rapazes
com aquela dose
saudabilíssima
aos meus olhos de hipertrofia.
Medito sobre as conjecturas
de terapeutas,
os relatos de uma Persona
partida, Édipo subnutrido,
sem modelo
na infância de um lendário
Laio
exemplar, lançando-me
a uma suposta
busca entre amantes
por mim mesmo.
Tentei, sem o menor
sucesso,
por dias induzir-me à ereção
diante do espelho.
Concluí não ser tão
eréctil meu ego.
Ouvi com atenção
a fórmula
sobre pai ausente e mãe
dominante a gerar rainhas
de paus, espadas e copas
lassas e loucas,
mas, apesar do meu histórico
de progenitora histérica
e procriador estóico,
meus irmãos
tão afeitos e afoitos
diante dos clitórides
embromam a estatística.
Li todas as reportagens
sobre a possível queerness
na boutique do código
genético, esta quermesse
das afinidades seduzidas,
e ri com o amigo
que certa vez, em chiste,
nomeou-me dispositivo
biológico
de uma Natureza em estresse,
medicando o hipercrescimento
populacional. Não mentirei dizendo
que não temo e tremo
com o perigo do inferno.
Cheguei, contudo, à conclusão
de que minha passagem
só de ida
ao Hades
não se dá
apenas pela inclinação
algo obcecada
de minha genitália
pelo caráter heterogêneo
dos vossos gametas.
Houvesse
nascido fêmea,
já teria dado à luz onze
filhotes de treze
machos diferentes,
e, de puta,
assegura
o Vaticano (e mesmo Hollywood),
não se conhece ascensão,
tão-somente queda.
Portanto, poeta, pederasta e puta,
sigo com meus olhos pela rua
cada portador
desta combinação gloriosa
de cromossomas
X e Y,
chamem-se Chris ou Absalom,
com suas espaçadas proporções
entre os buracos
do crânio, a linha que se forma
entre orelhas e ombros,
as asas de suas omoplatas
e a coifa dos rotadores,
as simetrias volubilíssimas
entre as extremidades
excitantes e excitáveis
como nariz, pênis e dedos,
o número de pelos
entre o umbigo
e ninho púbico,
o formato dos dentes
e seu espelhamento
em diâmetro
nos pés e suas unhas.
Se andam como comem,
se bocejam como riem,
se bebem como tossem,
se fodem como dançam.
A absoluta falta de mistério
em alguns deles, incapazes
da dissimulação famosa
de certas personagens
literárias femininas
do século XIX.
Neles, é oblíqua
somente a ocasional
ereção inconveniente.
Constrangem-me
estas confissões,
mas cederia certos direitos políticos
por algumas dessas cristas ilíacas
já presenciadas em praias, ao sol,
e abriria mão de uma ida às urnas
este inverno por esta ou outra nuca.
E veja só como o planeta
insiste na demonstração empírica
dessa abundância de músculos
e seus reflexos
cremastéricos:
neste exato momento,
enquanto escrevo este textículo,
entra no café, em pleno Berlimbo,
um desses exemplares de garoto
canhestro e canhoto,
o boné cobrindo meio rosto,
prototipagem de barba
e bigode, calças
que me catapultam a fantasias
com skateboards como props,
sobrancelhas feito caterpillars
sitiando os olhos com promessas
de delícias e desfaçatez épicas.
Seus tênis são beges;
ao tirar o suéter, vê-se
a sua escala de Tanner.
Sua Calvin Klein.
Bege fico eu, adivinhando que pele
cobre seus joelhos, seus calcanhares.
Sonho o sexo biônico e homérico,
algo entre Aquiles e Pátroclo,
interpretados em nosso mundo
por Brad Pitt e Garrett Hedlund,
potros xucros como búfalos
ou bárbaros.
E este mundo está cheiíssimo
dessas distrações quase sádicas
para meu masoquismo
voluntarioso e em vício,
que impedem que componha
a minha Divina Commedia,
meu Paradise Lost.
Perdoe, Sr. Cânone,
esta minha tosca e parca
contribuição lírica à safra
de seus contemporâneos,
mas não me catalogue
entre as farsas, sátiras.
Pois não é, consinto, culpa
das massificações capitalistas
esta minha attention span
pouco renascentista,
mas desta explosão de cântaros
plenos de testosterona púbere
a ir e vir nos espaços públicos.
Quando passam, petiscos,
finger food em arrogância
cocky e garbosa, murmuro
na cavidade oca
da boca:
"Deviam ser proibidos
seus exageros de lindos".
Meu fim será nestes botecos
do Berlimbo,
entupindo-me de café preto
e esperando suas ocasiões
para escrever poemas
que vos celebrem, atores
principais deste longo pornô
em que me vi concebido, gerado
e expelido, coadjuvante
contente e dublado.
Agradeço-vos a oportunidade
de fazer do advérbio sim
uma interjeição obscena.
Aos outros, juro que não se trata
de encômio, louvor ou gabo.
Quisesse eu fazer apologia,
talvez dissesse
haver mais elegância
em "Sê meu erômenos
e eu serei teu erastés"
do que, ao cangote,
"Mim Tarzan, você Jane".
Não busco novos adeptos
que me façam concorrência.
Boys will be boys,
há quem diga, e, ora,
não vou dizer que espero
de todo moço
que seja Mozart
ou Beuys.
Haverá os momentos de caça
e rendição felizes, as poucas
vezes de sorte
em que seremos camareiros
de algum moço pasolínico,
com quem se poderá, enfim,
fazer o cama-supra, meia-nove
e então discutir no pós-coito
outros conceitos hifenizados
ao som de Cocteau Twins,
listar as guitarras de 1969,
nosso horror a Riefenstahl,
a obsessão por Fassbinder,
e oxalá sentir em meio a tal
loa uma nova ereção
cavucar
as malhas entre as dobras
do edredão
enquanto lemos poemas de Catulo,
de Kaváfis.
Quando chegarem os bárbaros,
me encontrarão na cama;
que venham porém armados,
pois hei de estar acompanhado,
e em riste as nossas lanças.



Berlim, 25 de outubro de 2010

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quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Vídeo novo, para um estudo em cataclismologia

Editei este vídeo há alguns dias. Não vou falar muito sobre ele, talvez ele seja auto-evidente. Não sei. Gostaria de apresentá-lo apenas com uma citação. Já não me lembro qual, mas em um dos primeiros filmes de Almodóvar (estarei me equivocando? Se alguém lembrar do filme, me diga, estou citando de memória) há um diálogo ótimo. Uma jornalista está entrevistando um cineasta que é conhecido por seus filmes de terror. Após assistir à rodagem de uma das cenas do filme, que mais parecia um romance, a jornalista pergunta ao cineasta: "Mas este é um filme de terror ou um filme de amor?", a que o cineasta responde: "Às vezes eles se confundem".

O texto oralizado no vídeo foi publicado em meu terceiro livro, Sons: Arranjo: Garganta (São Paulo: Cosac Naify, 2009), com uma versão editada, ligeiramente reduzida. É uma colagem. Reproduzo a versão do livro abaixo. A peça sonora foi composta em colaboração com um amigo, o músico britânico Joseph Ashworth.

Um vídeo para vossa tuba auditiva, meus queridos, fazendo preparos para o fim-do-mundo.



Vídeo de Ricardo Domeneck. Imagem, texto e voz: Ricardo Domeneck. Peça sonora: Joseph Ashworth, do duo britânico Joe and Will Ask?. Filmado em Berlim, outono de 2010. Partipação mascarada especial de Jannis Birsner. O texto foi publicado em meu terceiro livro, intitulado Sons: Arranjo: Garganta (São Paulo/Rio de Janeiro: Cosac Naify/7Letras, 2009).


Eustachian Tube in Staccato


The right of admission
put into a trance
eulogy of me the eunuch
augmenting the auburn
breadth of hair
which severs our bridge
yes auburn means
reddish-brown
so burn me and redeploy
my reduced circumstances
to a brand new reductio
ad absurdum
or ablution at retention
like a deluge deluxe
one long
extended exhale
of force applied
at one point
transmitted to another
in the use
of incompressible
fluids as one master
cylinder can drive more
than one slave
cylinder when desired
if you have read
How a Block & Tackle
Works or How Gears
Work then you know
of trading forces
for distance
so much depends
on clicking the red
arrow to see
the animation
a spool from a spool
of thread:
you want to
use as much
air as you
are able
improper coupling
of asylees refugees aliens
granted conditional entry
victims of a severe
form of trafficking
you ineligible:
lie, sit or stand,
bend
your knees
very slightly or prone
follow your breathing
while trying your best
not to influence it: just
let it
be what
it is
a complete
breast
1 inhale & 1
exhale plus any pause
at the end of the exile
some may
not have paws
resist breathing
even when
discomfort arrives:
do not
do it
so long
that you pass
out time
it in seconds the ribs
flaring outwards
the issue and redemption
of securities barometer
of the economy
I the sole shareholder
of this profitable
enterprise crash
recession
crisis index
solvent solute
across the membrane you
of the House of Turgor
desalinate my hobbies affected
by breathing gasping
breach and heave
labored jerky erratic
and irregular and
tentative and hesitant
! mouthrill of snout
hyperventilating over breathing
easily audible
I sigh you yawn
often often
catch myself
not breathing I
snore suddenly
wake up
not breathing I
am frequently concerned
about my breathing I
am none of the above
exchange of gases
among us
four-legged
animals the system
supplies flood
to the chest cavity
so may the 3 mewing
muses
inspire & transpire
for me as my misuse
oh Pharynx oh Larynx oh Trachea
wont he the holder
of my voicebox
through glottis & alveoli
lead me rollercoasterly
to my very own
shaken baby syndrome?


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quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

"A sensação de ser transcontextualizado", ou "Quando Clarice Lispector traduz-se Christa Wolf"

Já escrevi inúmeros artigos neste espaço sobre o porquê de minha obsessão com o papel do contexto naquele processo chamado de charging language with meaning to its utmost degree, assim como minha ladainha meditante incansável sobre a necessidade de respeitarmos a inescapável historicidade do fazer poético. Volto a isso com uma frequência exasperante para muitos, seja em poemas, vídeos, ensaios. Não o farei hoje. O preâmbulo está aqui apenas para introduzir uma espécie de "coincidência".

A alemã Birgit Aka, doutoranda em Literatura Brasileira na Universidade de Passau, enviou-me por email na semana passada sua tradução para o alemão do meu poema "Conversa com duas estranhas", publicado no meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005). Fiquei surpreso e contente ao ler a tradução e perceber que ela havia seguido a ideia de contextualizar o poema, mais do que simplesmente traduzí-lo. O texto tem por ocasião uma experiência pessoal minha, um acontecimento verídico (coisa de filme televisivo talvez) do ano 2000, quando retirei na Biblioteca de Munique um exemplar do livro Perto do Coração Selvagem (1943) de Clarice Lispector, no qual encontrei pequenas anotações de uma estranha, anotações que me deixaram fascinado e ligeiramente obcecado. O poema é um resultado deste susto, desta tentativa de conexão quase mística ou telepático-psicótica com aquela estranha. Eu me sentia como que sugado para dentro de um conto da própria Clarice Lispector, com um certo pendor detetivesco que por sua vez me fazia sentir num conto de Julio Cortázar. Esta história é uma das minhas experiências míticas pessoais, tenho certeza que voltarei a ela um dia. Ela renderia mais poemas, um conto, quem sabe até um romance.

O poema relata de forma bastante plana e direta o acontecimento. Ele é a ocasião de sua ocasião. Surgiu primeiro em prosa, e depois, por seu caráter oral, fiz meu velho jogo de cortes de linhas para embaralhar a sintaxe. Seu prosaísmo seco, pelo menos naquela época, parecia-me a única maneira de fazer justiça à sensação estranhíssima que eu sentia ao acompanhar o romance de Lispector e ao mesmo tempo as anotações misteriosas da estranha. Não havia o que poetizar. É também um dos meus textos mais antigos, entre os que publiquei. Eu o escrevi no ano 2000.


Conversa com duas estranhas

prestes
a deixar o país retirei
na Biblioteca Municipal
de Munique Alemanha
o livro "
Perto do Coração
Selvagem
" de Clarice
Lispector
numa edição
brasileira
de 1984
em que encontrei pequenas
anotações em alemão a lápis
nos cantos de algumas
páginas numa caligrafia
que julguei feminina
delicada
algumas apenas traduções
para o alemão de palavras
que ela não entendia
como no alto
à página 34
em que ela não
conhecia a palavra “vergada”
e anotou sua tradução
para sua língua alguns pontos
de interrogação períodos
inteiros e vários “É ISTO!”
e “É
ISTO!” ou “ELA
ENTENDEU!”
todas em alemão
estou traduzindo
muitos pontos de exclamação
um “COMPREENSÍVEL”
é estranho
que as anotações cessam
de repente e só
voltam na página
168 um “ÓDIO” anotado
na página 201 às margens do
trecho “É verdade
que o silêncio entre eles
fora assim mais perfeito”
quando na página
202 as anotações explodem
em pontos
de exclamação interrogação
números 1-2-3 que não
compreendo
escrita ilegível
nervosa a última à página
203 diz “História da
Humanidade” precedida
pelos números 1-1-2-3-4-1
quando na página
seguinte já sem
anotações da
estranha Clarice Lispector
escreveu “... desde
que ela era mulher... A morte...
E de súbito a morte
era a cessação apenas... Não!
gritou-se assustada, não
a morte.”


Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2005)

Não sei se fui capaz de fazer jus àquela ocasião poética. Certamente voltarei a esta história em meio à minha História algum dia.

Isso foi há dez anos. Talvez esteja na hora de voltar a Munique e procurar aquele livro.

Em 2006 publiquei na revista Germina um ensaio intitulado "Tradução, contexto e migrações possíveis", no qual discuto a possibilidade de que uma só teoria de tradução não possa dar conta das múltiplas relações poéticas com a historicidade. No ensaio, proponho a possibilidade de que alguns poemas estejam tão ligados a seus contextos, que a única maneira de os traduzir não pode levar em conta apenas semântica, métrica, ritmo, mas também o contexto em que foi escrito, buscando uma espécie de transcontextualização (como a chamei no ensaio), ou quem sabe uma simples contextualização. No segundo número impresso da Modo de Usar & Co., o poeta Fabiano Calixto deu-nos alguns exemplos incríveis desta possibilidade tradutória com suas transcontextualizações para poemas de Allen Ginsberg.

Sem termos conversado a respeito, sem que Birgit Aka conhecesse meu ensaio ou soubesse destas minhas obsessões, ela escolheu contextualizar este meu poema para um leitor alemão, traduzindo Clarice Lispector por Christa Wolf, a importante escritora da antiga Alemanha Oriental, e usando seu romance Medea: Stimmen (1996) no lugar de Perto do Coração Selvagem. Da mesma maneira, quando menciono Munique em meu poema, ela menciona São Paulo, já que ela própria fora estudante estrangeira no Brasil, como eu era estudante estrangeiro aqui na Alemanha naquele ano 2000.

Voltando ao velho adágio traduttore, traditore, eu diria o seguinte: prefiro ser traído a ser exotizado. Deixo vocês com a contextualização de Birgit Aka.




Gespräch mit zwei Fremden

bereit
das Land zu verlassen entlieh
ich in der Bibliothek der Universität
São Paulo Brasilien das
Buch Medea.
Stimmen
von Christa
Wolf eine deutsche
Ausgabe aus dem Jahr 2010 das
Buch in Deutsch in
dem ich kleine Bleistift-
notizen in Portugiesisch in
den Ecken einiger Seiten
entdeckte in einer
delikaten
femininen Schrift
einige sind lediglich Übersetzungen
ins Portugiesische von Wörtern
die sie nicht verstand wie
auf Seite 32 weit
oben, wo sie das Wort
„Augenblicksschwäche“ nicht verstand
und ihre
Übersetzung ins Deutsche
notierte
manche Fragezeichen
ganze Abschnitte einige „SO IST ES“
und „SO
IST ES“ ein anderes „SIE BEGREIFT‘S“
alle in Portugiesisch ich übersetze
viele Ausrufezeichen ein
„VERSTÄNDLICH“ es ist seltsam dass
die Notizen plötzlich aufhören
und erst
auf Seite 139 wieder einsetzen
ein „ARSCH“ notiert auf
Seite 160 neben dem
Abschnitt „Sie hat
es mir vorausgesagt.
Nicht auftrumpfend, nein,
eher traurig, oder mitleidig,
was unverschämt war. Sie hatte sich ja
selbst jedes Mitgefühl verscherzt. Das
sagte man mir im Rat, als ich versuchte,
für sie
um Milde zu bitten, wobei ich
nicht versäumte,
die Schwere ihrer Vergehen zu
betonen, sie hätten mich sonst
in der Luft zerrissen.“
auf Seite 167 explodieren
die Notizen in Ausrufe-
zeichen Fragezeichen
Nummerierungen 1-2-3 die ich
nicht verstehe unleserliche
Schrift nervös
die letzte ist auf Seite
173 und lautet „Geschichte der
Menschheit“ angekündigt durch die
Nummern 1-2-3-4-1
sechs Seiten später ohne
Notizen der Fremden
schrieb Christa Wolf: „Und wie?
fragt der Bursche mit Verschwörermiene.
Gesteinigt! brüllen viele.
Wie sie es verdienten. Die
Sonne geht auf. Wie die Türme
meiner Stadt im Morgenglanze
schimmern.“


(tradução de Birgit Aka)

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segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Uma notícia boa que trouxe consigo uma lembrança triste. Pensando sobre a poesia de Leonardo Martinelli dois anos depois de sua morte.

Recebi hoje por correio eletrônico o convite para o lançamento da coleção "Ciranda da Poesia", da EDUERJ, Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Com organização e direção de Ítalo Moriconi, Masé Lemos e Diana Klinger, o projeto busca fomentar o diálogo crítico sobre a poesia atual, convidando poetas e críticos ativos hoje a discutirem o trabalho de seus contemporâneos. Cada volume traz portanto um estudo crítico alentado sobre um único poeta, com uma antologia de seus poemas. Os primeiros volumes são dedicados aos seguintes poetas:

§ - Sebastião Uchoa Leite (estudo crítico e antologia a cargo de Franklin Alves Dassie)
§ - Leonardo Fróes (a cargo de Angela Melim)
§ - Chacal (a cargo de Fernanda Medeiros)
§ - Antonio Cicero (a cargo de Alberto Pucheu)
§ - Carlito Azevedo (a cargo de Susana Scramim)
§ - Claudia Roquette-Pinto (a cargo de Paulo Henriques Britto)
§ - Guilherme Zarvos (a cargo de Renato Rezende).

Também colaboraram com o projeto Viviana Bosi e Marcos Siscar. Espero poder ter alguns dos volumes em algum momento, para poder resenhá-los.

A notícia, que é bastante legal, trouxe-me à memória o querido poeta Leonardo Martinelli, que morreu há pouco mais de dois anos. Nos meses antes de sua morte, estávamos em contacto mais frequente, pois ele estava justamente preparando um estudo crítico sobre o meu trabalho e uma antologia de meus poemas para que fizéssemos parte desta primeira leva de livros da coleção, como a única dupla de poetas dos últimos poucos anos. Como vocês perceberam pela lista, foram escolhidos poetas das décadas de 60 (Uchoa Leite, Fróes), 70 (Chacal) e 90 (Cicero, Azevedo, Roquette-Pinto, Zarvos), mas Martinelli havia conseguido convencer o Moriconi a permitir que ele escrevesse sobre o meu trabalho.

No entanto, Martinelli não teria tempo sequer de preparar seu novo livro de poemas, cuidar de seu estudo crítico sobre Julio Cortázar, ou seguir com nossas conversas sobre Agamben e a poesia contemporânea: nosso companheiro morreu no Rio de Janeiro, em novembro de 2008. Alguns dias depois, Marília Garcia e eu preparamos uma postagem com poemas dele para a Modo de Usar & Co.. Este ano, a convite de Fabiano Calixto, escrevi um pequeno artigo sobre a poesia de Leonardo Martinelli para acompanhar uma antologia de seus poemas, selecionados por mim e por Calixto e publicados na revista Almanaque Lobisomem (2010). Como a morte colheu tantos projetos em que poderíamos ter compartilhado, cooperado, comiserado, coexistido, publico aqui o meu artigo sobre a poesia de Leonardo Martinelli, como uma homenagem ao amigo morto, que escreveu um dos meus poemas favoritos nesta década que se encerra: aquelas receitas para engolir e curar o fracasso. Que a terra lhe seja leve, meu amigo.


Receitas para engolir e curar o fracasso
Leonardo Martinelli

Origem, compra, preparo e sabor

1. Ave sertaneja
de porte médio
fibrosa, rija
de vida noturna

Preços: vinte e
sete contos o quilo
no Mercadão de
Madureira ou

trinta e sete
(ágio de dez paus)
nos açougues febris
da rede Mundial

O jeito é pegar
um 254 na madruga
ou encarar de frente
o trem da Central


2. Embrulhe o fracasso
com jornal de ontem


3. Afogue duas postas numa
panela de barro contendo
dois litros de vinho barato

Salgue e asse
em fogo alto

Enfeite o prato
com uma dúzia de

amóreas secas + 100 g
de fios de óvulos


4. Aí vai ele
numa baixela dourada
ridícula - duas
palavras
em francês fajuto
farão sorrir amarelo

o rapaz de
meia-idade e enrubescer
as bochechas
gentis suburbanas
à mesa

Rende
para uma duas três
mil pessoas


Posologia

Uma vez
hiperdosada
vai-se a bula ao
mar de bile



§
§
§



Pensando em Leonardo Martinelli



por Ricardo Domeneck



O poeta Leonardo Martinelli morreu aos 37 anos, no Rio de Janeiro onde nasceu, com um único livro publicado, Dedo no ventilador (2005), além de inúmeros ensaios, resenhas e poemas esparsos, espalhados por publicações impressas e digitais. Se a sua morte acaba por dar a sua obra o caráter inevitável de incompletude e interrupção, creio que poucas coisas o irritariam tanto quanto a ideia de ter seu trabalho enquadrado no discurso das carreiras promissoras, discurso que ele próprio combateu como poeta-crítico. Se a sua poesia pode hoje, infelizmente, integrar a triste lista dos poetas brasileiros de morte prematura, como Augusto dos Anjos, Pedro Kilkerry, Mario Faustino, Torquato Neto e a própria Ana Cristina Cesar que ele homenagearia com exasperação no poema “Elegia/ACC”, com os versos “Não, / Ana, nem / vem que não / tem: que / há para celebrar? / Teu salto / descalço na piscina / vazia? / As vinte e poucas / edições de tuas / obras / incompletas?”, chegando à asserção franca de “Foda-se, / Ana C., // você exaspera / qualquer um / com dúvidas, dívidas / filhos e culhões / com esses ares / de sereia pré-rafaelita / perdida / no Baixo Gávea”, seu trabalho merece, como o destes poetas, ser avaliado por suas contribuições e conquistas específicas, acima do discurso que Flora Süssekind já chamou de hagiográfico, dedicado com frequência e certo oportunismo crítico a jovens poetas mortos.

Conheci o trabalho de Leonardo Martinelli na revista carioca Inimigo Rumor, com a qual ele viria a colaborar regularmente, chegando a fazer parte de seu comitê editorial. Na revista ele estrearia com poemas, além de ensaios, como o texto importante que dedicou ainda muito jovem ao trabalho de Ferreira Gullar. Formado na década de 90, período em que vigorava, como parâmetro de qualidade, a poética construtivista que se depreendia da obra de João Cabral de Melo Neto (1920 - 1999) e Augusto de Campos (n. 1931), privilegiando uma composição minimalista e concisa em concretude, com um trabalho marcado pela consciência da materialidade substantiva e visual da linguagem (o que também marcou as traduções de maior influência no período, como as do norte-americano Robert Creeley), parte do trabalho de Leonardo Martinelli poderia ser agrupado à estética que comandou a atenção de muitos poetas jovens daquele momento, pelo menos ao sul e sudeste do país no fim do século passado, tal qual a vemos em livros tão diversos entre si quanto Solo (1996), de Ronald Polito; O marciano (1997), de Felipe Nepomuceno; Fábrica (2000), de Fabiano Calixto; Prosa (2001), de Eduardo Sterzi; Carbono (2002), de Tarso de Melo; Geografia íntima do deserto (2003), de Micheliny Verunshk; ou Crivo, de Danilo Bueno, e Primeiro as coisas morrem, de Diego Vinhas, ambos de 2004. Essa poética pode ser ainda ligada a Sebastião Uchoa Leite (1935 - 2003) e encontra raízes, no Brasil, em modernistas como Oswald de Andrade (1898 – 1954) e Joaquim Cardozo (1897 - 1978), sem mencionarmos poetas portugueses como João Apolinário (1924 – 1988), António Ramos Rosa (n. 1924) ou mesmo Ana Hatherly (n. 1929), com conexões variadas ao trabalho dos poetas brasileiros mencionados. Alguns destes poemas de Martinelli publicados na Inimigo Rumor, como “Anular” ou “Dorian”, viriam a integrar seu único volume editado.

Dorian

Então fitei
a tela - meus
olhos impressos
no espelho
(leitor-irmão
de sangue e tinta
ausente)
Cupins e traças
se encarreguem
da moldura:
quem sabe de mim
sou ele

Em seus poemas posteriores, Leonardo Martinelli parece introjetar a tática do conciso, para então transformá-la em uma espécie de estratégia do pontiagudo, passando a evitar o descritivo neutro de paisagens urbanas e máscaras mortuárias (cf. “Nietzsche: máscara mortuária”), assumindo também um desejo de intervenção histórico-textual, o que marca sua participação no afastamento que temos sentido, nos últimos tempos, da ideologia ligada a um conceito questionável como o de “trans-historicidade”. Como exemplos, poderíamos mencionar os poemas “Três torres, dois séculos, um dia” e “Dois fogos”, que integram esta seleção (refiro-me à antologia publicada no Almanaque Lobisomem).

Três torres, dois séculos, um dia
Leonardo Martinelli

A primeira tornou-se mito
ao servir de suporte à loucura
de um poeta farto dos homens
a não ser por certa Susette
falecida quatro anos antes
dele abrir seu prontuário
no manicômio de Tübingen
em 11 de setembro de 1806

As outras chamavam-se Gêmeas
cravadas no centro de Manhattan
bombeando usura aos quatro cantos
da Terra – ainda estariam lá
não fora um tresloucado
do Extremo Oriente Médio
explodir ambas de uma vez
em 11 de setembro de 2001

Creio que seus melhores textos estão entre aqueles que foram produzidos e divulgados nos últimos dois anos de sua vida, quando Martinelli elide a camuflagem do eu-ventríloquo que passou a se flagrar cada vez mais em alguns casos desta poética da objetividade, no fim do século XX e início do XXI, retornando, creio poder dizer, à lição de Ezra Pound, a que predicava o tratamento direto da coisa, seja objetiva ou subjetiva, além do importante conselho de que only emotion endures, entregando-nos alguns de seus poemas mais bonitos. Sua ligação no Rio de Janeiro à música popular viria a trazer ao seu trabalho uma aproximação escritural à mímica dos enunciados orais, sem no entanto recorrer a um discurso do espontâneo falsificado, outro aspecto que o aproxima à simplicidade da dicção do poeta português João Apolinário, injustamente esquecido.

Não compete ao crítico a veleidade futurológica. Poemas provam sua força, alguns diriam, por sua longevidade canônica; outros, por sua flexibilidade histórica, mostrando-se capazes de prover aquilo que necessitam as gerações sucessivas, adaptando-se aos novos parâmetros de qualidade e às novas funções históricas dos poetas, em cada um de seus contextos. Se pensarmos em poetas de morte prematura como Sylvia Plath, cuja obra tanto lucrou como foi prejudicada pelo discurso hagiográfico que a envolveu por muitos anos, encontraremos um exemplo de trabalho poético que, se se fragilizou com o tempo em suas manifestações iniciais, segue mostrando-se vigoroso em seus textos finais, escritos sob a pressão do terror que estreita (na estonteante etimologia da palavra angústia), como é o caso de uma das séries de poemas finais de Plath, conhecida como “poemas das abelhas”. Acima de quaisquer discursos de perfeição formal, são textos que perduram pelo choque intenso entre o veículo e o que veicula. Uma avaliação mais clara e completa sobre o trabalho poético e crítico de Leonardo Martinelli só será possível quando todos os textos dispersos forem reunidos em um volume futuro. Minha crença e aposta, por ora, torna-se aqui pública em favor de alguns dos seus poemas finais, como o bonito “Receita para curar e engolir o fracasso”, um dos poemas memoráveis (outro parâmetro crítico de Pound, o memorável) e também um de meus poemas favoritos nesta década que se encerra, entre alguns outros poemas do carioca. Textos que, eu creio, serão capazes de manter pontiagudas suas quinas, para perfurar cérebros e miocárdios futuros, em seus terrores privados e públicos, ou talvez ajudando-os a cavar, cavar até encontrar do estreito o escape.


Retrato Cubista (para cdcl)
Leonardo Martinelli

Não há remédio
para cólicas e abismos
afetivos:
você ali sentindo as
dores dentro e

o amor através -

além das
expectativas
mofadas ao
sol, eternas
cativas dos
malefícios fiscais
sem retorno -

do sorriso
infantil às margens
da Lagoa
após uma palavra
afiada
da última vez etc. -

então
o telefone
público
explode em cacos
oito meses
de idas sem volta -

esperas
tão banais
quanto um arco
e flecha
de brinquedo
um beijo sem retorno
ou dez mil pixels
de Picasso

(não esqueceremos
nada disso
querida,
e no entanto queremos
dormir em paz.)

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