domingo, 28 de fevereiro de 2010

Um homem sério




Assisti esta semana ao novo filme dos irmãos Coen, chamado A serious man (2009). O filme é muito, muito bom. Desde que vi Fargo (1996), tenho acompanhado o trabalho destes dois. Seu humor é corrosivo, inteligente, assustador. Em No country for old men (2007) eles também se mostraram hábeis narradores de thrillers, com um trabalho excepcional também de direção de atores. A serious man se passa em 1967 e tem uma ótima trilha sonora, tomada dos hits daquele ano, com a fantástica banda Jefferson Airplane.


sábado, 27 de fevereiro de 2010

O poeta paulista Fabrício Corsaletti lança "Esquimó"




Nesta terça-feira, dia 2 de março, o poeta paulista Fabrício Corsaletti (Santo Anastácio - SP, 1978) lança sua nova coletânea de poemas, intitulada Esquimó (São Paulo: Companhia das Letras, 2010), na Livraria da Vila, logo ali em meu antigo bairro e rua, a Fradique Coutinho. Conheci Fabrício pessoalmente nesta última viagem a São Paulo, Já conhecia alguns de seus poemas, no estilo "poeta pobre que lê livros em pé nas livrarias mas não pode comprar." Neste vídeo abaixo, o caro leitor/ouvinte pode ouvir sua bonita oralização para o texto "Seu nome".




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terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Guerras Mundiais, utopia e distopia nas vanguardas, poesia e historicidade, função poética e referencial e outras obsessões


Eu tinha outros textos e traduções programados para a Modo de Usar & Co. mas, na noite anterior, antes de enrolar-me na coberta e dormir, comecei a ler uma antologia alemã de poesia inglesa do século XX, intitulada Englische Lyrik 1900 - 1980 (Berlin: Reclam, 1983), publicada na República Democrática Alemã, na qual encontrei os poemas de Isaac Rosenberg (1890 - 1918). Garimpei esta antologia em um dos muitos sebos de Berlim. Aliás, vale comentar aqui como é realmente admirável o volume de poesia publicado na Alemanha Oriental. É óbvio que muito dele precisa ser posto sob suspeita ideológica, como é também claro que se publicava com afinco principal os russos que podiam ser lidos sob a ótica do Partidão. Mas não me incomoda encontrar tantas antologias de Maiakóvski nos sebos, mesmo que se concentrem nos poemas mais políticos. No entanto, aí é que se torna interessante a coisa, encontramos também muita coisa de Akhmátova, Mandelshtam e Tsvetáieva, que não eram exatamente queridinhos do Kremlin. Ao mesmo tempo, há muitas antologias de Dylan Thomas, William Carlos Williams, Guillaume Apollinaire, Tomas Tranströmer, etc. Não preciso mencionar que, com a reunificação, as publicações passaram a seguir a lógica do mercado e a publicação de poesia mirrou.

A antologia é interessante, ainda que muitas traduções para o alemão sejam ruins. Surpreende ao incluir poetas como Hugh MacDiarmid, David Jones e Basil Bunting, modernistas que são frequentemente ignorados. A antologia não supreende ao excluir a maior parte dos poetas do círculo de Auden da década de 30, com a exceção óbvia do próprio Auden.

Há um grupo de poetas ativos durante a Grande Guerra que apresenta alguns aspectos interessantes quando pensamos no modernismo das Ilhas Britânicas. São poetas que morreram muito jovens, como Wilfred Owen, Rupert Brooke e Isaac Rosenberg. Trata-se da geração que equivale à dos expressionistas do outro lado das trincheiras. Não há por que fazer rodeios: os expressionistas germânicos são em geral mais interessantes, como Georg Trakl ou Gottfried Benn. Mas alguns destes britânicos produziram poemas bastante interessantes, alguns textos de que gosto muito, como este "Break of day in the trenches", de Isaac Rosenberg, que traduzi para uma postagem na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co.

De ambos lados, entre os britânicos e os germânicos, muitos mantiveram-se dentro das formas fixas, com pesquisas feitas dentro da métrica herdada, outros usaram o verso livre. Parece-me, por exemplo, interessante pensar em Augusto dos Anjos ao lado de poetas como Ernst Stadler e Wilfred Owen. Poetas como Isaac Rosenberg e Gottfried Benn podem parecer mais "modernos" do que aqueles que mantiveram a métrica, mas isso é uma separação esquemática e nebulosa, que deveria ser revista. É enganoso associar apenas o verso livre com a modernidade, criar uma oposição e fazer da métrica o inimigo conservador. Emily Dickinson é tão moderna quanto Walt Whitman. Yeats produz sua poesia moderna mantendo-se na tradição. O mesmo pode ser dito de muitos dos melhores poemas de Eliot, como "The love song of J. Alfred Prufrock". Augusto dos Anjos pode até ser visto como um "pré-modernista" na visão esquemática do Brasil, mas ele é definitivamente um poeta MODERNO, como Joaquim de Sousândrade, Pedro Kilkerry e Marcelo Gama também o são. No Brasil, por questões bastante específicas como a oposição necessária à poética neoclássica parnasiana, criou-se uma dicotomia equivocada entre métrica e modernidade. Também é mais fácil encontrar discussões sobre o "modernismo brasileiro" que sobre "modernidade e poética no Brasil".

De qualquer forma, na postagem da Modo de Usar & Co. eu discuto o efeito da Primeira Guerra sobre as vanguardas, para abordar o debate sobre a historicidade do fazer poético mais uma vez.

A Primeira Guerra Mundial foi determinante para as vanguardas da primeira metade do século. A pesquisa das vanguardas é completamente marcada por aqueles acontecimentos. Poetas ingleses como Rupert Brooke, Wilfred Owen e Isaac Rosenberg morrem de um lado, enquanto poetas germânicos como August Stramm, Georg Trakl e Ernst Stadler morrem do outro lado da trincheira. O desaparecimento de Guillaume Apollinaire marca o desenvolvimento da poesia francesa posterior, já que os surrealistas pouquíssimo acrescentam à sua pesquisa ou à dos dadaístas. Só no pós-guerra, com Bernard Heidsieck, Isidore Isou, Henri Chopin e outros, a poesia francesa avançaria na pesquisa abortada pela Primeira Guerra, de homens como Apollinaire ou Pierre Albert-Birot. As convoluções políticas, as fugas e mudanças de países, assim como as mortes de Jean Verdenal e Henri Gaudier-Brska teriam efeitos marcantes para a vida e trabalho de T.S. Eliot e Ezra Pound, respectivamente. Há um ensaio interessante de Marjorie Perloff a respeito dos efeitos da Primeira Guerra sobre a vida e escrita de Eliot, definindo sua escrita futura, quando Eliot entrega-se cada vez mais ao papel desiludido de restaurador de um passado inalcançável. No primeiro capítulo de Wittgenstein's Ladder: Poetic Language and the Strangeness of the Ordinary (1999), a crítica americana analisa os efeitos da guerra sobre a escrita do Tractatus Logico-Philosophicus (1922), do filósofo austríaco. Pound, segundo Hugh Kenner, passa a tentar criar sozinho a Renascença que ele sonhara com os Imagists e Vorticists. A história dos primeiros grupos experimentais é a narrativa de um movimento abortado por catástrofes, as que se empilham sob os pés do anjo de Benjamin.


As ilusões de progresso e o caráter utópico que alguns associam com as vanguardas não morrem na década de 60, como Haroldo de Campos tenta argumentar em seu ensaio para poder defender sua elisão e fuga da História, mas em grande parte já em 1916. Os poetas do Cabaret Voltaire e da revista DADA já surgem como pós-utópicos e pré-distópicos, sem negar a historicidade do fazer poético. Após a Primeira Guerra, as vanguardas, muito distintas entre si e nem todas passíveis de encaixe na ideologia construtivista, passam a operar muito mais como resistência à distopia (que se tornaria ainda mais horripilante ao se aproximar a Segunda Guerra), do que agentes de uma revolução ou legisladores de uma utopia. Poderíamos dizer que u-tópica é muito mais a poesia que tenta estar fora do tempo e sem lugar (U-TOPOS), aquela que a ideologia crítica hegemônica de hoje tenta compor em poemas sob o signo da "trans-historicidade", este equívoco que não se sustenta at closer inspection. A retórica de Haroldo de Campos a partir da década de 80, ainda que defenda superficialmente a "sincronia histórica", está fundada em uma falácia teleológica, com conclusões que são ideológicas mesmo que apresentadas como factuais e empíricas, demonstrando em verdade um discurso quase determinista. A compreensão, no Brasil do pós-guerra, do trabalho dos primeiros grupos experimentais do século XX foi demasiado parcial, concentrando-se naqueles que se encaixavam em uma leitura e visão construtivistas da poesia, distorcendo e ignorando muitos aspectos de grupos como o dos dadaístas, além de silenciar sobre outros grupos do pós-guerra, contemporâneos de Noigandres, como os Lettristes parisienses, o Grupo de Viena ou a Internacional Situacionista.

Estou ciente dos riscos que tomo ao voltar a este debate em um artigo sobre um poeta como Isaac Rosenberg, mas este debate poderia ser feito ao discutir também contemporâneos de Rosenberg como Georg Trakl, em quem a relação entre transparência e não transparência do signo é mais complexa, ou poetas marcados pela Segunda Guerra, como Samuel Beckett e Paul Celan. Sabemos que, após os traumas da ditadura, nos dias de hoje qualquer tentativa de discussão sobre a historicidade do fazer poético acaba com frequência acusada de querer cercear a liberdade artística. Alguns mais histéricos, confundindo qualquer noção de historicidade com sociologia, chegam a falar até sobre "stalinismo", justamente os que confundem poeticidade com total não referencialidade. Há realmente críticos que reduzem textos poéticos a documentos sócio-culturais, como jornais ou cardápios, mas não é a isso que nos referimos aqui. Nas palavras de Jakobson: "a supremacia da função poética sobre a função referencial não oblitera a referência, mas torna-a ambígua”. A função poética não cancela por completo a função referencial, nem a materialidade do signo sua referencialidade, mesmo em poemas como as "Soledades" de Luís de Góngora ou os "Sueños" de Soror Juana Inés de la Cruz. Críticos como Paul de Man já demonstraram como mesmo em Mallarmé não se exclui por completo a referencialidade. O debate fervoroso entre Georg Lukács e Ernst Bloch sobre o trabalho dos expressionistas germânicos em 1934, gerando as reações de Bertolt Brecht e Walter Benjamin, é um exemplo de como é complexo o problema, algo que vai muito além das dualidades simplistas de um Claudio Daniel.

Torna-se portanto necessário insistir que não se trata de defender qualquer forma de poesia engajada ou participação política do poeta, mas de uma discussão estética sobre a historicidade do fazer poético, uma crítica e pensamento da textualidade em que o conceito de função poética de Jakobson manifesta-se não como essência, uma quidditas qualquer da poesia, mas um elemento funcional do texto poético, que não exclui as outras funções da linguagem, como podemos ver na poesia de todas as épocas. É um equívoco (e em minha opinião uma distorção do pensamento de Jakobson) acreditar que a função poética exclui ou cancela necessariamente a função referencial ou qualquer outra das funções da linguagem. O poema opera na fronteira entre transparência e não transparência do signo, o que nos leva à materialidade da linguagem que encontramos de Safo a Catulo, de Homero a Calimaco, em Arnaut e Cavalcanti, com Gregório de Matos e Augusto de Campos, sem apenas a teatralização visual do signo ou a recusa completa da referencialidade. Equivaler poeticidade a não referencialidade é uma proposição simplesmente falsa, defendida apenas por autores com uma ojeriza ideológica a qualquer forma de realismo. E isso não cancela as pesquisas específicas sobre a materialidade da linguagem ou os que conscientemente operam fora da referencialidade, como Hugo Ball ou Henri Chopin, por exemplo.

As condições para a escrita da poesia hoje não são tão diferentes das condições destes poetas das primeiras décadas do século XX, se pensarmos bem. Muito da estética dos dadaístas surgiu como resistência à ideologia militarista do mundo em que sabiam estar compondo seus textos e trabalhos visuais. Com a cavalgada militarista dos dias de hoje, pondo-nos às portas de uma distopia ou cataclisma, talvez seja frutífero pensar nas estratégias de grupos como o do Cabaret Voltaire, do Grupo de Viena, da Internacional Situacionista, de artistas e poetas como John Cage, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Waly Salomão, Paulo Leminski. Como Heiner Müller escreveu em um poema bastante sarcástico e ao mesmo tempo pungente, comentando as reclamações de Tácito (55 - 120 a.C.), que lamenta em seus Annales que os historiadores que o precederam tiveram mais guerras e mais catástrofes como material para a escrita, nenhum poeta hoje poderia reclamar da falta de material épico, ou até mesmo material lírico, na crise de um mundo que tenta suprimir o indivíduo e nos transformar em autômatos coletivizados.

--- Ricardo Domeneck

§

Raiar do dia nas trincheiras

A escuridão desmorona -
É o mesmo tempo druida de sempre.
Só uma coisa viva roça minha mão -
Um rato esquisito e sarcástico -
Ao arrancar do parapeito a papoula
Para por detrás da orelha.
Rato comediante, você seria fuzilado se soubessem
De suas simpatias cosmopolitas.
Agora você tocou esta mão inglesa
Amanhã fará o mesmo com uma alemã -
Sem dúvida em breve se bem lhe aprouver
Cruzar o verde sonolento entre nós.
Você parece sorrir por dentro ao passar
Por olhos fortes, pernas rijas, atletas orgulhosos
Menos aptos à vida que você,
Atados aos caprichos do homicídio,
Esparramados pelas entranhas da terra,
Os campos rasgados da França.
O que você vê em nossos olhos
No ferro e fogo barulhento
Arrojados pelo céu quieto?
Que tremor - que peito horrorizado?
Papoulas com raízes nas veias de homens
Caem, e caem eternamente;
Mas a minha está segura em minha orelha,
Apenas um tanto embranquecida de poeira.

(tradução de Ricardo Domeneck)

§

Break of Day in the Trenches
Isaac Rosenberg


The darkness crumbles away.
It is the same old druid Time as ever,
Only a live thing leaps my hand,
A queer sardonic rat,
As I pull the parapet's poppy
To stick behind my ear.
Droll rat, they would shoot you if they knew
Your cosmopolitan sympathies.
Now youao have touched this English hand
You will do the same to a German
Soon, no doubt, if it be your pleasure
To cross the sleeping green between.
It seems you inwardly grin as you pass
Strong eyes, fine limbs, haughty athletes,
Less chanced than you for life,
Bonds to the whims of murder,
Sprawled in the bowels of the earth,
The torn fields of France.
What do you see in our eyes
At the shrieking iron and flame
Hurled through still heavens?
What quaver – what heart aghast?
Poppies whose roots are in man's veins
Drop, and are ever dropping;
But mine in my ear is safe –
Just a little white with the dust.



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Autorretrato de Isaac Rosenberg.

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sábado, 20 de fevereiro de 2010

"Date of manufacture", reeditado.



vídeo, texto e voz: Ricardo Domeneck.
edição sonora e de imagem: Uli Buder.
tatuador: Julian Greif.

Berlim, 2009.

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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O olvido, Nancy Cunard, não lhe cai bem

A sensação começa em algum ponto da fronteira separando os pulmões das regiões ao sul do corpo. Algo como um "Até tu, Brutus?". Dá-se diante de fotografias de organismos de um era-uma-vez, absurdamente vivos, vívidos. Acontece, por exemplo, diante de fotos de Rodchenko focadas sobre o crânio de Maiakóvski, ou deste na cozinha dos Brik, nalguma manhã de sábado dos anos 20 em Moscou, e penso: "agora mortos, nem pó do pó." A sensação volta quando olho uma foto de Frank O´Hara, com vinte-e-poucos-anos, com um suéter preto, reclinado sobre um muro de Nova Iorque, na década de 50. Tão vivo, agora só um nome em cima de poemas? Sinto esse aperto também com fotos de um jovem Oswald de Andrade, em São Paulo, com aquela arrogância jovem e rechonchuda de quem acreditava estar prestes a conquistar o mundo.

E estes são os que ficaram. Os lembrados. Criaturas fabulosas que permaneceram na memória, incentivando-nos à vida, à ação! ao "lover´s quarrell with the world".

Então penso em quantas criaturas lendárias o mundo aos poucos esquece e me pergunto "como?" e "por quê?". Quem rege isso? Porque esquecemos, significa que tão importantes não podiam ser? Caio Valério Catulo foi esquecido por mil anos, antes de ser redescoberto. Quem garante que nunca mais será esquecido? E ele não é apenas um nome num catálogo, ele caminhou por ruas mui concretas de Roma, de carne e osso ao lado de seus amigos poetas Helvius Cinna, Publius Valerius Cato e Marcus Furius Bibaculus, aqueles que até hoje estão esquecidos, seus poemas esmigalhados pelo tempo.

Há poucos anos, o nome de Mina Loy era apenas um daqueles nomes de tantos modernistas que foram esquecidos, por tanto tempo. E no entanto, seu trabalho é interessantíssimo, único, completamente diferente dos outros modernistas de língua inglesa. Certa vez, Ezra Pound disse que os únicos poetas fazendo algo de interessante nos Estados Unidos eram William Carlos Williams, Marianne Moore e Mina Loy. O que fez com que Williams e Moore permanecessem no cânone e Loy não? Pound se equivocou? Ou o cânone é regido por misteriosas estruturas de visibilidade? Abaixo, um trecho das "Songs to Joannes" (1917), de Mina Loy, uma coisa única do primeiro modernismo, algo que me lembra o corporal em Hilda Hilst:

Spawn of fantasies
Sifting the appraisable
Pig Cupid ....... his rosy snout
Rooting erotic garbage
"Once upon a time"
Pulls a weed ....... white star-topped
Among wild oats sown in mucous membrane
I would ....... an eye in a Bengal light
Eternity in a sky-rocket
Constellations in an ocean
Whose rivers run no fresher
Than a trickle of saliva

These are suspect places

I must live in my lantern
Trimming subliminal flicker
Virginal ....... to the bellows
Of experience
Colored glass."


(Mina Loy - "Songs to Joannes" 1)

ou

I don't care
Where the legs of the legs of the furniture are walking to
Or what is hidden in the shadows they stride
Or what would look at me
If the shutters were not shut

Red a warm colour on the battlefield
Heavy on my knees as a counterpane
Count counter
I counted the fringe of the towel
Till two tassels clinging together
Let the square room fall away


(Mina Loy, "Songs to Joannes" 17)


Então, às vezes, aparecem nomes em textos sobre poetas que apreciamos, nomes de poetas esquecidos e nos perguntamos quem foram?, o que fizeram?, o que escreveram?, é justo que tenham sido esquecidos?

Ontem lia um texto de Kenneth Rexroth (ele próprio esquecido), em que ele menciona a modernista Nancy Cunard. Lembrava-me de seu nome, pois há um poema justamente de Mina Loy dedicado a ela; Cunard também parece ter feito parte do mesmo círculo de Gertrude Stein e Djuna Barnes em Paris.

Pesquisando, descobre-se que Nancy Cunard era poeta e editora, comandando a Hours Press, que publicou o primeiro texto de Samuel Beckett, um poema chamado "Whoroscope" (1930), no mesmo ano em que lançou A Draft of XXX Cantos, de Ezra Pound. Foi uma daquelas musas do modernismo, algo como, no Brasil, Tarsila do Amaral, Maria Martins ou Patrícia Galvão, a Pagu, a mesma misteriosa poeta Solange Sohl, que fascinou Augusto de Campos.

Procurei, mas não consegui encontrar poemas de Nancy Cunard. Talvez ela seja alguém da estatura de uma Mina Loy, por tanto tempo esquecida; talvez tenha sido apenas uma personalidade fascinante, sem deixar poemas fortes; como saber? Sem ler seus poemas, resta encarar as muitas fotografias de Nancy Cunard, por gente como May Ray e Cecil Beaton, entre tantas incríveis divas do modernismo.

Eu olho para estas fotos e tenho vontade de dizer em voz alta:

"Nancy Cunard, Nancy Cunard, quem foi você, criatura? Você teria como me contar sua vida? Valeu a pena? Quando você morreu sozinha naquele hospital de Paris, com 26 quilos de corpo, em que você pensou? No mesmo que Maiakóvski, naquele apartamento moscovita? O mesmo que Frank O´Hara, estirado na areia em Fire Island? O mesmo que Oswald de Andrade, esquecido e desligado em São Paulo?"













domingo, 14 de fevereiro de 2010

Textos e antologias e personagens

TEXTOS.






Isolei-me na casa do moço este fim de semana, para terminar um texto que vinha preparando há três semanas para um volume de ensaios críticos sobre poesia contemporânea, a ser publicado pela Fundação Casa de Rui Barbosa este ano. Já escrevi sobre o pós-guerra com frequência; volto sempre às movimentações críticas da década de 50, algo que me fascina, com todos os grupos de retomada de estratégias da vanguarda, dos Lettristes de Paris ao Dau al Set de Barcelona, de Noigandres em São Paulo ao Grupo de Viena, da Escola de Nova Iorque à Internacional Situacionista; escrevi também sobre o trabalho individual de alguns poetas contemporâneos, como Hilda Machado (1952 - 2007), Ricardo Aleixo (n. 1960), Carlito Azevedo (n. 1961), Angélica Freitas (n. 1973), Érico Nogueira (n. 1979) e Juliana Krapp (n. 1980), mas neste texto tento pela primeira vez articular, em uma narrativa consciente de si como narrativa, minha descrição do processo de instituição da ideologia dominante nos discursos críticos após o fim da ditadura, assim como o questionamento desta ideologia por alguns poetas a partir de meados dos anos 2000. Para isso, essas três semanas foram passadas na companhia de críticos tão divergentes quanto Walter Benjamin, Theodor Adorno, Hugo Friedrich, Paul de Man, Giorgio Agamben, Fredric Jameson, Maurice Blanchot, Marjorie Perloff e Alfonso Berardinelli. Quero agora me entregar a algum excelente romance e passar a próxima semana lendo somente e tão-somente poesia.



Trailer para uma discussão sobre a poesia brasileira dos últimos 20 anos e sua relação com o público e o mundo em que é composta.


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ANTOLOGIAS.






Chegou esta semana minha encomenda de uma antologia, originalmente publicada em 1959 na Inglaterra, chamada Protest: The Beat Generation and The Angry Young Men. O editor traça um paralelo entre os escritores norte-americanos da década de 50, que ficariam conhecidos como Beat Generation, e seus contemporâneos britânicos, menos conhecidos, que seriam chamados de Angry Young Men. A gênese do termo e estilo dos Beats americanos é já bastante conhecida. Quanto aos Angry Young Men, a expressão tem, como DADA, Beat ou punk, múltiplas interpretações e descrições de sua origem. Uma das mais aparentemente óbvias seria a autobiografia de Leslie Paul, intitulada Angry Young Man (1951), de onde a expressão teria surgido, mesmo que Leslie Paul não fizesse parte do grupo e descrevesse os anos 30 em seu livro, o que o ligaria talvez aos poetas britânicos bastante engajados daquela década, como o primeiro Auden, mas também Stephen Spender e Cecil Day Lewis.

Se o poema de Ginsberg - "Howl" (1956) - e o romance de Kerouac - On the road (1957) - são considerados os marcos iniciais oficiais da Beat Generation, na Inglaterra são consideradas marcos inaugurais do trabalho dos Angry Young Men a peça teatral Look Back in Anger (1957) de John Osborne, e os romances Hurry on Down (1953) - de John Wain - e Lucky Jim (1954) - de Kingsley Amis. Este movimento inglês deu-se basicamente na prosa e no teatro, ao contrário dos Beats, que praticaram quase todos a poesia. Na Inglaterra, outros autores associaram-se de alguma forma com os Angry Young Men, como o dramaturgo Harold Pinter. A influência destes autores, na Inglaterra, parece-me ainda forte, especialmente no trabalho de Mike Leigh, Ken Loach e Steve McQueen. Suas antíteses em estilo-estratégia, ainda que irmanados pelo desejo de intervenção política, seriam Ken Russell e Derek Jarman. Talvez Charlie Chaplin seja precursor de ambas estratégias?

A primeira vez que ouvi falar dos Angry Young Men foi em 1994, quando eu morava nos Estados Unidos, e meu amigo Julian Wuermser leu e me recomendou a novela (ou conto longo) The Loneliness of the Long Distance Runner (1959), de Allan Sillitoe, escritor associado a este grupo. Talvez por ter sido editada na Inglaterra, onde os escritores dedicaram-se basicamente ao romance e ao teatro, a antologia toda, para meu desespero, traz um único poema: precisamente "Howl", de Ginsberg. Talvez editada cedo demais, não carrega alguns dos melhores textos dos Beats, muitos só publicados a partir de 1959, como o Naked Lunch de Burroughs, os melhores livros de Ginsberg, Reality sandwiches (1961) e The Fall of America (1973), ou o trabalho de poetas como Gregory Corso e Diane di Prima. A própria seleção do trabalho de John Osborne deixa a desejar. Mas traz alguns textos muito legais, como "The time of the geek", de Kerouac, e "Report from the asylum", de Carl Solomon, a quem Ginsberg dedicou seu "Howl", e se trata de um documento interessante para seguir pensando sobre aquela década espetacular e complicadíssima, os anos 50.




Cena do filme (1958) de Tony Richardson, baseado na peça Look Back in Anger (1956), de John Osborne.



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PERSONAGENS.






Revi este fim de semana a filmagem de Peter Brook (de 1963) para o romance Lord of the Flies (1954), de William Golding. Foi um dos romances que mais me impressionaram quando o li, ainda adolescente, e ainda é um dos meus favoritos. É deste romance também uma de minhas personagens literárias prediletas e mais inesquecíveis: Simon. Se aceitamos o caráter alegórico da narrativa de William Golding, creio não estar abusando ao dizer que, para mim, Simon é a figura do poeta naquela sociedade. Não é à toa, portanto, que ele seja o primeiro a ser assassinado. É sempre impopular carregar o papel de alertar e dizer à sua comunidade:

"Maybe the Beast is just us."





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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Trabalhando com sons e com ideias: David Lieske a.k.a. Carsten Jost

Há alguns artistas conceituais alemães que trabalham também como DJs e produtores de música eletrônica, algo que parece bastante incomum no Brasil, onde tudo é muito separado, especializado, onde poeta é poeta, artista é artista, músico é músico e cada mico-leão-dourado em seu galho.

Aqui na Alemanha, em alguns casos, há uma união entre as duas práticas, e não consigo pensar em outra maneira de ver/ouvir coletivos como o Kraftwerk.


("Heimcomputer", do Kraftwerk, ao vivo em 1981)

Hoje em dia, talvez o melhor exemplo seja o do artista conceitual Carsten Nicolai, mais conhecido por seu trabalho musical sob o codinome de Alva Noto.


("Spray", de Alva Noto - persona musical de Carsten Nicolai)

Outro exemplo bastante conhecido na Alemanha é o do artista conceitual David Lieske, nosso convidado desta semana em nossas intervenções quarta-feirísticas, que se apresenta como DJ, produtor musical e diretor do selo Dial Records sob o codinome Carsten Jost.





Colo aqui apenas alguns exemplos de seu trabalho como David Lieske, o artista conceitual, colhidos pela Rede, e como Carsten Jost, o DJ e produtor musical.



("The Nature Of Your Oppression Is The Aesthetic Of Our Anger", de David Lieske)

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("Il mio solo idolo è la realità", de David Lieske)

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("The metaphysics of youth", de David Lieske)

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("Dice thrown", de David Lieske)

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(Sem título (Anagramma), de David Lieske, 2006)

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("Make pigs pay", de Carsten Jost, persona musical de David Lieske)

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("Love", de Carsten Jost, persona musical de David Lieske)


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sábado, 6 de fevereiro de 2010

"A morte de um presidente" e mais uma oportunidade para falar sobre um possível poema pré-distópico

Assisti esta semana ao mockumentary do diretor britânico Gabriel Range, lançado aos leões em 2006, chamado Death of a president, em que Range imagina e simula o assassinato de George W. Bush, usando imagens reais de protestos em Portland e discursos do texano, unidas a imagens gravadas pelo time, simulando protestos massivos em Chicago, que culminam com o atentado contra Bush. O diretor chega a usar cenas reais do funeral de Ronald Reagan para simular o que teria sido o funeral de Bush. O filme é bastante inteligente e muito bem produzido, discutindo com vigor certas questões que são, na verdade, velhas amigas norte-americanas, como uma possível liberdade de desobediência civil em um país de segregação. Difícil não pensar em Thoreau e Cage ao escrever estas palavras. Antes mesmo de ser lançado, o filme já começou a causar controvérsia em muitos países, especialmente nos Estados Unidos, obviamente. Mas mesmo em países como o Japão ele chegou a ser proibido.

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(trailer para Death of a president, do diretor britânico Gabriel Range)

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O filme me fez pensar em outro britânico, que trabalhou com questões extremamente parecidas, sobre quem já comentei aqui neste espaço. Trata-se de Peter Watkins, autor de docudramas como o inovador Culloden, sobre os levantes jacobitas do século XVII inglês, e também diretor do excelente Punishment park (1971), um dos filmes pré-distópicos mais impressionantes que já vi.

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(cena de Punishment park, de Peter Watkins)

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Enquanto isso, no Brasil, os poetas seguem falando sobre pós-utopia ou publicando artigos em que defendem, pela quinquagésima vez e com uma intransigência fanática, a noção de autonomia artística (mito ideológico), como se a inevitável historicidade da arte significasse, consequentemente, o cerceamento de sua criação. Parece-me um discurso ideológico de caráter ingênuo, tanto política como artisticamente. É realmente incrível quantas vezes conseguem requentar as mesmas dualidades. Pessoalmente, diria que essa crença, de que apenas a ideologia da autonomia intransigente da arte pode garantir sua "liberdade", parece-me o cúmulo do est-É-ticamente ingênuo, mas imagino que estejam dizendo o mesmo do outro lado, negando a própria tentativa de junção entre ética e estética, então sigamos com nosso diálogo surdo.

Eu realmente entendo os poetas mais velhos que viveram sob o regime militar e foram traumatizados pela crítica marxista do período, aquela que reduz qualquer texto literário e poético a mero documento histórico-social, fazendo com que um poema habite a mesma esfera dos jornais matutinos ou cardápios de restaurante, com uma noção paupérrima de textualidade. Mas não é a isso que me refiro. Quando uso a grafia est-É-tica e falo sobre as implicações do fazer poético, refiro-me a Ludwig Wittgenstein e suas meditações sobre o contexto; refiro-me a Walter Benjamin e alguns de seus grandes ensaios, como aqueles dedicados a Baudelaire e à Paris do século XIX, a cidade vista através de Baudelaire; penso em livros brilhantes como The mechanic muse ou The Pound Era, de Hugh Kenner; em algo deslumbrante como o livro My Emily Dickinson, de Susan Howe; em ensaios como "Poesia resistência", de Alfredo Bosi; em livros como Wittgenstein´s Ladder ou The dance of the intellect, de Marjorie Perloff; nos ensaios de Alfonso Berardinelli e nos momentos brilhantes de Fredric Jameson; penso, antes de mais nada, em Oswald de Andrade e nos melhores de nossos poetas modernos, como Joaquim de Sousândrade, Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, em quem mesmo a recusa e negação surgem como ação. Não são poetas que se abstêm. Mas isso, é claro, tampouco significa que não haja momentos em que tudo o que quero é poder ler livros como Além da imagem (1963) de Henriqueta Lisboa ou Da morte. Odes mínimas (1982) de Hilda Hilst.

Ou seja, falar sobre est-É-tica e sobre as implicações da textualidade poética significa cercear a liberdade de criação? Não, eu realmente não creio que signifique isso. É claro que muitos poetas ouvem essas questões e entendem que elas implicam responsabilidade, mas isso não é algo novo. Os poetas ligados à revista Noigandres já falavam sobre "responsabilidade total perante a linguagem". Alguns pensam em algum tipo de policiamento estalinista, que os proibiria de escrever poemas de amor, mas essa é realmente uma visão muito simplista da discussão. Nós precisamos realmente de muitos poemas de amor, mais e mais. Quando Tom Zé trabalha com o Grupo Corpo em um espetáculo sobre o amor, declarando-o como resistência à selvageria contemporânea, isso é uma escolha est-É-tica.


Seria apenas saudável que nós poetas escrevêssemos poemas de amor conscientes de estarmos vivos em 2010 e não em 55 a.C., em 1225 ou 1750.



(Grupo Corpo, coreografia de Rodrigo Pederneiras e música de Tom Zé)

A dança e a performance, em todos os seus níveis e práticas, seja em textualidade ou materialidade visual, assumem na verdade uma posição central na pesquisa de uma est-É-tica contemporânea de resistência, e temos a sorte de contar no Brasil com o pensamento de coletivos como o Grupo Corpo (Belo Horizonte) e o Grupo Cena 11 (Florianópolis). Figuras como Klauss Vianna (1928 - 1992) e Lygia Clark (1920 - 1988) são também guias fundamentais.


(excertos de três espetáculos do Grupo Cena 11)

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(Klauss Vianna, A dança, 1990)


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Resistência, até mesmo através do amor. Não pela negatividade, como queria Adorno em seu ensaio "Lírica e sociedade", mas por um viver na frincha, na brecha, ser a cicatriz. À inflexibilidade e mentalidade engessada dos pós-utópicos, prefiro a intransigência dos líricos que têm os pés no chão, os pré-distópicos.



(Jean-Luc Godard, Éloge de l´amour, 2001)

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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

As surpresas de contexto

Passei o último fim de semana na casa do moço, porque ele é chique e tem aquecimento a gás, não precisa arrastar baldes de carvão do porão para o quarto toda noite. O moço trabalha às vezes no complexo conhecido como Berghain, o que eu poderia chamar aqui na Europa de "o mais lendário clube contemporâneo do país", mas não sei se a lenda se expande para além do charco atlântico. Uma noite, o moço estava fazendo o que todo bom jovem alemão faz: estava ouvindo música eletrônica em seu quarto. De repente, minha mente começou a reconhecer uma voz, umas palavras e eu perguntei, naturalmente, "o que é isso?". O moço respondeu que se tratava de uma faixa incrível de techno que Ricardo Villalobos andava tocando no Berghain. Qual não foi minha surpresa quando percebi do que se tratava:


Ricardo Villalobos/Reboot - Caminando (sic), aqui com DJ Tiësto em São Petersburgo, Rússia)

"Pra não dizer que não falei de flores"?! Na voz de Simone? Em pleno Berghain? Perdi isso, não estava lá. Segundo o moço, no momento do coro "Vem, vamos embora, que esperar não é saber", o povo na pista de dança ia à loucura com o bass e o coro de vozes brasileiras. Ouvir essa canção depois de tantos anos é realmente estranho, Geraldo Vandré ocupa uma posição ambígua no imaginário artístico brasileiro por sua postura que, a nossos olhos, parecia demasiado nacionalista e protecionista, especialmente por seus ataques contra os tropicalistas. Geraldo Vandré segue sendo, de certa forma, uncool, digamos, mesmo que Caetano Veloso não esteja passando pelo momento mais cool de sua recepção crítica e aquelas trincheiras talvez não façam tanto sentido mais. Ou fazem sentido mais que nunca?




Foi interessante e estranho, em pleno inverno alemão, em 2010, explicar para o moço o contexto desta canção, falar sobre a ditadura militar brasileira, paralelos entre os contextos brasileiro e alemão entre as décadas de 60 e 80, a guerrilha no Brasil, a resistência à ditadura militar, o processo de Entnazifizierung/desnazificação na Alemanha, a Facção do Exército Vermelho e afins.

Os paralelos de contexto podem ser, às vezes, assustadores.

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