sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Algumas perguntas, ainda sobre a edição da revista "Cuardernos Hispanoamericanos" dedicada à Literatura Brasileira

Desde que recebi e li o número 735 da revista Cuardernos Hispanoamericanos dedicado à Literatura Brasileira, e principalmente após escrever o último artigo aqui neste espaço, no qual o comento, algumas perguntas têm-me incomodado, martelado minha cabeçoila já amassada. Uma delas diz respeito a uma asserção que eu mesmo fiz: a de que, por estar incluído na seleção, sentia-me impedido de comentá-la criticamente.

Isso ficou me incomodando. Ora, ninguém quer cair na cabotinagem do elogio, nem na ingratidão da invectiva, mas certamente estes são os extremos da crítica que precisamos todos evitar, para que a crítica seja efetiva, honesta e possa funcionar. Em geral, o que ocorre é a falência da crítica, e por mais que este conceito de falência esteja tão em voga, hoje em dia considero como única verdadeira falência da crítica o silêncio.

Uma das coisas que passei os últimos dias perguntando-me é: estar incluído impede-me ou obriga-me a um comentário crítico? Talvez nenhum dos dois, mas a resposta então seria a atitude mais comum: o silêncio, ao qual geralmente me recuso, como vocês já devem ter percebido. Minha bocarra gigante.

Se no artigo anterior simplesmente comentei o número da revista em alguns de seus aspectos, gostaria de expor agora algumas perguntas no espírito do diálogo, elaborando alguns pontos do meu artigo e, em outros, até mesmo corrigindo-os. Como o próprio Jorge Henrique Bastos citou em uma mensagem, após escrever-lhe expondo algumas discordâncias, a crítica deveria ser como o que Pound chamou de "conversation between intelligent men", sem os usuais ataques de nervos e egos que tão frequentemente vemos no Brasil.

§ - Como a revista afirma dedicar o número à Literatura Brasileira hoje, ainda que eu esteja ciente de que os nomes intocáveis de Graciliano Ramos, Clarice Lispector ou Vinícius de Moraes não são, infelizmente, óbvios para um leitor espanhol, talvez houvesse sido mais condizente com o propósito do número reservar tal espaço, seja o da mera menção ou da discussão, para autores vivos, produzindo realmente hoje.

§ - Afirmei em meu último artigo que a revista parecia bem-informada. A verdade é que, tratando-se por exemplo da prosa contemporânea brasileira, eu próprio não me sinto bem informado, pois não a acompanho ou visito de forma assídua. Imagino que os nomes de João Almino, Adriana Lisboa e Frances de Pontes Peebles sejam exemplos da prosa brasileira recente que merecem estar na revista. Infelizmente, não conheço seus trabalhos, não posso afirmá-lo ou negá-lo. Portanto, não se trata de criticar exclusões, mas de sugerir que um número futuro venha a tratar de autores como Veronica Stigger, Joca Reiners Terron, João Filho, Bernardo Carvalho, Sérgio Medeiros ou Nuno Ramos, dentre os que conheço um pouco melhor. São autores muito diferentes entre si, com a característica comum de estarem produzido trabalho sério, discordemos ou não de suas escolhas ou quanto ao resultado que alcançam.

§ - Certamente a existência de traduções de livros dos autores na Espanha torna-se um fator compreensivelmente considerado por um editor, mas continua me parecendo um problema crítico muitíssimo sério no número, que um autor tão não-influente (para usar um eufemismo educado) quanto Lêdo Ivo, por ser amplamente traduzido na Espanha tenha tomado o lugar de direito de poetas muito superiores a ele, como Augusto de Campos e Leonardo Fróes. Superiores como técnicos da linguagem, além de muito mais influentes e relevantes para o debate poético contemporâneo. Imagino que algumas pessoas incluiriam ainda Manoel de Barros nesta lista.

§ Não posso criticar a inclusão de Nélida Piñon por não conhecer seu trabalho. Sei que seu romance A República dos Sonhos (1984) é respeitado por certos setores da intelligentsia nacional. Lamento apenas que Márcia Denser, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca e Sérgio Sant´Anna não tenham encontrado acolhida na revista, não como substitutos, mas ao menos como companheiros, autores certamente mais influentes entre os prosadores mais jovens. Poderíamos mencionar ainda Raduan Nassar, mesmo que ele já não produza hoje. De qualquer forma, o lamento quer, na verdade, servir como sugestão para publicações futuras da revista.

§ Entende-se que a revista quisesse concentrar-se em autores vivos, mas a morte prematura e recente de autores como Haroldo de Campos e Hilda Hilst não impede que eles estejam extremamente vivos e muito mais presentes no debate contemporâneo que autores como Lêdo Ivo, por exemplo.

§ A parte mais difícil de comentar é justamente aquela em que estou incluído, intitulada "Antología de la poesía actual brasileña", com organização e introdução de Jorge Henrique Bastos e traduções de Vicente Araguas.

O trabalho de qualquer antologista me parece sempre árduo, cheio de armadilhas incontornáveis e de recepção quase invariavelmente ingrata. A literatura e a poesia contemporâneas de um país são sempre campos minados com e por debates est-É-ticos em andamento e nunca realmente resolvidos, releituras e reformulações críticas, teias comportando-se como correntes, raios e margens ansiando pelo centro e núcleo. Não é à toa que a maior parte da crítica escolhe o caminho do retrospectivo e não do prospectivo, para usar as hábeis expressões de Dirceu Villa. É muito mais fácil olhar para o passado, escrever sobre o que já está estabelecido como bom e relevante. É um trabalho crítico necessário e importantíssimo para a saúde de uma literatura, que pode envolver muita criatividade e inteligência para os que não querem simplesmente inchar a bibliografia crítica sobre os autores, mas realmente debater aspectos muitas vezes despercebidos por outros críticos, contemporâneos ou não. No melhor dos casos, tal crítica consegue ser retrospectiva e prospectiva ao mesmo tempo. Basta pensarmos nas leituras de Walter Benjamin ou, no Brasil, as de Haroldo de Campos e Augusto de Campos dedicadas a Joaquim de Sousândrade e Oswald de Andrade; a que Flora Süssekind dedicou a Sapateiro Silva; ou os trabalhos editorial e crítico de James Amado e João Adolfo Hansen com a obra de Gregório de Matos. É claro que não vamos mencionar aqui os nomes dos preguiçosos que simplesmente acreditam poder ganhar o prêmio ao apostarem no cavalo vencedor depois que este já cruzou a linha de chegada, ou os que meramente regurgitam o que já foi dito por bons autores sobre bons autores, em paráfrases engenhosas e esbanjando embasamento acadêmico universitário, com longas listas de bibliografia especializada dando ar de autoridade a suas defesas do engessado, estes agentes do status quo, bandeirantes de quintal.

Como Dirceu Villa expôs em seu último artigo ("Retomando a conversa", in O Demônio Amarelo, terça-feira, 11 de outubro de 2011) – com a elegância que já lhe é conhecida, a única crise hoje no Brasil é a ausência de uma crítica forte e preparada que se disponha a ler a poesia e a literatura do presente sem antolhos, sem atitudes iracundas por vezes dignas de adolescentes (o que mais parece abundar hoje no Brasil é a ala do enfant terrible na casa dos 50 anos de idade - so embarrassing and unbecoming - , e há revistas que até se especializam neste nicho), tendo achaques feito sereias da catástrofe porque os autores de seu tempo não estão seguindo os caminhos que gostaria que seguissem, ou porque não estão emulando os seus mestres eleitos. Por vezes, tenho a impressão de que o problema de tais críticos é não entender muito bem a relação entre poesia e crítica, ou seja, confundem qual das duas é o cavalo e qual a carroça. Quero voltar ao artigo de Dirceu Villa em outro momento, pois ele discute o Nobel a Tranströmer e outras questões que me interessam, mas por ora retorno à nossa discussão, que não está, porém, distante da que ele empreendeu ali.

Pois eu discutia o trabalho do antologista. Se a palavra antologia, a partir do grego, nos leva à ideia do colhimento e arranjo de flores – daí a palavra florilégio em português; e se a palavra crítica, também a partir do grego, nos leva à ideia de separar, discernir, fica patente que uma antologia de poetas/poemas é, em primeiro lugar, um trabalho de crítica autoral, talvez antes mesmo de ser um livro de poemas, pois passa a estar condicionado por esta ação que se quer discernente, fazendo do antologista-crítico uma espécie de apanhador no campo, não de centeio, mas de joio e trigo. E aí começam os grandes problemas que nos vão levar com tanta frequência à discussão sobre a subjetividade inescapável e a objetividade possível no ato de antologiar.

Talvez tudo isso pudesse ser resolvido com o cuidado rigoroso na hora de intitular antologias. Ao intitular o recolho de poemas na revista "Antología de la poesía actual brasileña", Jorge Henrique Bastos talvez tenha aberto portas a discordâncias que não teriam lugar na discussão se os poetas/poemas ali apresentados não acabassem tendo que operar como representativos. Trata-se de um risco sempre presente em antologias de caráter nacional. Convida tanto aos rancores regionais como a pelejas est-É-ticas. O espaço reduzido, permitindo tão-só um poema de cada um dos 6 poetas (dois no caso de Damázio, sem mencionar os outros quatro autores e seus poemas mencionados no ensaio), acaba inevitavelmente sujeito à insuficiência. É algo a ser pensado, por exemplo, a decisão dos editores em optar pela publicação de poemas inéditos, quando talvez houvesse sido melhor a publicação do que cada autor tem de melhor em sua obra, já que são todos jovens e não têm livros editados na Espanha. Mas, com espaço para apenas um poema, seria difícil representar até mesmo o trabalho de cada poeta, quem dirá o de todo o Brasil. São problemas muitas vezes incontornáveis, mas que não precisam embargar o projeto.

Continuo acreditando que este número da revista Cuadernos Hispanoamericanos, dedicado a escritores brasileiros, deveria ser visto com alegria, mesmo com seus pontos questionáveis e de discordância possível. Imagino que alguém mais cínico dirá que acredito nisso apenas por ter meu trabalho mencionado. Ora, quanto a um leitor que pense desta maneira sobre mim, fico apenas pasmo que ele perca tempo lendo meu blogue. Exponho estas perguntas porque meu senso crítico e de honestidade realmente me levaram a ver o último artigo como insuficiente e falho.

Agradeço a Jorge Henrique Bastos, assim como a Benjamín Prado e Juan Malpartida, o respeito com que claramente conduziram seu trabalho. Exponho aqui estas perguntas no espírito das palavras de Pound que Bastos citou em nosso debate particular: como conversation between intelligent men – conversa que me dá prazer ter, com ele, os editores da revista e os leitores e leitoras deste espaço.

Nascido em 1964 em Belém do Pará, com passagens por São Paulo, Rio de Janeiro e Lisboa, onde organizou a antologia Poesia Brasileira do Século XX - dos modernistas à actualidade (Lisboa: Antígona, 2002), Jorge Henrique Bastos tem um trabalho jornalístico, editorial e crítico sérios, colaborador em revistas e jornais tais como Diário de Lisboa, Independente, LER, Colóquio-Letras e Camões, sendo responsável ainda, por exemplo, pela primeira edição portuguesa de Macunaíma - o herói sem nenhum caráter (Lisboa: Antígona, 1998) e pela primeira edição brasileira do poeta Herberto Helder, O CORPO O LUXO A OBRA (São Paulo: Iluminuras, 2000).

Quanto ao editor Benjamín Prado, meu respeito, junto com o dos outros três editores da Modo de Usar & Co., está já estampado tanto em nosso primeiro número impresso, com vários poemas do espanhol, quanto em nossa franquia eletrônica.

Abraço a todos os homens e mulheres inteligentes que passam por este espaço,

aqui despeço-me,

Ricardo Domeneck – passando frio em Berlim.


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