Recebi este fim-de-semana meu exemplar do número 735 da revista espanhola Cuadernos Hispanoamericanos, que tem como diretor o poeta e romancista Benjamín Prado, e Juan Malpartida como redator-chefe. Este número é o primeiro a ser lançado em edição bilíngue espanhol-português, inteiramente dedicado à chamada Literatura Brasileira Hoje, com atenção especial à poesia, em minha impressão pessoal.
É sempre estranho escrever criticamente sobre um volume no qual seu próprio trabalho comparece. Jorge Henrique Bastos, que escreve um ensaio sobre a atual poesia brasileira e que busca evitar qualquer partidarismo, menciona meu trabalho e inclui um poema inédito meu na mini-antologia da revista. O ensaio, intitulado "Poesia brasileira recente: bicho de sete cabeças", discute certos aspectos e parâmetros visíveis em alguns jovens poetas surgidos neste século, e comenta, além do meu trabalho, o de Eduardo Sterzi, Tarso de Melo, Angélica Freitas, Marília Garcia, Micheliny Verunschk, Dirceu Villa, Reynaldo Damázio, Rodrigo Garcia Lopes e Mariana Ianelli. Pareceu-me uma tentativa honesta de abordagem crítica, e consciente da própria impossibilidade do ensaio panorâmico da poesia em um país de proporções continentais. É claro que sempre será possível discordar-se dos nomes incluídos. Serão representativos estes poetas? O título do número da revista talvez convide a este tipo de crítica. Sou obrigado a me abster de comentar demais, pois estar incluído me impede. Não sei se a revista chegará ao Brasil, mas seria frutífero se fosse lida criticamente por outros. De qualquer maneira, publicamente ou não, tenho certeza que haverá quem se descontente com a seleção. A minha própria teria sido outra, mas isto tão facilmente cai no afã ocioso de simplesmente atacar listas incompletas com outras listas incompletas. É um campo minado, o da organização de antologias. O que seria interessante: analisar criticamente as inclusões, o que, como já disse, estou impedido de fazer por estar entre elas. Esta mini-mostra de poesia atual traz cinco poemas inéditos de Ferreira Gullar, e ainda os poemas "Memorando", de Mariana Ianelli; "Cefalópode", de Dirceu Villa; "E pur si muove" e "Cosmogonia", de Reynaldo Damázio; "Cerco", de Micheliny Verunschk; "El duende", de Rodrigo Garcia Lopes"; e encerra-se com meu poema intitulado "Eu", inédito em livro. As traduções para o espanhol ficaram a cargo de Vicente Araguas.
Ferreira Gullar é o grande homenageado da revista, com poemas, ensaio crítico e uma pequena entrevista. Sua presença no mercado editorial espanhol tem sido constante nos últimos anos, e diz-se que a tradução de seu Poema Sujo (1975) teve "impacto" no país ibérico, o qual ele parece ter visitado nos últimos anos para leituras de seus poemas. Podemos discordar de praticamente tudo o que Gullar hoje diz na imprensa brasileira, assim como podemos ter visões conflituosas sobre a qualidade verdadeira e real de sua poesia, certamente irregular, mas seria difícil negar a influência de seu trabalho sobre vários poetas.
Sabemos que a visão da poesia de um país estrangeiro está sempre marcada por sua presença através de traduções, que nem sempre refletem a posição de um poeta em seu próprio país. Por exemplo, algum dia ainda pretendo escrever sobre a posição de Paul Celan dentro da poesia germânica: imagino que um brasileiro, sabendo que Celan é um dos poetas mais traduzidos e celebrados da língua alemã no pós-guerra (no estrangeiro), imaginará que sua poesia é central dentro da tradição poética germânica. Pois tal leitor brasileiro se surpreenderia com a maneira como é ilhada a influência de Celan na poesia alemã do pós-guerra. Muito conflui para isso, mas me parece um exemplo interessante. Portanto, a publicação de antologias poéticas de Gullar na Espanha, assim como a de seu Poema Sucio, explicam seu grande vulto na revista, que não me parece injusto. A revista, imagino, quis dedicar-se apenas a poetas vivos, o que talvez explique a ausência completa de Haroldo de Campos em suas páginas, já que nos últimos anos a Espanha viu vir a lume tanto a belíssima antologia organizada por Andrés Fischer sob o título Hambre de Forma: Antología Poética (Madri: Vientisieteletras, 2009), como ainda, com tradução e prólogo de Andrés Sanchez Robayna, a publicação de Crisantiempo (Barcelona: Acantilado, 2006).
Aqui, porém, alguém poderia reclamar o lugar de direito que deveria ter sido reservado à obra de Augusto de Campos dentro do número de uma revista dedicado à literatura brasileira de hoje. Uma explicação possível, mas certamente não uma justificativa, talvez venha do fato de Augusto de Campos não ter ainda sido tão traduzido na Espanha como seu irmão. Mesmo a inserção de Haroldo de Campos no circuito de traduções parece ter-se dado apenas após sua morte, o que nos deixa um tanto deprimidos. Porém, a ausência de Augusto de Campos torna-se muito mais alarmante quando percebemos quem é o segundo poeta brasileiro com maior espaço na revista: Ledo Ivo. Imagino que um leitor brasileiro agora pare e pasme, mas a verdade é que Ledo Ivo é hoje um dos poetas brasileiros mais traduzidos na Espanha, ao lado de poetas como os já mencionados Ferreira Gullar e Haroldo de Campos, além de Armando Freitas Filho. Esta presença de Ledo Ivo em certos países europeus sempre me assusta. Já me perguntei se sua completa insignificância, como já escrevi recentemente, dentro do debate poético contemporâneo brasileiro se dê por preconceitos vanguardistas nossos, herdados da década de 50, que nos fazem por em xeque a poesia brasileira da década de 40. Pois bem, após uma viagem à Espanha em que encontrei vários livros de Ledo Ivo em livrarias, resolvi verificar se eu havia deixado algo passar por minha atenção. No entanto, a mim a poesia de Ledo Ivo segue parecendo um caso claro de frouxidão de linguagem, de um lirismo que beira no máximo o pseudofilosófico. Qualquer poema de Augusto de Campos ou Leonardo Fróes demonstra maior consciência tanto da materialidade como da opacidade necessárias da linguagem poética. Completamente distanciada dos questionamentos mais interessantes no debate poético brasileiro, o trabalho de alguém como Ledo Ivo talvez gere ressonância dentro da poesia espanhola principal que, com exceções, muitas vezes assemelha-se à do Grupo de 45. O único outro caso na revista que talvez pareça estranho a um brasileiro é a eminência de Nélida Piñon entre os prosadores. Não conheço o trabalho da ex-presidente da ABL, jamais li um de seus livros. Sei que ele é respeitado no âmbito hispânico. No Brasil, não sei quanta ressonância ou influência tem.
No entanto, excetuando as aparições controversas de Ledo Ivo e Nélida Piñon, o número da revista pareceu-me bem informado, apenas enfrentando a dificuldade praticamente intransponível de dar a conhecer a literatura de um país como o Brasil, tentando incluir tanto poetas e prosadores do pós-guerra imediato como as vozes recentes do século XXI. O ensaio de Vicente Araguas refere os leitores espanhóis a figuras importantes do entreguerras e do pós-guerra, como Tom Jobim, Oscar Niemeyer, Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira, Érico Veríssimo, Rubem Fonseca, Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo, Carlos Drummond de Andrade. A nós estes nomes podem parecer óbvios, mas não o são na Espanha, infelizmente. Assim como a gigantesca e incontornável Clarice Lispector parece ser um vulto sobre toda a revista, como deveria ser, mencionada em alguns artigos. João Almino e Adriana Lisboa comparecem como prosadores contemporâneos. Ronaldo Correia de Brito escreve sobre o também gigantesco Graciliano Ramos, este que foi um dos maiores acontecimentos de linguagem no Brasil. Para mim, um romance como Angústia (1934) segue parecendo melhor do que qualquer coisa que eu tenha lido de Steinbeck e Camus, por exemplo. Ou mesmo de Hemingway, para dizer a verdade.
Em novembro, o Brasil é o homenageado no Europália. Em 2013, na Feira do Livro de Frankfurt. Espero que seja o início do processo que fará de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Hilda Hilst e outros, finalmente, os household names que deveriam ser na Europa, para que os europeus finalmente mereçam por completo sua reputação de cultos.
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Nota: Marília Garcia lembrou-me que Haroldo de Campos ainda estava vivo quando foi lançada na França, em tradução de Inês Oseki-Dépré, o volume Galaxies (La Souterraine: La main courante, 1998).
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4 comentários:
em países da am.lat.já me perguntaram bastante pelo thiago de mello.
parece-me que são apenas poetas radicados aí pelo sudeste do país. se eu estiver certo, a mostra certamente é falha....
Angie,
Thiago de Mello consegue ser pior que Lêdo Ivo. Ôxe. Eu sei como é.
Bom te ver por aqui.
beijo
R.
Caro Gustavo,
este tipo de crítica, de um caráter de representatividade regional, sinceramente, parece-me um pouco simplista às vezes. A coisa é muitíssimo mais complicada. Veja bem, não estou negando a existência de uma concentração de atenção sobre as cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. Mas muito coopera para esta centralização, que não é, diga-se de passagem, nada nova, nem privilégio do Brasil ou da modernidade. Isso pediria uma discussão por si só, algo que não posso empreender aqui e agora, mas vale pensar que a obra de Catulo talvez jamais houvesse sido preservada se o jovem houvesse ficado em Verona em vez de seguir para a capital, para o centro, para Roma. Haveria outros exemplos.
Repito que não quero minimizar o problema da centralização no Brasil, mas é realmente muito complicado e pouco provável que um poeta produzindo no interior, seja de São Paulo ou do Pernambuco, vá conseguir atenção para seu trabalho sem fazer com que este chegue a um "ponto de distribuição". A internet não mudou isso tanto quanto pensamos.
De qualquer maneira, para responder a sua pergunta de forma bastante objetiva, pesquisei um pouco a biografia dos poetas:
Como você deve saber, o grande homenageado da revista, Ferreira Gullar, é de São Luís do Maranhão; Ledo Ivo, infelizmente incluído, é de Maceió, Alagoas; Rodrigo Garcia Lopes é de Londrina, no Paraná; realmente, Reynaldo Damázio, Dirceu Villa e Mariana Ianelli são da capital de São Paulo; eu sou do interior do estado, Bebedouro, mas vivo há dez anos fora do Brasil, em Berlim, Alemanha; Angélica Freitas e Eduardo Sterzi, discutidos no ensaio, são do Rio Grande do Sul, Pelotas e Porto Alegre, respectivamente; Micheliny Verunschk é de Arcoverde, Pernambuco. O organizador Jorge Henrique Bastos, por sua vez, é de Belém do Pará. Creio que esta crítica talvez não caiba aqui. Não sei se você concordará.
abraço
Ricardo Domeneck
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