segunda-feira, 24 de outubro de 2011
"Praticando o `dérive´: trajeto Charlottenburg – Mitte, Berlim, 5 de outubro de 2011": poema inédito e pequena nota a quem possa interessar
Este é provavelmente o último poema inédito que publicarei por aqui neste ano de 2011. Os vários inéditos que me restam, quero guardar para meu próximo livro, que pretendo lançar no primeiro semestre de 2012. Livro que venho preparando há bastante tempo, intitulado Ciclo do Amante Substituível, título cafona como só eu, com textos escritos entre 2006 e este nosso ano catastrófico de 2011. Do que se trata? Ah, senhor e senhora, anotem aí, é puro melodrama disfarçado de ironia. Self-deprecation é o que nos salva do ridículo completo. Será um livro exclusivamente de minha lírica amorosa. O livro estava praticamente pronto, mas certos acontecimentos dos últimos meses e o fluxo de poemas que geraram em mim acabaram transformando a coletânea. Meu projeto inicial era simples: esvaziar a gaveta. Mas o livro ficaria gigantesco (devo ter mais de 80 poemas, e vocês sabem que não sou exatamente o mais minimalista dos poetas brasileiros contemporâneos), o que me levou a cortar muitos textos, além de toda uma seção, e decidir publicar apenas o calhamaço principal: minha lírica amorosa e desamorosa dos últimos anos. Ainda não me decidi se incluirei nele o pequeno livro Cigarros na cama (Rio de Janeiro: Berinjela, 2011). Creio que não.
De qualquer maneira, acho apropriado encerrar a publicação de inéditos deste ano com este poema, abaixo. Não sei até que ponto isto é claro ou relevante, mas o que mais me interessa no formato do blogue, e o que às vezes tento empreender aqui, é justamente usar seu formato diarístico para, ao mesmo tempo, investigar, pesquisar, caçoar, homenagear, praticar, satirizar, emular certa noção de poesia lírica que o Romantismo nos legou. Para isso, o formato do blogue é perfeito. Mesmo porque o que me interessa nos últimos tempos é o limite do circunstancial, parte de minha obsessão pela função do contexto no trabalho com a linguagem, e minha militância pela historicidade do trabalho poético. Ah, escrever versos de circunstância é minha única ambição, senhor, senhora!
O poema abaixo, provavelmente tão falho quanto todos os meus outros, encena um pouco disso tudo. Eu sou hoje, neste momento de minha existência, um poeta lírico. Os antilíricos que sejam felizes, desejo-lhes todo o sucesso do mundo! Mas como escreveu Herberto Helder: "Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar." Tanto que, faz já dois meses, comecei a dar por encerrada (pelo menos por ora) minha investigação da noção de poesia lírica herdada dos Românticos e voltei-me de vez para o Medievo: agora, ao lado de dois músicos, escrevo canções. E escrever isso aqui, agora, faz-me pensar que parece apenas consequência natural que vem desenovelando-se desde que entrei com roupa e tudo numa banheira para filmar aquele vídeo para a TV Cultura, em 2006, chamado "Garganta com texto". Nos próximos meses, quero passar meus dias bebendo café, fumando cigarros e escrevendo cantigas de amigo e cantigas de escárnio. Meu mestre agora é Martim Codax.
Praticando o dérive: trajeto Charlottenburg – Mitte, Berlim, 5 de outubro de 2011
Com os pés, digo sim
a este 5 de outubro,
como se eu tivesse outra
alternativa. E tenho. Não
sei, talvez fora o início
da caminhada, ter saído
de um local de burocratas,
minha vontade burguesa
de instituir minha diferença,
rodear-me de uma cerca
de luxo intelectualizado. E
com apenas 3 euros e 75
centavos no bolso, o dérive,
por exemplo, significa
a economia
que me permitirá amanhã
o almoço.
É 2011 e ainda sou poeta
pobre, moço. Mas, dessarte,
posso escrever este poema,
este, que ora vai já a 1/5,
imagino,
de sua duração, esta chance
de seguir fazendo
de mim l'indivu du spectacle.
Quiçá tenha sido o fato
de que estar tão longe,
no oeste
da cidade, sempre me faça
sentir de viagem.
Queria desviar-me,
esquadrinhar o desatino,
perder o leme,
não tanto estar à deriva
quanto escalavrar proa e popa,
esperar um vento
qualquer que fizesse das paredes
do meu estômago
vazio o bojo de lona
entesado das velas
duma embarcação, não bêbada,
mas em abstinência, abstinência.
Fico assim quando contigo
no pensamento, rijo,
hirto.
Não sei se chego
com estes passos
a uma nova experiência
da cidade que é também
tua. Na psicogeografia
dos situacionistas,
que eu diligentemente
busco assim praticar, influía
meu peito de bicho
em estase amoroso,
tornando-me um georadar
qualquer no campo minado
de uma terra que tão-só
uma nova ciência,
oxalá uma espécie
de erogeologia,
poderia agora mapear.
De qualquer forma,
é impossível a linha reta
nesta tua terra
e cidade cortada
por canais e ruínas.
De tão quotidianas,
minhas descobertas
não entreteriam os viciados
em epifanias. De que lhes adianta,
ou mesmo a ti, por exemplo,
saber que a cafta
no pão, que seria a única
refeição do meu dia, custa
ali 20 centavos menos? Que a
Savignyplatz continua
cheia de berlinenses e turistas
ricos? Mas fumei durante o trajeto
seis de meus Gauloises.
Queria bastar-me, suar dentro
das minhas próprias roupas,
dizer: cheirem, este é o meu cheiro,
produzido por meu corpo
em troca mercantil com o oxigênio
compartilhado com árvores,
ratos, cigarros. E contigo.
Na livraria do Instituto
Helmut Newton, o livro
com o trabalho fotográfico
de Linda MacCartney
mostrava mortos outrora vivos.
Pensei no milagre da radiofonia
na gravação das vozes,
poder escutar hoje
os mortos dos desastres
dos natais passados,
enquanto compunha este texto
em uma de nossas línguas
ocidentais, que são tão-só
fonografia.
Queria telefonar para ti, moço,
dizer: “Consider Jeff Buckley,
who was once handsome,
pale, sexy, gorgeous and tall
as you”, mas tu
não entenderias a citação
ou estas minhas metonímias
em frangalhos que nada mais
querem dizer que “soon
is too late”.
Cantarolei então “Cais”,
como se eu fosse Elis;
“Single”, tal qual Thorn;
“Maldigo del alto cielo”,
pensando em Violeta Parra
e seu acessório
balístico para têmporas;
qualquer coisa
feito Feist, ou,
como o caolho tristonho,
“I might be wrong”.
E eu quem sabe esteja.
Queria mesmo, nesta terra
famosa por suas Guerras,
dizer: tu e quantos Bismarcks,
quantos milhões de exércitos,
criatura, crês necessários
para me desatinar e abismar?
E, sabes?, o anjo
sobre a Coluna da Vitória
parece-me cada dia menor,
de proporções cada vez mais
humanizadas. Toda separação
é perfectível em nossa relação,
como um espetáculo de sociabilidade,
na união e divisão das desaparições
graduais da tua pele, tua
desorganização do meu território.
O Portão de Brandenburgo
está mais uma vez aberto,
suas colunas retas como cambitos,
e eu queria era ver tropas
passando por elas, como eu um dia
debaixo de tuas pernas.
E é assim, como sujeito e como
representação, ao chegar
a minha casa alugada,
o aluguel atrasado,
sozinho, a catinga
no quarto de cigarros e cinzas,
sem quem me componha cantigas
de amigo ou de escárnio,
que eu elaboro esta estratégia
genial, machucar as gengivas
de propósito com a escova,
para caminhar pelas ruas
sentindo-me beijado de língua
pelos próximos dias a fio,
em deriva,
derivado de tua míngua.
Ricardo Domeneck
.
.
.
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Um comentário:
colando aqui a colagem de primeiras impressões ("para durar", rs)
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ufa. atravessei o Berilmbo nas trilhas tortuosas das tuas letras / Martin Codax em loop no walkman. te sentes estrangeiro do outro lado da cidade? engraçado, pra quem nasceu do outro lado do mundo... "Ah, escrever versos de circunstância é minha única ambição, senhor, senhora!" senhor, senhora ambição. haha. l'indivu du spectacle. (mas) escalavrando proa e popa / invento um cais / invento mais. oxalá uma espécie de erogeologia. é ímpossível a linha reta em qualquer terra; o espaço é curvo, o espaço é tempo, a matéria é energia em razão com o quadrado da velocidade da luz - e nós andamos pouco e lento. nem adagio. nós não presto. döner é excelente refeição / mas seis gauloises economizam mais de vinte centavos. e o anjo cada vez mais humano. o portão outra vez aberto. cantiga de amigo ou de escárnio? oferecemos na música sólida dos corpos / na microfonia dos dias / futuros. registrada guardada preservada ao alcance do futuro pela radiofonia pela fotografia / e outros pequenos milagres / mesmo pequenos.
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