Li hoje o artigo de Paulo Henriques Britto para a Los Angeles Review of Books, intitulado "Poesia Brasileira Hoje" (em inglês e português no link ao lado). Escrito para o público americano, que tem um conhecimento parquíssimo sobre a Literatura Brasileira, o texto delineia a História Oficial de nossas letras desde o século XIX até os dias de hoje.
Peço licença para tecer um par de comentários sobre o artigo, de um poeta, tradutor e crítico que respeito e que, aliás, já foi generoso com meu trabalho.
O primeiro tem a ver justamente com esta "História oficial". É uma questão complexa, mas se acredito que ela deve começar a ser questionada aqui, faz sentido espalhá-la pelo estrangeiro? Minha decepção, ao contrário do que alguns possam imaginar, está na descrição oficialesca que ele faz do século XIX.
Não podemos, e esta é apenas minha opinião, seguir com esta narrativa histórica única, herdada em grande parte dos nada desinteressados Modernistas de 22. Sinto uma falta de capacidade nossa em pensar Histórias alternativas, em compreender precisamente a narratividade e a historicidade de qualquer "narrativa histórica".
Estado de exceção? A Literatura é toda ela um estado de exceção. Precisamos evitar os efeitos do inchaço bibliográfico do que Dirceu Villa já chamou de "historiografia do típico". Que parece nos impedir de rever o que nos interessa HOJE.
A Modernidade literária brasileira firma-se no fim do século XIX. Repetir ininterruptamente a narrativa da construção nacional tem sua relevância talvez como historiografia, mas já não mais interessa como visão e narrativa unívocas da Literatura brasileira. Pois, como sempre, acaba jogando à margem, como se deu mais uma vez aqui, artistas como Qorpo-Santo, Joaquim de Sousândrade, Luiz Gama, Sapateiro Silva e Raul Pompeia, que sequer são mencionados no texto. Mas como, se são hoje mais importantes que José de Alencar, ao menos para quem lê mais que manuais escolares de literatura?
Assim como seguimos vendo o século XIX sob a lente de contato dos militares de então, seguiremos vendo nossa modernidade como mero pré-modernismo? Os rapazes importantíssimos e necessários de 1922, por mais que ame a obra de vários deles, empalidecem muitas vezes perante a fúria est-É-tica daqueles dragões das últimas décadas do século XIX que mencionei aqui, ligados ainda ao gigantesco Machado de Assis, assim como Cruz e Sousa, ou, entrando já no século XX, Euclides da Cunha, Lima Barreto e Augusto dos Anjos. Por serem autores que vão justamente contra essa noção de mera construção nacional. Como já disse algures, criam "não mitos da fundação, mas crônicas do afundanço." Esses autores já estavam enfrentando o "cronicamente inviável" no século XIX, acima de ufanismos. Sua violência política e modernidade literária seguem sendo exemplares. E as duas estão, creio, conectadas.
Paulo Henriques Britto chama estes autores de meros "stirrings of modernity in the previous generation". Quantos países realmente contavam com tal modernidade em 1914, às vésperas da Grande Guerra? Não deveríamos estar apresentando, não só a nossos estudantes nas escolas, mas também a leitores estrangeiros, o que temos de melhor? Havia muito mais que meras ideias importadas da França agitando-se naquela fabulosa geração das últimas décadas do século XIX.
Este foi um dos meus maiores incômodos. O artigo busca certa neutralidade, ainda que ele pareça ter compreeendido melhor, como era de se esperar, a pluralidade de vozes de sua própria geração. Talvez estejamos todos presos a esse dilema.
Tive prazer em sua atitude non-partisan com outros momentos, como a década de 50 e seu resgate de um poeta como Mario Chamie, que deveria ser lido para além da lei de silêncio imposta por Noigandres. Duvido que os herdeiros eleitos em SP vão gostar muito disso. Assim como apreciei a importância que dá à Tropicália.
Paulo Henriques Britto é um crítico consciente e generoso, como podemos ver em sua apreciação de três poetas tão distintos quanto Edimilson de Almeida Pereira, Érico Nogueira e Ismar Tirelli Neto. Considero os três importantes, e é um sinal de inteligência que ele possa perceber a obra de Edimilson para além da questão política, mas que é importantíssima e que defendo, assim como ele pôde ver além do aspecto conservador apenas de superfície do trabalho de Érico Nogueira.
Mas, por fim, menciono outro grande incômodo com o texto: de cerca de 20 parágrafos para um texto intitulado "Poesia Brasileira Hoje", apenas 3 são realmete dedicados à poesia brasileira de hoje.
Em Frankfurt, pude testemunhar Luiz Costa Lima subir a um palco, convidado a falar sobre a "poesia brasileira hoje", e passar uma hora tergiversando justamente para não falar sobre a poesia brasileira de hoje.
Isso me parece uma pena. Por mais que os americanos precisem de uma "contextualização", mais tempo poderia ter sido dedicado à poesia brasileira de hoje, se este era o objetivo. De qualquer forma, estes 3 parágrafos são uma contribuição à discussão.
Há outras coisas a serem discutidas no texto. A ideia de uma "turn to the normalcy" parece-me complicadíssima. Há outras "histórias oficiais" apresentadas no texto que merecem questionamento, como o alardeado suposto "fim das utopias", com data marcada e tudo.
Ainda vamos manter esse discusro em pleno final de 2013, hoje já 2014? Isso é algo que venho questionando a partir de certas falácias narrativo-críticas do ensaio de Haroldo de Campos sobre o "poema pós-utópico" já há algum tempo. Talvez não seja o lugar de voltar a isso. No ensaio que estou escrevendo para a revista alemã Babelsprech, sobre a "poesia brasileira hoje", talvez possa responder a algumas destas outras questões. Se alguém mais quiser entrar no debate, minha caixa de comentários está à disposição. Só não estou interessado em Fla-Flu.
Ricardo Domeneck, 2 de janeiro de 2014.
.
.
.
3 comentários:
Caro Ricardo:
Sou professor de Literatura e faz tempo me vejo às voltas com os manuais escolares que não conseguem romper com a tradicional e "didática" periodização canônica da literatura brasileira. A reflexão sobre nossa história literária parou com Antônio Cândido e Alfredo Bosi? Nunca releremos o cânone? Os eleitos e suas eleições não serão questionadas? Devemos sempre pichar Bilac como "alienado", fazer de conta de Graça Aranha nunca existiu (bem como as inconveniências do pensamento racialista/racista expostas em Canaã)e acreditar que o pessoal de 22 se resumia a Mario e Oswald? Nesse sentido, uma contribuição como a de Flávio Kothe, com sua trilogia O canône colonial/imperial/republicano, é bastante rara.
Penso que ensinar literatura, meu ofício, afinal, é ensinar a ler o texto literário. A percepção de que há uma (in)consciência de época, preocupações e estilos que atravessam várias produções de um mesmo período histórico, vem como consequência da leitura - extensa e variada. Sempre, porém, ressalte-se: cada autor é um autor e, no limite, cada texto é um texto.
Como classificar de Barroca a simplicidade luminosa e quase "prosaica" deste Gregório de Mattos:
"Pintura admirável de uma beleza
Vês esse sol de luzes coroado?
Em pérolas a aurora convertida?
Vês a lua de estrelas guarnecida?
Vês o céu de planetas adorado?
O céu deixemos; vês naquele prado
A rosa com razão desvanecida?
A açucena por alva presumida?
O cravo por galã lisonjeado?
Deixa o prado; vem cá, minha adorada,
Vês de esse mar a esfera cristalina
Em sucessivo aljôfar desatada?
Parece aos olhos ser de prata fina?
Vês tudo isto bem? Pois tudo é nada
À vista do teu rosto, Catarina."
MATOS, Gregório de. Desenganos da vida humana e outros poemas. São Paulo, Hedra, 2013.
Outro ponto interessante é o diálogo entre nossos escritores e seus contemporâneos de outros países. Quanto ganha a compreensão do Romantismo quando embarcamos no pessimismo lúcido, paradoxalmente sereno de Giacomo Leopardi? E por que nós não produzimos um poema parelho?
"Repousa para sempre,
exausto coração. Morto é o engano extremo
que eu supusera eterno. É morto. E sinto
que em nós de enganos caros
a mais da esperança, o desejar é extinto.
Repousa. Já bastante
hás palpitado. Coisa alguma vale
o teu bater, nem de saudade é digna
a terra. Tédio amargo
a vida, e nada mais; e lama é o mundo.
Quieto, pois. Desespera
por urna última vez. À raça humana o fado
não deu mais que o morrer. Ora despreza
a natureza, o triste
brutal poder que contra nós impera,
e o infinito vácuo do que existe."
LEOPARDI, Giacomo. A si mesmo. In Poesia de 26 séculos - 2º volume / de Bashô a Nietzsche. Tradução de Jorge de Sena. Lisboa: Editorial Inova, 1972.
Mas o propósito de seu texto é o de discutir a produção contemporânea, e me vejo aqui também falando do passado. De qualquer forma, fica aqui meu pitaco.
Grande abraço:
Ruy Lozano
Caro Ricardo,
Só hoje fiquei sabendo do seu texto, porque não costumo ler blogues; devo a indicação ao André Capilé, um jovem poeta mineiro que talvez você conheça. De modo geral, gostei bastante do artigo; algumas das críticas que você faz refletem diferenças de pontos de vista, que são perfeitamente naturais. Mas gostaria de chamar atenção para duas questões:
(a) Você não acha apropriado eu apresentar no estrangeiro uma visão da literatura que já está sendo questionada há muito tempo — uma periodização um tanto rígida, uma mitificação da Semana etc. Mas é justamente por ser um público estrangeiro que estou fazendo isso. Para questionar a visão tradicional de alguma coisa, é preciso que antes se conheça essa visão tradicional. Se alguém que não saiba absolutamente nada sobre literatura alemã lhe pedir uma apresentação geral do assunto em três laudas, Ricardo, você vai falar sobre Goethe e Schiller ou vai fazer uma crítica detalhada de um artigo recente sobre os méritos relativos de Ingeborg Bachmann e Paul Celan? Na primeira versão do meu artigo submetida ao editor, eu pressupunha o conhecimento da Semana e mencionava questionamentos atuais sobre a visão paulicêntrica do modernismo. O editor do LARB me devolveu o meu texto cheio de perguntas: Que Modern Art Week é essa? Que common wisdom é essa? Ele não tinha a menor ideia do que eu estava falando. Como meus limites de espaço eram sérios, percebi que não daria para apresentar a visão tradicional e depois fazer ressalvas. Se você reler o artigo, vai perceber que há no texto alguns indicadores de distanciamento: “according to the standard history learned by schoolchildren throughout the country”, “its rejection of meter and rhyme seemed an act of Republican virtue” etc.
(b) Você me critica por gastar mais tempo contextualizando a poesia contemporânea do que falando sobre ela. Você tem toda razão. Mas como eu posso fazer um leitor estrangeiro entender que a geração marginal era uma reação a um certo status quo sem explicar a eles que status quo era esse? E como explicar para eles o que foi a postura antipassadista dos modernistas de 22 sem explicar qual era o passado que eles estavam combatendo? E assim por diante, até bater em Pero Vaz Caminha, ou quase. Quando terminei de contextualizar — de uma maneira apressada e simplificadora, generalizando e omitindo coisas importantes, sem dúvida — constatei que já havia usado mais de dois terços do meu espaço. E quem já escreveu para publicações norte-americanas sabe muito bem que todos os limites impostos têm que ser respeitados. Passei mais tempo cortando e reescrevendo do que escrevendo, e terminei gastando até o último toque que me haviam concedido. Resumindo: fiz o possível dentro do espaço que puseram a minha disposição. Como diria Mário de Andrade, melhor que isso não sei fazer não.
Um grande abraço do seu admirador,
Paulo
Concordando com a observação de Ruy Louzano sobre o poema de Gregório. Uma questão central na poesia de Gregório é realmente a modernidade, no meu modo de ver. Concordo também com o fundamental do argumento de Ricardo - embora a ideia não tenha ainda talvez passado para manuais de ensino médio nem para sites didáticos, o fato é que pelo menos a scholarship universitária brasileira ja desconstruiu há algum tempo o suposto vínculo necessário ou fundante entre modernidade e modernismo paulista na narrativa da história da cultura e da literatura no Brasil. Nada mais enganador hoje do que ensinar autores e obras do século XIX como "pré" modernistas. A meu ver, o que existe é uma história (arqueológica, genealógica, mas também linear-diacrônica) da relação entre a cultura brasileira e a modernidade. Abraços a todos!
Postar um comentário