Este
não será ainda o texto que eu hei-de dedicar ao senhor, João
Domeneck. Eu ainda estranho a morte do senhor, a morte do senhor é
uma notícia sem corpo, uma mensagem sem voz, aqui deste lado do
Charco que eles chamam de Atlântico. Mas é a notícia que faz da
nossa ausência mútua algo mais escuro. Quantos caracteres, quantos
signos foram necessários para anunciar a morte do senhor? Tão
poucos. Mas quantos dariam conta da enormidade dessa novidade
absurda? Ao mensageiro que lhe trouxe a notícia da morte de Saul,
Davi caiu-se por sobre ele com a espada. Mas a mensageira era minha
irmã, João Domeneck, aquela que o senhor criou como se fosse sua. E
o era menos, por não ter saído das suas coxas?
Duas
décadas depois de ter deixado a casa do senhor e da mãe, é como se
cada dia devesse ter sido um preparo para estes, imediatamente
posteriores à morte do senhor, mas nunca são. Que frase louca me
veio à cabeça agora, João Domeneck, “a morte nunca é sã.” O
senhor riria? Meus irmãos têm todos feito suas homenagens,
expressado o descorçoo da perda, e sinto essa voz acusatória,
dirigindo-se não a mim, mas ao senhor, “E o teu filho metido a
escritor, João Domeneck, não vai dizer nada, não vai abrir aquela
bocarra cheia de opiniões?” Me deixem quieto no meu canto, sobre a
morte do senhor eu não tenho opinião, só susto. É, este não será
ainda o texto que eu hei-de dedicar ao senhor, João Domeneck. Este é
apenas o primeiro registro do susto.
Eu
me lembro da morte da mãe do senhor, aquela italianona ruiva do
Molise, aquela avó de coração de romã, numa véspera de véspera
de Natal, e a sua viagem à sua
cidade natal,
ao velho cemitério de Taiaçú, no interior do interior de São
Paulo, para buscar os ossos do pai do senhor, que também se chamava
João Domeneck, não, não se chamava João Domeneck, é hora de
corrigir os erros de imigração, da nossa imigração, o pai do
senhor, João Domeneck, chamava-se Joan Domènech, eu sei. Ou, como o
senhor sempre se lembrava, o Jão Catalão, como era chamado pelos
brasileiros, o povo da terra que escolheu, os sitiantes vizinhos,
antes de morrer, quando o senhor tinha apenas 12 anos e teve então
que cuidar de mãe e irmão menor. Naquele natal, após enterrar sua
mãe italiana e colocar sobre o caixão dela os ossos do seu pai
catalão, o almoço foi uma coisa silenciosa, pesada e chuvosa, e eu
me lembro de ficar observando-o ali, cabeça da mesa, calado,
inescrutável como sempre fora, me perguntando: “O que está
passando pela cabeça desse homem, meu Deus?” Hoje, todo lido e
viajado, moleque metido a besta – como o senhor diria, eu poderia
vir com citações sublimes, dizer que por sua cabeça passava uma
lamentação identificável por qualquer homem e mulher e cabra
carcomidos pelo sal do Mediterrâneo, mas o que sabia eu naquele
tempo? E o que sei eu hoje?
Será
que o senhor algum dia leu um dos meus poemas? Não sei, João
Domeneck, e peço já perdão por não ser Drummond algum, é pouco
provável que eu um dia possa dedicar ao senhor e à sua mesa, que o
senhor sempre manteve cheia, abastada, com fartura de tudo (ainda que
não faltassem as admoestações a que não acabássemos com o
iogurte em um só dia, e que não se come só mistura), algum poema
como “A Mesa.” Com a filiação agora pela metade, resta essa
senhora cansada, trabalhadora,
com os cabelos que já nem mais perde tempo em tingir, e essa minha
vontade de poder fazer como Drummond, apenas “pedir à mãe que
cosa, / mais do que nossa camisa, / nossa alma frouxa, rasgada.”
Não
era sempre fácil, pai, e note que só agora, neste parágrafo,
dirijo-me ao senhor assim, João Domeneck. Como se aprende a ser o
filho obediente e honrar pai e mãe quando se discorda de tanta coisa
no campo político, religioso, e nessa mistura louca dos dois em
nossa República? Como se aprende a ser o filho que nem sequer pior
que a encomenda saiu, mas cresceu com aquela sensação de ter sido
entregue com defeito de fábrica? E nós nunca tivemos essa conversa,
João Domeneck, nunca falamos abertamente disso,
pai. Não pude jamais contar ao senhor quem eu realmente era, a quem
amava, e quando as dores dos pés na bunda vieram, nunca chorei no
seu ombro. Havia um acordo tácito, um pacto de silêncio, mas
nutrido por aquela certeza, agora eu sei, agora, neste susto grande,
de que o amor fala muito alto, o amor tem garganta de ouro
(piscadela, aqui, a meus irmãos, que entenderão a citação), o
amor cala bispos e senadores, cala tudo o que não vem da terra, e o
que vem da terra é uma compreensão total entre tudo o que ama,
sofre e morre, mas sobretudo morre,
como diria aquele outro católico, Miguel de Unamuno, que o senhor
teria certamente aprovado, da mesma forma como se pôs sorridente
quando me flagrou lendo Santo Agostinho e suas Confissões.
Mas não disse nada.
Não,
aquela conversa não houve, e sabemos que a História tem uma
preferência obsessiva por tudo o que houve, e o que não houve é
relegado aos casos de memória curta das famílias. E isso nos serve
bem, pois éramos e somos gente pequena. E a gente pequena é aquela
dos segredos inconfessáveis, que vão sendo comunicados num estranho
tipo de morse, como um agitar de bandeiras ao alto e abaixo entre
dois barcos de papel numa poça d'água, evitando a língua, da mesma
forma como não se põe colher de boca no doce, para não azedar o
pudim. Lição que aprendi com o senhor, que no entanto até do leite
que coalhava sabia aproveitar para a fartura da mesa.
Não,
este não foi, é ou será ainda o texto que eu hei-de dedicar ao
senhor, João Domeneck. Mas tendo-o chamado de “elogio” no
título, cabe-me agora dizer ao senhor que busquei, sim, um elogio
nestes últimos dias, não o do gênero literário, mas como
compreendemos a palavra no interior, e posso dizer a todos, ao
aproximar-me do final deste texto, isto: que foi com o senhor e a
mãe, quando eu ainda era muito criança, que aprendi o que
significava a palavra “cafuné.” E não creio que se possa fazer
maior elogio a um pai e mãe.
Quanta
gente morreu este ano, das causas que têm sido as causas pelos
séculos dos séculos, velhice, doença e guerra, pai, muita guerra.
Não faz uma semana que descrevi este 2014 como um “ano de perdas
irreparáveis”
ao falar da morte de outro artista que respeitava, porque têm
morrido muitos, pai, da profissão desse filho – metido a besta –
do senhor. Só não esperava que o ano me faria pagar tão caro pelo
uso daquele adjetivo.
R.I.P.
João Domeneck Filho (1932 – 2014).
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