quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

SEIS CANÇÕES PARA A CONCHA

 1.

Deitamos em forma de concha
e as curvas de nossas colunas,
com essa minha pança ao meio,
soletram SOS a Deus e a drones.
Na pele não há qualquer corte
mas, como a alfaiate ou médico,
algo em nós implora por sutura.

2.

Não nos importa o tal Aristófanes,
suas lorotas num velho banquete.
Nós quase já somos aquela bolota
de quatro braços, quatro pernas,
como no leito do mar os polvos,
enfurnados aqui, em sua quitinete.

3.

Um pedaço de nós entra no outro, 
como o anzol na boca do peixe,
como a flecha na carne da onça.
Quisera fôssemos aptos à osmose.
Ainda lateja em nós o descorçôo 
de não amanhecermos siameses.

4.

Meu dedo se acopla ao côncavo 
do seu umbigo. É um molusco
que busca esconderijo num coco.
Fisgada que enrijece um músculo.
Satélites de satélites, em órbita 
de si, a rotação de nossas bundas.

5.

Inspeciono em seu braço direito,
qual cratera de meteoro na lua 
cheia, sua cicatriz de uma vacina.
É uma Lagoa Rodrigo de Freitas
cheia do seu suor e minha saliva.

6.

Como a Maomé veio a montanha,
até mim há-de vir o seu bíceps.
Minha testa, sobrancelhas e nariz 
celebram bodas, glória!, aleluia!, 
com sua cerviz, cangote e nuca.

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segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

AS TABUADAS E OS COLETIVOS



Na escola o que eu mais detestava
era a repetição diária das tabuadas.
Ali começava a confeccionar 
meu próprio espelho,
a dizer: este sou eu, o das palavras, 
não o dos números.

Rejeitava aquela reiteração 
das certezas pétreas, rígidas 
como a gravidade,
a mais detestada de todas as leis
por qualquer criança.

Nos sonhos raros 
em que podíamos voar
quebrávamos também essa lei,
pequenos mutantes caboclos,
mulas aladas sem cabeça.
Pégaso-Pangaré.

Hoje o coração está repleto
de adições e subtrações, 
multiplicações e divisões.

Está bem. 
1 + 1 são 2
e 1 x 1 é 1.
As compras, as dívidas, as eleições 
provaram seus números e porcentagens 
de forma bastante empírica.

Mas a idade 
também demonstrou outras coisas:
que UM mais UM são 
tantas vezes só isso:
esse ao lado deste, inconciliáveis.
Tão adicionáveis quanto admissíveis,
sem a metamorfose de cada UM
num único pato na lagoa.

E dois patos na lagoa são já um bando?
À matemática, língua certeira,
preferia as ambiguidades da língua incerta,
topônimos como Bonito e Gostoso.
Seria Bonito realmente bonito?
E Gostoso, deveras gostoso?

Os coletivos eram um prazer estranho,
repetia-os e não atentava 
às advertências da professora
contra meus pleonasmos,
afinal a alcateia só podia ser de lobos,
o arquipélago só podia ser de ilhas
e o cardume, só de peixes.

Mas havia o prazer da confusão
e um porco em sua vara
tanto podia ser 
um ser roliço e feliz entre os seus
quanto um cadáver assando no fogo.
Os porcos nas varas!

Havia essa liberdade da palavra
contra os números
e repetia só para mim mesmo,
não como quem comete uma gafe
mas como quem sussurra um feitiço:

matilha de meninos,
arquipélago de namorados,
cardume de amigos,

e éramos então por um segundo
corpos esfomeados 
mas livres no mato (lobos),
separados e cercados
mas pertencentes (ilhas),
submersos mas vivos
pontos móveis de prata (peixes).

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segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

No centenário de João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector

Estou trabalhando em algo para a Deutsche Welle com o centenário de Clarice Lispector em mente, e conversei durante o fim de semana com o escritor e tradutor alemão Oliver Precht, que além de ter vertido trabalhos de Oswald de Andrade e Eduardo Viveiros de Castro para o alemão, tem também trabalhado muito com textos de Clarice Lispector, em especial "O ovo e a galinha" e "Mineirinho", sobre os quais escreveu um texto muito interessante que pode ser lido na edição de dezembro da prestigiosa revista de arte alemã Texte zur Kunst.

Quando estou escrevendo sobre algo, minha cabeça viaja associativamente para vários ângulos da questão. Esta manhã estava a pensar sobre os paralelos interessantes entre dois centenários ilustres neste Ano de Nossa Senhora da Virulência 2020: o de João Cabral de Melo Neto e o de Clarice Lispector. São dois dos maiores escritores nossos do pós-guerra, talvez os mais influentes. São escritores da mesma geração, por vezes agrupados com João Guimarães Rosa na chamada Terceira Geração Modernista (que difere e coexistiu com o Grupo de 45, seu antípoda). 

João Cabral de Melo Neto estreou em 1942, com Pedra do Sono. Clarice Lispector estreou em 1943, com Perto do Coração Selvagem. João Guimarães Rosa, em 1946, com Sagarana. Se pensarmos antoniocandidamente, considerando a estreia de um autor e portanto sua inserção no diálogo republicano como determinantes geracionais e históricas, teríamos que pensar ainda em José Paulo Paes, que estreia em 1947 com O aluno, e decidir o que fazer com Dante Milano e Joaquim Cardozo, autores mais velhos que têm publicações pela primeira vez também em 1947. Perdoem-me, alguns já sabem que tenho dessas obsessões historiográficas. As histórias que nos contamos muitas vezes nos determinam.

Mas retornemos aos centenariantes: Cabral e Clarice. Como é raro pensarmos nos dois juntos! Mas há vários paralelos com diferenças determinantes. Ora, não terão se cruzado na Recife de sua infância? Talvez sim, talvez não. Afinal, um deles era um menino da elite econômica de Pernambuco e neto de senhores de engenho; a outra era uma menina imigrante pobre. Os dois fariam do Rio de Janeiro sua casa, e ali morreriam. Os dois passariam longos anos fora do Brasil, envolvidos com a diplomacia brasileira, Cabral como diplomata ele mesmo, Clarice casada com o diplomata Maury Gurgel Valente.

Na obra de Cabral, Clarice comparece em um poema conhecido:

CONTAM DE CLARICE LISPECTOR
João Cabral de Melo Neto 

Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.

Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.

Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?

[extraído do livro Agrestes (1981/1985)]

Sabemos que Cabral apreciava muito o trabalho de Clarice, e tentou convencê-la a permitir que ele estreasse sua tipografia d'O Livro Inconsútil em Barcelona com um trabalho dela, à época uma peça intitulada 'O coro dos anjos', mas que só seria publicada no livro A legião estrangeira em 1964 com o novo título “A pecadora queimada e os anjos harmoniosos”. Clarice recusou o convite.

Cabral entraria para nossa história como o poeta objetivo, seco, antilírico e anti-psicologizante. O menino rico também se tornaria o exemplo do autor engajado nas questões socioeconômicas do seu tempo. Clarice, por sua vez, seria lida como a autora das profundidades psicológicas (eu mesmo já cheguei a dizer que foi ela, com Machado de Assis e Nelson Rodrigues, que inventou nossa 'alma', não nos vendo como meros joguetes justamente daquelas forças socioeconômicas), a escritora de potência mística. 

Em seu texto para a revista Texte zur Kunst, Oliver Precht questiona justamente essa visão de Clarice Lispector como autora 'apolítica', a partir especialmente de um texto como "Mineirinho". E, ora, João Cabral de Melo Neto não é o autor daquela gigantesca pérola de profundidade psicológica e mesmo potência mística que é o poema “Uma faca só lâmina"?

Nos nossos dias de horríveis balas perdidas, não sei o quanto nos ajuda, salva ou exorta, pensar nas balas que comparecem em trabalhos de João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector. Mas elas estão lá.

*

"Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;

assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;

qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativo

igual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,

relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;

assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.

– João Cabral de Melo Neto, Uma faca só lâmina, excerto.

*

"Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.

Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos."

– Clarice Lispector, "Mineirinho", excerto.


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quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

PEQUENO EXERCÍCIO DE ORNITOLOGIA HAGIOGRÁFICA



de santos e sábios
os céus
têm os seus sabiás
e assuns.

só as aves sãs
são os anjos
que nos cabem,
nos sabem.

na igreja homens
egressos do barro
de novo são barro
cozido e pintado.

mas de Pedro 
vejo o velho 
vivo de cabeça
para baixo,

de Sebastião
vejo o jovem 
que era são 
antes das setas

e Francisco todo,
são e sanado,
canta ao lobo 
-guará e suindara.

São Barro,
rogai por nós,
somos só 
roupa e borra.

o que difere
seu João 
de 
São João?

o que difere
‘ave, Maria’ 
de 
‘vai, Maria’?

o cardeal 
a quem peço 
a bença 
é o pássaro,

o sol no mar
é meu Lázaro
e é você o sal 
da minha terra.

seja sã, Maria,
seja são, João,
nessa febre 
terçã do chão 

enquanto 
no céu, suave 
e só,
vai a ave.

*

Imagem: quatro trabalhos do holandês Albert Eckhout (1610–1665) para a ornitologia brasileira.

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domingo, 29 de novembro de 2020

Quatro poemas novos para o livro 'Odes a Maximin' (2018)


Meu livro 'Odes a Maximin' foi lançado pela Garupa Edições em 2018, com desenhos do artista alemão David Schiesser. Nos últimos 2 anos, acabei por escrever quatro outros poemas que numa futura edição passarão a fazer parte do livro. Eles seguem abaixo.


A CADEIA ALIMENTAR DE MAXIMIN

Pena, rapaz, é não pertencermos
à tradição semítica para que louve
tuas pernas como as da gazela.
Se não há tais bichos no território,
não é rijo o cervo-do-pantanal?
Cairá mal comparar esse teu torso
maciço à musculatura das antas?
Se não como leão, pois qual onça
rondas meu habitat. Eu, capivara
a latir de amor seu destino de presa
nas águas onde, sardento, pairas.

*

MAXIMIN ENTRE OS MINOANOS

Nu, deitado nessa cama com lençol claro,
não sei, Maximin, se és o touro alvo
de Possêidon para Minos, ou o Minotauro.
Eu me mantenho jocastamente coesa:
sou o útero que pariu tua cabeça bovídea
e a que usufruiu o sêmen quadrúpede,
graças a Dédalo arriada numa vaca lígnea.
Zoofílica saciei em coito esse deleite.
Mas uma novidade sei trazermos ao mito:
és livre. Sou eu a detenta do labirinto.

*

CARTA A MAXIMIN ESCRITA NA CAMA COMO SE ESTA FOSSE UM MONASTÉRIO 

Qual monge budista
com as mangas úmidas 
do samue no templo 
choraria por seu chigo

Maximin, eu te digo:

nessa tua longa ausência,
muitas vezes a raposa
já cruzou sozinha 
a lua no asfalto chuvoso.

*

MAXIMIN, ÚNICO

Com frequência,
habitantes minúsculos
do nosso planeta,
vírus e bactérias,
põem de joelhos
a nossa civilização.

Em meio ao pânico 
e ao isolamento
das mil pandemias,
Maximin, ajoelho-me
eu mesmo, e adoro
tua multicelularidade.

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quarta-feira, 25 de novembro de 2020

ESPADACHINS


ESPADACHINS

                    a William Zeytounlian

Nada se reordenou no mundo
esta manhã em que eu descubro,
nesse desembainhar palavras de coisas,
que sempre chamei de peixe-espada 
o que outros chamam de espadarte.

Eles seguem inscientes do anzol,
essa outra arma nossa,
um deles assemelhando a espada 
com o corpo todo, o outro 
com o que lembra uma espada sobre a boca.

Contra dicionários e nossa indústria bélica
seguem por água doce e água salgada
o peixe-espada e o espadarte,
indiferentes ao que não seja tesão ou fome.

E na minha tesão e minha fome
vou também sendo catalogado no mundo,
em verossimilhanças e incongruências,
com a língua que também se usa
como anzol e como espada.

E se repito agora seus nomes
como quem decora as partes do corpo, 
é só para ordenar um pouco meu caos,
sem espada na boca além da língua,
como se assim os protegesse,
qual pudesse doar-lhes uma bainha:

este é o peixe-espada,
aquele é o espadarte,
e aqui está minha língua.
Nossa bainha é o mundo. 

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quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Desanuviai-vos

 Gostaria de pedir a vocês alguns minutos para que se detenham e admirem a beleza do verbo DESANUVIAR.

de.sa.nu.vi.ar

(des- + anuviar)

verbo transitivo e pronominal

1. Limpar(-se) de nuvens.

2. [Figurado]  Libertar do que causa sensação ou sentimento negativo ou opressor; fazer perder ou perder o sentimento de preocupação; tranquilizar(-se); serenar(-se). = DESASSOMBRAR

3. Desenrugar o cenho.

Tanto que alguém pode chamar esta manhã de “manhã desanuviada”, essa característica tão bonita das manhãs, seu caráter desanuviador. Alguém talvez diga nesse exato instante, por exemplo, "Maria, precisamos desanuviar um pouco", ou "Dei uma desanuviada", ou “finalmente DESANUVIEI.”

Despejar-se de nuvens, o céu antes pejado, e, ora, meu caríssimo Fernando Pessoa, se teu "coração é um balde despejado", posso entender hoje, talvez, que você tenha então se desanuviado? É da natureza intrínseca do balde pejar-se e despejar-se. Para isso foi criado, e se despejou-se, cumpriu sua missão. Triste é só despejar o balde no destino errado de seus conteúdos. A isso chamamos: desperdício. “O leite derramado” X “O meu cálice transborda”.

Despejar não é despojar.

Pois despejamos as coisas porque elas se pejam e pesam, nós mesmos nos pejamos, e eu quero desanuviar. Despejar-me. Baldar os pejamentos. Tirar as rugas (voluntárias) do cenho, da testa, dos cantos da boca. 

Só espantam os maus espíritos as carrancas de madeira nos barcos de madeira, não a sua carranca de carne na sua carne de borco. Desenrugar a senha da alegria, até a difícil. Fazer a prova dos nove e dos novelos. Olhar as manhãs dos nossos setembros mas também as dos nossos marços com suas águas. As águas despejadas a balde das nuvens que se despojam para que o céu finalmente venha a desanuviar-se.

Que eu então despeje o coração. Como um balde ou como o céu, mas desanuvie.

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sexta-feira, 30 de outubro de 2020

CERTIDÃO DE OBSOLESCIMENTO

Você
merece um hino 
em sumério 
transcrito cuneiforme 
em argila.
Cartas com hieróglifos,
telefonemas em morse.
Que nossas conversas
sejam gravadas em cassetes
e nossas fotos
armazenadas em máquinas
antiquíssimas, disquetes
onde caberia uma só
de cada vez.
Nosso destino
é a obsolescência.
Primeiro, das tecnologias,
mais tarde até das palavras
que vão sendo esquecidas
ou como nós
sofrem a gastura do sentido.
Nascidos
neste século talvez
já busquem o dicionário
para entender mesmo
algumas dessas aqui usadas.
Com urucum ou outra tinta
qualquer quisera
deixar minha mão espalmada
impressa
na parede da sua cozinha.
Mas desmoronará o edifício.
Rapaz, abra a janela. Alto
como você é, estique ainda
mais o pescoço, aguce os olhos.
A fumaça que você vê no horizonte
talvez sejam meus sinais,
talvez sejam só os fogos
entre a Austrália e a Amazônia.

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segunda-feira, 28 de setembro de 2020

MICROANTOLOGIA PENELOPEANA DE POESIA LUSÓFONA


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UMA PEQUENA ALDEIA
Cecília Meireles (Brasil, 1901-1964)

No canto do galo há uma pequena aldeia
de mulheres risonhas e pobres
que trabalham em casa de pedra
com belos braços brancos
e olhos cor de lágrima.
São umas corajosas mulheres
que tecem em teares antigos,
são umas Penélopes obscuras
em suas casas de pedra
com fogões de pedra
nestes tempos de pedra.
Elas, porém, cantam com frescura,
a leveza, a graça, a alegria generosa
da água das cascatas,
que corre de dentro do mundo
pelo mundo
para fora do mundo.
No canto do galo há, de repente,
essa pequena aldeia,
com essas belas mulheres,
essas boas deusas escondidas,
essas criaturas lendárias
que trabalham e cantam
e morrem.
O amor é uma roseira à sua porta,
o sonho é um barco no mar,
a vida é uma brasa na lareira,
um pano que nasce, fio a fio.
A morte é um dia santo
para sempre no céu.
*
O TEMPO E A FÁBULA
Henriqueta Lisboa (Brasil, 1901-1985)
De que miraculoso arco-íris
os dedos ágeis de Penélope
teriam recolhido o zéfiro?
Porém o zéfiro que esgarça
a flor de espuma nos recifes
carrega o pólen de outra flor.
Perde-se em mares sem memória
todo o velame ao vendaval.
Mas salva-se o ânimo do nauta.
Cavalos árdegos dos montes,
ontem dormidos nas planícies,
rompem as rédeas à miragem.
E no evolver de novos signos,
com as orvalhadas já destelam
brandos casulos de ouro e azul.
Destece, ó noite, por que o dia
teça com virginais matizes
a fábula da mesma fábula.
*
PENÉLOPE
Sophia de Mello Breyner Andresen (Portugal, 1919-2004)
Desfaço durante a noite o meu caminho.
Tudo quanto teci não é verdade,
Mas tempo, para ocupar o tempo morto,
E cada dia me afasto e cada noite me aproximo.
*

PENÉLOPE
Lara de Lemos (Brasil, 1925–2010)

No tear pequeno
teço os fios
da minha vida
teço o tédio.

No tear do tempo
teço teia in-
consistente
teço o verso.

No tear do Universo
teço o verbo
solitário
teço o poema.

No tear do medo
teço o pano
derradeiro
teço o sudário

*

A NÉO-PENÉLOPE
Ana Hatherly (Portugal, 1929-2015)
Não tece a tela
Não fia o fio
Não espera
Por nenhum Ulisses
Às portas do sangue
O herói adormecido
Agora está deitado
Ao Polifemo abraçado
Seu próprio satélite forçado
Há um intervalo nímio
Nas coisas
Que entre si independem
*
PENÉLOPE
Maria Lúcia Alvim (Brasil, 1932)
Tudo que vi
àquele bordado
prendi
Tudo que sei
ficou de lado
passei
Tudo que sinto
é simulado
minto
Tudo que penso
é mastigado
infenso
Tudo que sonho
é emaranhado
bisonho
Tudo que amei
foi adiado
cansei
Tudo que fiz
desfiz por querer
*
SOU AMAZONA E PENÉLOPE
Maria Teresa Horta (Portugal, 1937)
Sou Amazona e Penélope
desfazendo nó e laço
a desmanchar, a tecer
a destecer o que faço.
*
PENÉLOPE
Myriam Fraga (Brasil, 1937)
Hoje desfiz o último ponto,
A trama do bordado.
No palácio deserto ladra
O cão.
Um sibilo de flechas
Devolve-me o passado.
Com os olhos da memória
Vejo o arco
Que se encurva,
A força que o distende.
Reconheço no silêncio
A paz que me faltava,
(No mármore da entrada
Agonizam os pretendentes).
O ciclo está completo
A espera acabada.
Quando Ulisses chegar
A sopa estará fria.
*

TALVEZ PENÉLOPE
Lélia Coelho Frota (Brasil, 1938-2010)
Ah o amor da Grécia o branco
imaculado amor das ilhas
que pervagam no mar violeta
a desfazer-se a refazer-se –
espumas,
peixes, sargaços, conchas, abismos,
Ulisses!
Onde viajas, encantado, retido,
ó esperado desaparecido?
Ó nunca visto, ó viajante rijo,
do mar guerreiro, de ondas em riste, onde
teu rosto ignorado persiste?
Na nostálgica superfície
ecoa um nome e o edifício
das águas reboa, desaba
pelas angras do esquecimento.
Que sereia te seduziu
para assim me deixares, só,
na mesa vazia, na ceia
às escuras, entre conchas
murmurejantes?
Ou serei eu a sereia
que se põe entre nós, de permeio
e desfaço tua chegada
quando de longe, na amurada,
vês o meu vestido vermelho
que a brancura da praia incendeia?
Serei eu quem de ti me afasta
e que a trama das ondas desata
quando a meus pés resvala, súplice,
a marola da tua fragata?

*

PENÉLOPE
Orides Fontela (Brasil, 1940-1998)
O que faço des
faço
o que vivo des
vivo
o que amo des
amo
(meu “sim” traz o “não”
no seio).
*
LINHA AZUL
Yêda Schmaltz (Brasil, 1941-2003)
De joelhos
eu bordava
a barra da noite
com o meu branco
alinhavo.
O teu olho
se debruçava
para a manhã
que eu, sem saber,
costurava.
E as nossas mãos
buscavam, sem sentir,
o nó que a linha
branca tramava.
Então,
pelo enredo da trama,
eu costurei
a minha boca
na tua boca
- um poeta me ama –
e a linha ficou azul,
cor de maçã.
*
LONJURA
Vera Duarte (Cabo Verde, 1952)
O amor morreu com Julieta
e Romeu nunca existiu
No prosaico quotidiano
teimosamente aguardo
contudo
em meu banco junto ao cais
qual Penélope desenganada
a chegada do amor
num Ulisses navegador
ou Passo-amor reinventado.
*
NAVEGA-ME A ALMA UMA ILHA
Ana Mafalda Leite (Moçambique, 1956)
navega-me a alma uma ilha
o espírito antigo de um barco em viagem
penélope de m’siro enfeitada
olha o minarete mais alto
do horizonte
e medita sobre as ruínas do cais
o porto ancorado do sonho
por entre os seus dedos deslizam
fios de missanga
fios de prata
fios de ouro
ourivesaria atenta do silêncio
seu rosto voltado a oriente
o linho enrolado no corpo
navega-Ihe pelos dedos
a demorada monção
o súbito vento
*

FIA ESTA CANTIGA
Jussara Salazar (Brasil, 1959)

FIA ESTA CANTIGA desfia depois
tecer e trançar
fia esta cantiga
no tear. Em silêncio como tuas tias
que teu pai foi pra roça vestido de noivo
e nunca voltou
Fia esta cantiga
como tua mãe um dia sem alarde desatou
e teceu
um coração escarlate no peito de jesus
Fia esta cantiga
e se vires a vida
fia bem depressa fia
Fia
esta cantiga pra passar
*

PENÉLOPE
Adília Lopes (Portugal, 1960)

1
Penélope
é uma aranha
que faz
uma teia
a teia é a Odisseia
de Penélope
2
Penélope está
sempre
sentada
3
Ulisses é abstracto
Penélope é concreta
a teia é abstracta
e concreta
4
Penélope casa-se
com Homero
Ulisses fica a ver
navios

*

PENÉLOPE (I)
Ana Martins Marques (Brasil, 1977)
O que o dia tece,
a noite esquece.
O que o dia traça,
a noite esgarça.
De dia, tramas,
de noite, traças.
De dia, sedas,
de noite, perdas.
De dia, malhas,
de noite, falhas.
*
ODISSEU NEGRO
Lívia Natália (Brasil, 1979)
Cessou o tempo das frutas maduras
e lagartas estranhas comem o verde das folhas.
Tudo é bruto e das pedras cresceram raízes temporãs.
Esta estação de cores devassadas,
esta terra lacrimosa,
esta noite sem perfume de brisa
perdurará, matando em nossos dentes,
o hálito doce que nos dizia da vida na boca?
Vejo seu barco macio na pele das ondas,
e meus dedos seguem tecendo o
caminho.
Resta, em seus braços que navegam o tempo,
força pra ferir as Águas e voltar,
demudado,
para este reino que te aguarda,
após a travessia?
Seu leme vem cavando o percurso nas Correntezas.
Sei que chegarás, porque está escrito na carne do sonho.
E eu permaneço insone
bordando,
nas horas do dia,
todo o seu manto.
*
PENÉLOPE MENTIROSA
Mônica de Aquino (Brasil, 1979)
De noite desfaz, obediente
a fera que a carne abriga
e regressa à partida: a espera indefinida.
De dia, é outro o desejo
tece a mortalha com o silêncio
de ter de casar-se outra vez
(presa entre duas promessas)
mas Penélope mente: o que quer é a solidão.
A fidelidade é um cão.
*
NEUROLÓGICA
Tatiana Pequeno (Brasil, 1979)
um soco depois do almoço
certeira em minha casa só
disse alguma coisa sobre os
cactos que quis deixar no cor
redor da sacra vizinhança e
um corpo de homem avançou
rápido na contramão da zona
morte aparente contradição é
um soco depois do almoço
vindo à esquerda da cabeça
não sangrou nada apenas caí
e levantei rápido com um lá
pis-lazúli apontado para o
coração do tolo a me dizer
cuidados sobre a maneira de
escrever ou dizer seu nome
queria comungar do seu ódio
rasgar teu peito e descosturar
a cerzidura da tua pele mas
não sou como tu homem e
meus ódios eu bordo em rou
pas que não visto e guardo
no fundo das terras ardidas
onde cuspo sobre teu nome
e todas as tuas futuras tristes
esposas filhas gerações.
*
OS CABELOS DE PENÉLOPE
Érica Zíngano (Brasil, 1980)
os cabelos de penélope
seus fios crescem
e seu marido nunca aparece
que tristeza penélope sozinha
cosendo
chorando e chorando
e costurando e descosturando
o tempo
penélope não perde a cabeça
mas penélope arranca os cabelos
seus próprios cabelos
como se fosse um gato
psicopompo
que solta seus próprios pelos
penélope faz uma linha nova
todo dia uma linha diferente
com um fio de cabelo
novinho em folha
no meio da linha
penélope diz que é magia
a eletricidade dos cabelos
de noite quando descostura
penélope junta os fios
à meada
e vai dormir cansada
*
ATRIBUTOS
Juliana Krapp (Brasil, 1980)
Gostaria de ser uma mulher
que soubesse identificar um brocado
uma cerzidura um carmesim um
adorno
em matelassê
No comércio
a palavra aviamentos me lembra
de que há todo um reino de malícias
que desconheço
- penso
não em ilhós
mas em aves aquáticas
artefatos explosivos
Gostaria
de poder dizer: vamos desenlaçar
o cordão do meu quimono vamos
providenciar castanhas doces
para o grande banquete
e nos deitar sob o dossel à espreita
das comissuras
que ardem na pele
Porém
eu estou atada
ao mundo da sonolência
e das cintilações breves
da louça quebradiça e da mixórdia
- ao lugar
das mulheres e bichos
que se espatifam n’água
*
PENÉLOPE
Ana Freitas Reis (Portugal, 1981)
"Um fio invisível e tónico
pacientemente cose a rede
da nossa milenar resistência"
[Conceição Evaristo]
Se a Terra erguesse versos
como pontos cardeais
ancorados a um coração
de raios abertos,
vozes com sede
rompendo a ternura
a seda do eros falante
ou o céu da vénus filarmónica,
talvez aí soubéssemos explicar
o mistério.
Se a canção do Bowie pudesse ser repetida
como a fome da visão de um melro
o limoeiro que escuta junto e sério
o teu corpo aos palmos
e o amor por inteiro, ao invés
de interrompido,
seria impossível, saberias.
Porque, tal como o passo
de samba melancólico,
o mistério milenar,
de onde ainda sopram notas púrpuras,
de onde ainda soa o assobio escuro,
de onde vem o vento contorcido,
move a fita de sangue
nos nossos cabelos.
E seria necessário que o vulto,
que me assombra,
explodisse
e teríamos de ter tentado
o caminho de novo, orientados
e perdidos um dentro do outro.
Os olhos rangeriam nas costas da beleza
a aurora bater-nos-ia no rosto
e a manhã, nossa inimiga,
desde um fevereiro descampado,
seria a queda do anjo.
A série fôlego que sangra
e bafeja espinhos
traz o mistério
esse, o primeiro sol
como uma metralhadora,
a bandeja erguida,
a carne frita em manteiga derretida
entre braços fracturados.
Se o gaguejo que ainda sai
semelhante a um trovão
sorvesse a tua solidão, lentamente,
ao alto levaria as cinzas
e substituiríamos a luz dourada,
a janela sem cortinas,
o cheiro a hortelã,
a flor amarela,
o óleo de girassol dito em inglês,
as estrofes longas como espasmos.
Hoje sei que o mistério
arde quando é soprado.

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sexta-feira, 25 de setembro de 2020

NANA, NENÊ

Nana, nenê. 

Tu estás no colo 
dessa Cuca que te gerou 
por nove meses. 

O teu papai, o Bicho Papão, 
está no trabalho 
de fazer roça do mundo. 

Não há monstro 
sob o berço, só há tu mesmo, 
monstruoso nele. 

As mães de outras espécies 
ninam seus filhotes 
te usando como assombração. 

O resto do planeta não dorme 
por medo de ti, 
e de papai, e de mamãe. 

Nana, nenê.

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domingo, 13 de setembro de 2020

[uÓdio] de Décio Pignatari

Esse texto de Décio Pignatari (1927-2014) foi primeiro exibido na exposição do poeta-artista na Galeria Milan, com curadoria de João Bandeira, e publicado pela Folha de S. Paulo. O poeta Eduardo Sterzi o divulgou nas redes sociais. É um daqueles grandes exemplos do Pignatari satírico e experimental, e um verdadeiro leão da intransigência.





letras de merda! cagas pra cima ( uÓdio ) onde outras toneladas-de
creto de concreto de bosta soltam o barro para baixo o bairro e se
alatrinam na justiça ( uÓdio ) ou bem cagas no campo e adubas o im
pulso de tôdas as raivas contra tôdas as covardias? o ódio ( uÓdio )
letrasdemerda ( uÓdio ) o ódio ( uÓdio ) não a paciência que se ca
rcome na subserviência e escancara as duas abas da bunda malemolen
te ao subôrno em forma de salário legal! os intestinos dêste povo
iletrado estão cheios de ar bombado à fôrça de êmbolos de açúcar e
o seu dedo lê tartamudo meia coluna de jornal em meia-hora ( uÓdio )
ao fim da qual êle decifra a sua escravidão! pois hão de preparar
lhe um texto que ( uÓdio ) ao decifrar-se ( uÓdio ) exploda ( uÓdi
o ) arrebente no outubro bastilhondo de um peido vulcânico e subte
rrâneo que vire pelo avêsso as tenras terras-carnes de brasilville
( uÓdio ) a vil ( uÓdio ) desde interlagos até à rue de la boétie e d
esde copacabana até à avenue montaigne! as letras & artes se trans
formaram na solitária punheta do mêdo. ninguém tem pulso para dize
r uma verdade fora da hierarquia ( uÓdio ) contra todos ( uÓdio )
de preferência contra os probos magistrados à daumier ( uÓdio ) qu
ando não fôsse só para ver até onde vão as suas lições de democrac
ia e as suas citações de voltaire. letrasdemerda ( uÓdio ) enquant
o os bons alunos preparam as suas teses acadêmicas para garantir u
m emprêgo de assistentes nas faculdades ( uÓdio ) enquanto as pédi
bundas filhas das puras eminências de alto nome vão galinhando até
que a morte as descabace ( uÓdio ) enquanto os poetas de pele bran
ca como barriga de sapo empoeirado compõem nas repartições - horas
vagas ( uÓdio ) vago chefe - poemas sensuais de imagens levantinas
e as suas bonitas espôsas os esperam em casa atrás da porta para e
strangulá-los com suas calcinhas de nylon ( uÓdio ) enquanto os ge
nerais sentem pruridos quinquenais de restaurar as pás sociais e o
país sem alegria cada vêz mais ( uÓdio ) puritano e bárbaro cada v
êz mais ( uÓdio ) enquanto os que podem fogem para citera e os que
não [f]podem planejam [f]poder ( uÓdio ) enquanto a burrice velhaca enra
ba a supersticiosa ignorância popular ( uÓdio ) enquanto isso ( uÓ
dio ) tu ( uÓdio ) letrasdemerda ( uÓdio ) o teu barulho não dá pa
ra encher nem um supositório que provoque um riso goyesco pela cul
atra! quanto mais uma revolução social ( uÓdio ) ou uma reforma cu
ltural ( uÓdio ) quanto mais! Mas por via das dúvidas ou por via an
al ( uÓdio ) considera que só o ódio ( uÓdio ) letrasdemerda ( uÓd
io ) o ódio e nada mais: encherá a barriga do pobre ( uÓdio ) aleg
remente.
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segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Alguns comentários sobre o vocabulário e as formas de 'Batendo pasto', livro de Maria Lúcia Alvim

 

O VOCABULÁRIO BATENDO PASTO

O novo livro de Maria Lúcia Alvim lança mão de um vocabulário mais preciso do que precioso. Escrito no interior do país, ele traz uma especificidade localista, contextual. Diz o que diz porque o diz onde o diz. Ao mesmo tempo, recorre a palavras da língua que parecem balançar-se entre a simplicidade da fala quotidiana e a exuberância das raridades antigas. Comum aqui, raro ali.

Decidi compartilhar algumas luso-pepitas [bem brasileiras] com vocês, vindas do livro. Esta aparece em um dos poemas publicados pelo Suplemento Pernambuco. Nos versos:

“Eu era assim na voz dos minuanos
E pela primavera, eu era assim”

Ao corrigir as provas e cotejar com o manuscrito, em vários momentos solto um “Ora, mas que diabo é _____?”. Nesse caso, um MINUANO. Minuano?

MINUANO mi·nu·a·no 
substantivo masculino

1. Denominação de uma das etnias autóctones do território brasileiro, povo indígena minuano.
2. Vento do sudoeste, seco e frigidíssimo, que se manifesta no Inverno, após as chuvas, no Sul do Brasil.

Aqui se percebe a maestria da simplicidade rica. A palavra “voz” no primeiro verso, por ser uma faculdade associada aos seres humanos, leva-nos a crer que Maria Lúcia Alvim está invocando o povo indígena. Mas se seguimos a rede de oposições que o poema tece, ao se referir à primavera no verso seguinte, o minuano se torna também o vento invernal. Sem qualquer pirotecnia, ela usa as duas acepções da palavra. 

Há outras coisas belas de mescla no poema, como a junção de uma linguagem de ciranda à forma do soneto, em que uma ao mesmo tempo apoia e desarma o outra. Leia o poema todo, depois siga para o Suplemento para ler os outros.


“Eu era assim no dia dos meus anos
E quando me casei, eu era assim
Eu era assim na roda dos enganos
E quando me apartei, eu era assim

Eu era assim caçula dos arcanos
E quando me sovei, eu era assim
Eu era assim na voz dos minuanos
E pela primavera, eu era assim

Enquanto fui viúva, eu era assim
Enquanto fui vadia, eu era assim
E pela cor furtiva, eu era assim

No amor que tu me deste, eu era assim
E trás da lua cheia, eu era assim
E quando fui caveira, eu era assim”

*

Para a quarta-capa de Batendo pasto, o novo livro de Maria Lúcia Alvim a sair em breve pela Relicário Edições, selecionamos um poema que não é só um dos meus favoritos no volume. Há nele um verso que tem me ajudado a respirar — “o capim é minha grande reserva interior” — e que poderia ser discutido para uma compreensão de toda a poética e ética que guiam o trabalho. 

Pois não me parece tratar-se apenas da tradição lírica ou quiçá neo-árcade de um louvor do rural, de um ‘carpe diem’ que chame a atenção de nossos sentidos gastos, baços, para a beleza-simplicidade das coisas. O momento fugidio, etc.

Talvez mais até do que a importância e a dignidade das vidas menores num mundo utilitarista, a poeta aponte para a imprescindibilidade mesma dessas coisas para seguirmos sendo, para nos mantermos vivos ante a hierarquização de tudo segundo sua rentabilidade. Como um gentil recado contra a nossa húbris de colosso pobre. É o que gosto de ler nesse verso.


Manhã sem rusga
pequeno depósito de agrura na poça
exorbitei de alegria
a abóbada celeste não dá vazão
silos de silêncio
ó ser astral
o capim é minha grande reserva interior
a esperança
desleixo
 

*

O poema mais longo do Batendo pasto [Belo Horizonte: Relicário Edições, no prelo], de Maria Lúcia Alvim, intitula-se "Litania da lua e do pavão", e é também um dos mais longos de sua obra, só encontrando paralelos no seu trabalho de caráter épico no Romanceiro de Dona Beja (1979). É, ao mesmo tempo, muito diferente daqueles poemas narrativos, e uma peça única em sua poesia, na qual a inteligência eminentemente associativa do poeta se mostra em seu funcionamento. Os primeiros versos leem:


Piedade lua 
De castidade

Luva de Ismália 
Chapéu de palha

Olho propina 
Escarlatina

Primopolia 
Do todavia

Tu mastodonte 
Anacreonte


Nesse texto a poeta permite o vagar associativo da mente por sons e sentidos, num poema que me lembra dois outros exemplos de inteligência associativa na poesia brasileira. Em primeiro lugar, o poema "Isso é aquilo", de Carlos Drummond de Andrade, também longo, no qual se lê na primeira seção:


O fácil o fóssil
o míssil o físsil
a arte o infarte
o ocre o canopo
a urna o farniente
a foice o fascículo
a lex o judex
o maiô o avô
a ave o mocotó
o só o sambaqui

O outro exemplo é aquela belezura magistral de poema que Tom Jobim engendrou em "Águas de março":


É pau, é pedra, 
é o fim do caminho.
É um resto de toco, 
é um pouco sozinho.
É um caco de vidro, 
é a vida, é o sol.
É a noite, é a morte, 
é um laço, é o anzol.
É peroba-do-campo, 
é o nó da madeira.
Caingá, candeia, 
é o matinta-pereira.


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