terça-feira, 30 de junho de 2009

Pina Bausch (1940 - 2009)

Em apenas uma semana, o mundo dos vivos ficou incrivelmente mais entediante.

Poesiefestival Berlin 2009

Esta semana, Berlim é o centro poético da Europa. O Poesiefestival Berlin começou no fim-de-semana, o maior do continente. Há vários poetas interessantes e maravilhosos na cidade. Festim. Entre aqueles sobre os quais já escrevi aqui ou na Modo de Usar & Co., estão na cidade a maravilhosa Rosmarie Waldrop e os poetas sonoros Jörg Piringer, Maja Ratkje e Eduard Escoffet.

Hoje à noite visito com meu querido amigo, o poeta catalão Eduard Escoffet, a exposição de poemas visuais de Joan Brossa no Instituto Cervantes.


(Joan Brossa)

Depois seguimos para o centro conhecido como Radial System para ver a apresentação de Jörg Piringer.


(Jörg Piringer - "Broe Sael")

Terminamos a noite com nossa querida Nora Gomringer na leitura de seu pai, o concretíssimo Eugen Gomringer. A leitura de Gomringer será feita durante uma discussão sobre a atualidade do soneto. O que traz à memória certo debate.

Rosmarie Waldrop lê no sábado:

§

Eu inferira das imagens que o mundo era real e portanto pausara, pois quem sabe o que há de acontecer se falarmos a verdade enquanto subimos as escadas. De fato, eu tinha medo de seguir a imagem até onde ela se espraia na realidade, nela esticada como uma régua. Eu pensei que morreria se meu nome não me tocasse, ou apenas com sua extremidade, deixando o interior aberto a tantos sensores como chuva casual despencando das nuvens. Você riu e contou a todos que eu confundira a Torre de Babel com Noé em sua Embriaguez.
(Tradução de Ricardo Domeneck)

§

I had inferred from pictures that the world was real and therefore paused, for who knows what will happen if we talk truth while climbing the stairs. In fact, I was afraid of following the picture to where it reached out into reality, laid against it like a ruler. I thought I would die if my name didn’t touch me, or only with its very end, leaving the inside open to so many feelers like chance rain pouring down from the clouds. You laughed and told everyone that I had mistaken the Tower of Babel for Noah in his Drunkenness.

(from The Reproduction of Profiles, 1987)

§

Na mesma noite, há a apresentação de Saul Williams e também de Edwin Torres.


(Saul Williams, "Coded language")

Li no festival em 2007 e 2008. Este ano discoteco na festa de encerramento. Discotecar para poetas e leitores de poesia... well well... espero que estes saibam dançar.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Antologias, excertos e outros pedaços

Quando editada de forma inteligente, uma antologia pode ser um ato crítico dos mais estimulantes. Em geral, minha atitude, quando se trata da antologia de um único poeta, é a mesma que tenho com um Best Of de certas bandas: funciona se estivermos interessados em poemas específicos, assim como para nos familiarizarmos com o trabalho de um poeta, coletivo, banda ou grupo. Mas nada supera o prazer de ler livros individuais dos poetas que amamos ou escutar os álbuns específicos dos coletivos e bandas favoritas.

Certos poemas e canções funcionam e fisgam em praticamente qualquer contexto. Tenho uma relação específica com vários, mesmo quando primeiro descobertos soltos em seleções, como "Janela do caos", de Murilo Mendes, ou uma canção como "Happiness is a warm gun", dos Beatles. Mas é outro prazer chegar a "Janela do Caos" ao fim de Poesia Liberdade (1947), assim como o Álbum Branco (1968) é uma experiência única. Mesmo os livros que parecem apenas a reunião de poemas esparsos têm um apelo de conjunto, como Mundo Enigma (1942), um livro pouco citado quando se fala de Murilo Mendes, mas que é dos meus favoritos. Jack Spicer chamava poemas individuais de "one night stands", passando a escrever sempre em série.

Quando se trata de um poeta nacional, é remediável. Encontra-se com facilidade o livro em que há um poema descoberto em antologia. Mas, no caso de poetas estrangeiros, a situação é mais difícil. Raramente se traduz e publica um livro específico e individual de um poeta estrangeiro no Brasil. É mais "comercializável" apresentar uma seleção, um "apanhado geral" que nos apresenta ao poeta. É uma pena que raramente passe disso. Acho que perdemos muito.

Houve livros de poetas estrangeiros que tiveram sobre mim um grande impacto. Um exemplo que me vem à mente foi a leitura que fiz, aos 20 anos, do idolatrado salva salve L´allegria, de Giuseppe Ungaretti. Se houvesse lido apenas alguns daqueles poemas em meio a outros poemas esparsos do italiano, creio que o impacto teria sido bem menor. Para ficar entre italianos, foi muito bom descobrir os poemas de Eugenio Montale na antologia que Geraldo Holanda Cavalcanti preparou e traduziu, mas poucas vezes aprendi tanto sobre poesia em um único livro como aprendi lendo Ossi di seppia, o livro todo de estréia de Montale.

Tenho lido esta semana, em tradução para o alemão, dois livros independentes de poetas que, creio, são inéditos no Brasil: o estupendo Herr Cogito (Senhor Cogito), de Zbigniew Herbert (Polônia, 1924 - 1998), e o lindo lindo Monovassiá, de Yannis Ritsos (Grécia, 1909 - 1990). Não sei de traduções de Ritsos no Brasil. Herbert foi traduzido por Aleksandar Jovanovic. Há um poema maravilhoso de Herbert, por exemplo, em Céu Vazio: 63 poetas eslavos (São Paulo: Hucitec, 1996), intitulado "Relato de uma cidade sitiada". É impossível ler aquele poema e não querer ler tudo o que Zbigniew Herbert escreveu.


§

Parto amanhã de manhã para Heidelberg, onde participo de um festival. Apresento-me como DJ na sexta à noite, e faço uma de minhas leituras/performances vídeo-textuais no sábado. Na mesma noite, lê o jovem poeta e romancista americano Travis Jeppesen e eu mostro, a pedido do curador, uma seleção de vídeos de outros jovens artistas visuais, como Niklas Goldbach e Nils Linscheidt, assim como dos veteranos Bruce LaBruce e do coletivo Die Tödliche Doris.


(Die Tödliche Doris, "Chöre & Soli")

A noite é encerrada com uma performance de Ariel Pink. Estou entusiasmado para conhecê-lo pessoalmente, gosto muito do trabalho do rapaz.


(Ariel Pink, "Are you going to look after my boys?")

§

É sempre ótimo abrir a caixa do correio e encontrar poemas. Recebi hoje poemas-cartoons recentes de Zuca Sardan e o novo livro de Carlos Augusto Lima, o bonito e esperto Manual de acrobacias n. 1 (Florianópolis: Editora da Casa, 2009).

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Discurso Alegórico versus Figuras Metonímicas ou "As portas entreabertas de Sokurov"


Assisti este fim-de-semana ao último filme de Aleksandar Sokurov, intitulado Alexandra (2007). O filme tem como espinha-dorsal o rosto e performance da soprano e atriz russa Galina Vishnevskaya, a quem não conhecia antes do filme, e que passa a habitar minha sala imaginária e obsessiva de mulheres perturbadoras, onde vai fazer companhia à outra russa, Margarita Terekhova (a mãe e esposa d´O Espelho, de Tarkóvski).

Há algo intrigante em certos filmes de Sokurov, que gostaria de endereçar, se possível, neste texto. Não me refiro aos mais alegóricos, como os inacreditáveis Arca Russa (2002) ou mesmo a trilogia de retratos de ditadores, Hitler em Moloch (1999), Lênin em Taurus (2000) e Hirohito em O sol (2004).

Refiro-me aos filmes mais delicados e estritamente "realistas" (uso a palavra com toda a parcimônia do mundo), como Mãe e filho (1996) ou Pai e filho (2003), assim como este último, Alexandra.



O que me fascina em um filme como Alexandra é como Sokurov parece capaz de criar histórias com tamanha carga "metafísica" (uso também esta palavra com parcimônia), em narrativas que parecem seguir tão estritamente uma cartilha realista.

Comparados a filmes como estes de Sokurov, as alegorias de Tsai Ming-liang, como em Adeus, Dragon Inn (2003) ou em qualquer filme de Béla Tarr, se me afiguram esquemáticas, simplistas, reciclagens tardias de um modernismo à la Waste Land, por mais sedutores que sejam em seu perfeccionismo técnico. Não tenho estômago para os filmes de Béla Tarr, ainda que tenha imensa admiração por Tsai Ming-liang, que conseguiu, em filmes como Vive l'Amour (1994) ou Que horas são lá? (2001), algo desta criação de figuras metonímicas que argumento ver em Sokurov, em vez do discurso alegórico de Béla Tarr ou de filmes do próprio Ming-liang, como O rio (1997) ou O buraco (1998). Ao contrário das alegorias previsíveis de Tarr, Ming-liang é um diretor inteligentíssimo e impecável.

Como Sokurov chega a isso? Há as questões técnicas, é claro. Desde Tarkóvski, houve poucos diretores que usam a luz de maneira tão eficiente, quase fazendo dela uma das personagens dos filmes. Há, ainda, seu impecável manuseio do ritmo das cenas, como se houvesse um leve retardamento entre fotograma e som, como se milésimos-de-segundo nos fossem roubados a cada quadro. A passagem do tempo, em Sokurov, assim como em Tarkóvski, não é apenas tema. É forma e função, é tema e estrutura. São diretores que fazem o que dizem. Os longos planos não são apenas estilo, eles representam e implicam, buscam destacar nosso próprio alheamento para com a passagem do tempo. Como os grandes artistas de qualquer tempo, Sokurov está menos interessado nas idéias dos humanos do que nas relações entre estes ou a que são levados por suas idéias.

Em tempos de frivolidade, a seriedade do espírito de um artista como Aleksandar Sokurov comanda um tipo de respeito ao qual estamos cada vez menos acostumados. Hoje, na Europa Ocidental, há poucos diretores capazes deste tipo de figurativismo metonímico do russo, atingindo, por sinédoques delicadas, a transcendência que muitos ainda buscam alcançar com pesadas metáforas. Talvez possamos incluir à lista o francês Bruno Dumont ou os irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne. Há ainda um outro russo capaz de tal delicadeza perturbadora: Andrei Zvyagintsev. Já escrevi aqui sobre seu filme Izgnanie.

Quem, entre os americanos ou entre brasileiros?

§

Como poeta, vejo inúmeras implicações nos trabalhos de gente como Sokurov e Dumont. Assim como tenho pouco estômago para as alegorias tardo-modernistas-do-modernismo-fique-claro-à-la-Waste-Land de Béla Tarr, ou Tsai Ming-liang em certos filmes, creio que ainda há poetas interessados nesta visão da modernidade, daqueles que não parecem se ajustar ao seu tempo, com olhos constantemente voltados para uma fictícia Idade de Ouro. Veja, por exemplo, um poema como "Finismundo: A Última Viagem", de Haroldo de Campos. Por mais belos e interessantes que sejam, tais rehashes wastelândicos demonstram tanto a incapacidade de endereçar os problemas de seus contemporâneos, como o desejo de retorno a uma ficção paradisíaca da qual, se lhes fosse concedido o desejo por algum gênio-de-lâmpada, retornariam como Lázaros desiludidos, informando que a devastação atingiu até a terra de seus sonhos. Vejam também, por exemplo, como alguns poetas buscam salvaguardar a relevância poética, em seus textos, a partir de uma espécie de elefantíase semântica e vegetação metafórica. Em minha opinião, é simplesmente ineficiente. Quando alguém deixa de falar nossa língua, gritar não nos traz mais próximos de sermos compreendidos. Também é ineficiente, eu creio, tanto na prosa como na poesia, um realismo que ainda parece localizar-se est-É-ticamente no século XIX. Machado de Assis já nos mostrou que toda realidade é narrada em primeira pessoa.

Filmes como Alexandra, de Sokurov, ou A Humanidade, de Dumont, mostram-me (é como escolho vê-los) artistas conscientes de uma condição humana que não aceita adjetivos com facilidade, a não ser o de condição crônica. As imagens de seus filmes não são metáforas. São, no máximo e no mínimo, sinédoques.

A alegoria e a metáfora, hoje em dia, quando preponderantes no trabalho artístico e poético, (a mim parece) criam narrativas de mão-única, impondo ao leitor ou expectador um discurso subreptício, camuflado, enquanto o autor esconde-se, protegido, vendendo lebre por lebre e gato por gato, numa teleologia que me parece desonesta apenas por não se aceitar como discurso construído, condicionado pela ideologia de seu demiurgo. Toda criatura é feita à imagem e semelhança de seu criador.

§

Aceitar (não resignar-se) nosso momento histórico não significa ser uma Poliana a brincar em campos de algodão-doce, nem contemplar o "deslizar de lancha entre camélias."

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Relatório de trabalhos da semana

§- publiquei esta semana, na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., minha tradução para dois poemas de David Bromige, poeta nascido na Inglaterra, considerado canadense, residente nos Estados Unidos até a sua morte, este mês, na Califórnia. No artigo que acompanha os dois poemas traduzidos, discuto minha idéia de tradução como transcontextualização, incluindo à noção de transcriação, de Haroldo de Campos, que descreve da melhor maneira o trabalho material com a forma, ainda os conceitos de função e contexto, criando a tríade forma/função/contexto ou, como prefiro chamá-la, material/função/contexto. Esta tríade guia o trabalho em meu próximo livro, intitulado Sons: Arranjo: Garganta, que está no prelo. "Forma" parece-me um conceito viciado demais para seguir colaborando com o debate. É controverso e irritante para alguns, mas estou apenas abordando minhas obsessões críticas por ângulos diversos. Vocês podem ignorar o artigo ou mesmo as minhas traduções, e ir direto ao que mais interessa: a poesia linda de David Bromige.

§- o poeta Ricardo Silveira (São Paulo, 1978) iniciou um projeto poético de oralização, em que passa a musicar textos de poetas brasileiros contemporâneos. Alguns autores com quem ele já trabalhou são Marcelo Montenegro, Fabrício Corsaletti, Marcelo Sahea, Bruna Beber e Fabiano Calixto. Ele divulga o projeto no Poesia Fadada. Esta semana, ele postou seu trabalho com um texto meu. Trata-se da segunda faixa do meu poema-em-série "Poema começando `Quando´", publicado no meu segundo livro, a cadela sem Logos (São Paulo: Cosac Naify, 2007). Imagino que a escolha tenha sido, em parte, sugerida a Silveira pela minha divisão do poema-em-série em "faixas", com duração, e não em partes. Meu livro a cadela sem Logos traz poemas em que, pela primeira vez, passo a trabalhar na fronteira entre a escrita e a oralidade. Naquele momento, ainda não produzia poesia sonora ou em vídeo, um desenvolvimento natural de minha est-É-tica de borrar de dicotomias entre corpo e mente, subjetividade e objetividade, escrita e oralidade. Um viver na fronteira. Fiquei feliz com o trabalho de Ricardo Silveira, que é, diga-se de passagem, um dos poetas mais inquietos da cidade de São Paulo, no que se refere à pesquisa de novos meios e suportes para o trabalho poético. Está entre os pesquisadores, como Ricardo Aleixo (Belo Horizonte), Marcelo Sahea (Porto Alegre), Márcio-André (Rio de Janeiro) ou Gláucia Machado (Maceió).

§- após ter poemas incluídos em algumas antologias aqui no continente europeu, em livros, revistas e catálogos, além da pequena edição especial numerada do When they spoke I / confused cortex / for context, lançada em Londres em 2006, a convite da Pablo Internacional Magazine, do mexicano Pablo León de la Barra, tudo indica que minha primeira publicação individual por estas bandas não será em alemão, mas em francês. Trabalhando neste momento em uma pequena seleção de meus textos para uma editora belga, que tem uma pequena coleção de poetas jovens em livros-de-bolso, chamada Booklegs, um trocadilho com a noção de bootlegs. A editora chama-se Maelström Éditions. Meus textos estão sendo traduzidos por Frédérique Longrée para, se tudo correr bem, lançarmos o livrinho (trilíngue: português, inglês, francês) este ano.

§

Reproduzo aqui o texto-em-série completo do "Poema começando `Quando´". As faixas foram publicadas (ao todo são 11) pela primeira vez na versão antiga de minha Hilda Magazine, em 2005 (visite AAQQUUII a nova versão da revista). Em livro, estão no meu a cadela sem Logos:

Poema começando “Quando”

Primeira faixa – 01:12

Quando o ponto
no círculo
abriu-o em linha.
Durante
as condições, o contexto.
Por você confundi os
sentidos para preservar
a canção.
Entre a faca na mesa e
a faca no chão, a
expectativa do peso, a
expectativa do corte,
esta última fundura
que resta:
o osso para a pele.
A subnutrição fará de nós
contemporâneos.
(Reconhecer, desejar, lembrar-se, etc)
Adoro epígrafes, não
vejo a hora
de escrever meu próprio
epitáfio. É um sinal
dos tempos, ele diz,
este gosto por epílogos
rápidos e determinados.
Vou vestir as roupas
da coleção
do inverno passado
e caminhar
pelas ruas crente
que a tradição ajuda-me
a respirar hoje. Mas
meus pulmões
são extemporâneos
apenas
na reação à pneumonia,
nunca antes, nem depois.
O epicentro dos
acontecimentos,
eis
o sonho dos séculos.
Estive com Cléo das
5 às 7.
------ estou procurando, estou procurando
a passagem
da contingência não-manifesta
à manifesta, forma
evidente do copo que
deixa a água menos
turva, honestidade
do continente
que sempre
mistura-se ao conteúdo,
circunda estas instâncias.


§


Segunda faixa – 00:37

Reconhecer a
construção pelo
espaço entre as
pedras
requer ser
ao mesmo tempo
pedreiro e arquiteto,
não engenheiro.
John Cage opera
o acaso
mas como o dia
há a escolha.
Há? Há.
O que não

são palavras
0/Km.
Por tanto:
o muro resiste
do lado de
dentro
da cidade sitiada
ou
o muro constringe
do lado de
fora
da cidade sitiada.
Tente manter-se puro,
meu caro senhor,
ausente e alheio
como os resistentes
do lado de fora,
e acorde
entre os colaboracionistas.
Mas todo muro é um tanto
confuso.


§


Terceira faixa – 00:48

Durma o espaço
de cinco músicas
e acorde para a água
na banheira mais fria,
assim resta o
quarto contíguo
que comunica
da macieira à laranja,
da mesa à madeira,
do urso
polar ao pêlo;
mas se
o calor não se
perde,
mas se a
carta escrita
ontem era válida
ontem e cruza
o oceano em uma
semana,
carregando meu nome
atual e a antepassada
da minha
intenção contemporânea,
a duração deste espaço
de tempo
é única,
o limite
do período das rugas
na mão
na água é curto,
mas o das rugas no rosto
é mais sombrio,
difuso.
Um pontua-se
pelo ressecamento,
o outro pela
dissolução.
Sucedem-se épocas.


§

Quarta faixa – 0:39

Quartos contíguos
podem acabar similares
pela justaposição dos móveis e
mesmo o caminhar em linha
reta, de um a outro.
Next to that,
to which there
is no Near.
A forma
mais rápida
de ligar A & B
é aboli-los, bani-los
como extremos
mas ele teme
a perda do controle
e associar-se
por acidente.
É ativa e passiva
a posição justa.
(Como a atenção)
O som da voz
alta confunde o
sentido onde
antes o hábito
do silêncio dos
olhos na página,
que delícia.
Muito combina-se às
vezes
sem selecionar
e o contingente estaca,
surpreendido.


§

Quinta faixa – 0:42

Intercalar uma série de
interrupções para melhor
compreender o calendário
dos meus dias. Sempre
e todo dia começam
com freqüência
complementares e adversativos,
para terminarem
entre letreiros fechados, créditos,
THE END
, o gosto do final e
a orquestra apontando a saída.
Há quem leia
prefácios,
há quem leia
posfácios.
O que se espera
da experiência
é que ocorra
antes de termos
tempo
de conectá-la com outra
e dizer “ponto final”
da dicção,
na expectativa
de atingir
pelas divisões do dois
o único,
quando obtém-se
este efeito
pela divisão do mesmo
pelo mesmo.


§

Sexta faixa – 0:24

Suas práticas
de acordo
com suas preferências
sexuais ou esta gola
justa
(Hedi Slimane)
impede-lhe o discurso
? e a resposta
foi “ambas e mais.”
Para quem não
quer nem pode a margem
por pertencer no censo
sempre a algum
domínio resta
a sabotagem
interna como o câncer.
Ele diz máquina
descentralizada e eu
digo ! hah hah hah.


§

Sétima faixa – 0:43

Tudo culpa
do meu vocabulário.
Existe a opção do sonho
com a infância
anterior
que rebusca o ouro.
Que horas são?
18:51
.
Não
proclame do palanque.
Ele diz “a música
de Heitor
Villa-Lobos
sofre
de falta de forma.”
Que fome.
Olhos
vêem no centro
da espiral um quadrado,
em especial na falta da
disposição para acompanhar
o movimento da elipse.
Não, não
na tranqüilidade
o pacote do produto
mas,
em uma emergência,
o processo das
mãos à obra .
Toda escolha
é ao acaso da atenção.


§

Oitava faixa – 0:50

Prefiro, no fundo,
a superfícies,
apêndices.
Consumir antes
da próxima
geração.
Adorno e engenho
substituídos pelo
fluxo do floema,
isto é, afinal
de contas,
uma emergência.
Mudança no
tempo imprevista.
O eterno seduz
tanto quanto
sempre
mas espera-se
adultos agora.
“O que
significa
isto?”
Leia a frase
toda.
Percorremos este
espaço de tempo
minuto a minuto
para vir do pavor
da idade do serrote
como infração do eterno
em Murilo Mendes
a esta aceitação
e deslizar no contingente
de Lyn Hejinian
em “persevering saws
swimming into boards”,
contentes, contentes.


§

Nona faixa – 0:38

Alinha-se quem
preserva. Rompa
pelo fértil.
Labirinto
se não se
resiste
ao caminho
seguindo-o.
Eu, etc.
The first time.
Das erste Mal.
La premiére fois.
Como você, não
prefiro a
não-ficção.
Não, senhor,
cogito
a possilidade.
Ela senta-se, Gauloises
à mão: “Non, la
Disneyland c´est pas
LA FRANCE, c´est
en France, mais
c´est pas La France.”
Tentação do homogêneo,
parte 2.
Eu, etc.
“ und schon sind wir
mitten drin in der
suspekten abstraktion.”



Décima faixa – 0:55

Algo amadurece à distância
mas aproxima-se aos
poucos para poucos
antes de todos
perceberem que
do chão à copa
o espaço é da queda.
Tudo deve ser documentado
é uma pergunta do processo
que se inicia no terror
para alcançar a beleza,
o risco do esquecimento
o primo leve da memória,
o preço breve do ato.
O trabalho árduo de convencer
a fruta
de que já se encontra madura.
Com os dentes.
Tempo movendo-se em volume
alto, duração contínua
segundo a segundo
para depois
ser sujeito
às elipses da atenção
da história.
A mão que escreve
pode querer-se à margem,
silenciosa, mas seu
tom de voz ecoa
por todos os cantos.
Camuflagem falha.
Equívoco da tentativa
de uma “epistemology
without a knowing
subject”.
Toda presença
é central mas pode
sabotar-se
melhor como ventríloquo
do que invisível.


§

Faixa-bônus – 0:39

Amanhece constantemente
e nossa atenção
redireciona os olhos
como foi necessário
apaixonar-se por um ruivo
para registrar o número
excitante deles nas ruas.
Cochilo como técnica.
Traduzir “Wren / set
up his own monument”
por “Mauá /
não olha a própria estátua”
Oportunidade
de dar-se
um nome
à vivência.
We possess nothing.
Ao terminar a décima
parte teve a sensação
prazerosa de simetria,
completude,
portanto escreveu a
décima-primeira.
Estou interrompendo?
Não,
fertilizando.
Eles estão emparedados
com palavras
de suas próprias idéias.


/// Ricardo Domeneck, a cadela sem Logos (São Paulo, Cosac Naify, 2007)

terça-feira, 16 de junho de 2009

Aritmética sem bom manejo

ARITMÉTICA SEM BOM MANEJO

por Ricardo Domeneck

Há poucos meses, iniciei aqui uma série de artigos, em que busco aclarar minha crença na conjunção entre estética e ética, a partir de teóricos como Ludwig Wittgenstein ou praticantes como John Cage, assim como minha discussão sobre a historicidade do fazer poético. Para isso, iniciei um debate sobre os conceitos de "trans-historicidade", "pós-utópico", "forma fixa", etc. O primeiro texto intitulava-se "O que é est-É-tica", após o qual segui com o ciclo de artigos. A única reação pública foi a do poeta Érico Nogueira, que questionou certos aspectos de minha discussão, fazendo com que eu incluísse minhas respostas a ele nos artigos subsequentes. Em um deles, intitulado "O jogo de equivalências", parto da discussão de 4 sonetos de poetas contemporâneos, para ilustrar meu pensamento sobre o uso atual das "formas fixas", discutindo textos individuais de Paulo Henriques Britto, de Glauco Mattoso, de Bruno Tolentino e, por fim, do próprio Érico Nogueira. Segundo Nogueira, em postagem recente de seu blog, vários leitores pediram a ele que respondesse às minhas críticas a Tolentino. Nogueira publica, no entanto, um artigo de Jessé de Almeida Primo, em que o ensaísta entrega-se, com zelo admirado, à "defesa" de Tolentino contra minhas assertivas.

O artigo de Primo, porém, não é exatamente uma contribuição ao debate sobre a historicidade do fazer poético. O ensaísta passa ao largo dos meus argumentos em vários artigos, ocupado em defender a reputação de um poeta que parece ter por mestre. Assim, com a edição brasileira de A Imitação do Amanhecer (São Paulo: Globo, 2006) à minha direita, posição apropriada para uma obra de Tolentino, convido o leitor a seguir-me na análise da defesa do ensaísta, por pontos:

§ - Jessé de Almeida Primo inicia seu artigo com uma epígrafe, usando, de Tolentino, os versos: "E ainda exista / ou não, cena por cena a visão bem amada / é o real como é, não como o quer o artista", à qual gostaria de responder com estes versos de Wallace Stevens: "They said, `You have a blue guitar, / You do not play things as they are.´ // The man replied, `Things as they are / Are changed upon the blue guitar.´", que, peço aos leitores, tomem como epígrafe desta minha resposta.

§ - o ensaísta baseia grande parte de sua defesa na afirmação de que eu teria incorrido numa injustiça, ao analisar um único soneto do autor. A escolha daquele soneto específico não fora acidental ou inocente. Como seguia, em meu ciclo de artigos, levando em consideração certos questionamentos de Érico Nogueira, escolhi deliberadamente um soneto que o poeta elogiara em artigo recente, chegando a declarar que o texto lhe servia de parâmetro de qualidade, medida para seu próprio trabalho. Pareceu-me honesto e justo com o próprio Tolentino, portanto, tomar um texto que um de seus elogiadores mais assíduos considerava um de seus melhores. Minha crítica foi formal e est-É-tica, sobre a qual, no entanto, o ensaísta Almeida Primo não delibera. Quanto à crítica formal que faço ao texto, tudo o que o ensaísta tem a dizer é que o soneto era apenas uma estrofe entre outras 528 estrofes, que são sonetos, sim, mas sonetos-estrofes, segundo o ensaísta, que parece considerar tal uso como grande invenção. Ora, no universo crítico em que eu habito, autor nenhum seria capaz de atingir um todo teso através da soma de partes frouxas, mas Jessé de Almeida Pinto parece pensar de outra maneira. Assim, as rimas convencionais, a linguagem frouxa e a imagética kitsch de Bruno Tolentino seriam desculpadas pelo fato de formarem apenas uma parte dentro de um todo que, o ensaísta parece crer, tem grande qualidade literária, provando também, segundo ele, a consciência da historicidade do fazer poético por parte de Tolentino. No entanto, o uso do soneto, como mero molde para uma longa meditação retórica de Tolentino, parece-nos demonstrar a noção simplista, de qualquer maneira, que este sempre demontrou, em quem forma é apenas contagem de versos, acentos e estrofes. Algo como uma "aritmética do bom manejo", unida às veleidades de uma risível "aristocracia sem boas maneiras".

§- o trabalho intitulado A imitação do amanhecer, segundo o ensaísta, seria uma "meditação sobre a história", o que provaria meu "erro" ao acusar Tolentino de não possuir grande consciência da historicidade do fazer poético em sua obra. A escolha do vocabulário de Almeida Primo é reveladora: uma meditação SOBRE a história, ele escreve. Assim, o ensaísta confunde a retórica de Tolentino com sua poética. É, deixo claro, apenas natural que um admirador de Tolentino confunda retórica com poética, já que o próprio Tolentino dominava com maestria esta confusão.

§- eu facilitei o trabalho de Almeida Primo ao parear, em determinado momento de meu texto, os conceitos de "historicidade e quotidianidade." Facilitei seu trabalho, digo, pois ele espertamente passa a ignorar minha argumentação em vários e longos artigos tentando definir com clareza meu conceito de "historicidade". Ele toma, a partir de então, a mera noção de "quotidianidade" (que ele equipara a linguagem coloquial e imagens do dia-a-dia) para defender o trabalho de Tolentino e sua funcionalidade no contexto atual. Não vou entediar meu leitor com mais uma discussão sobre minha noção de historicidade. Basta que se leia minha série de artigos. Vejamos, porém, o que Jessé de Almeida Primo chama de consciência da historicidade poética no trabalho de Bruno Tolentino:

§- o ensaísta reproduz outros quatro sonetos do livro, a sequência do número 132 ao 135 da primeira parte, como "provas" da historicidade do livro de "seu" autor. Ora, tudo o que Almeida Primo tem a oferecer é a menção a certas cenas quotidianas nos 4 sonetos, o aparecimento de uma "velhota, por exemplo, da cor / das nozes de Natal, as bochechas morenas / no rosto acantilado", "essa cliente costumeira de um salão / tipo Cavé, que a cada tarde aparecia, / saia de pailleté e bengala na mão", seguindo com a descrição, na linguagem frouxa e retórica de Tolentino, de uma cena quotidiana, a qual o ensaísta, que se propôs a defender Tolentino de meus "ataques", apresenta como os despojos de uma conquista, crendo provar com isso a consciência, por parte de Tolentino, da historicidade do fazer poético. É, obviamente, uma caricatura daquilo que discuti nos últimos artigos, deliberada ou não. A discussão da historicidade do fazer poético, para Jessé de Almeida Primo, resume-se a isso, a descrição de uma cena cotidiana em meio a sonetos alexandrinos.

§- Tolentino e seu defensor não parecem perceber a diferença entre a retórica e a poética do poeta, entre seu discurso e sua aplicação em forma. Assim, o defensor ignora as rimas convencionais, a linguagem frouxa, discursiva, que é encaixada na forma do soneto, que se transforma em mera contagem de versos, espaços em branco e o cuidado em terminar os versos com algumas das rimas mais tediosas que li nos últimos anos.

§- voltemos, porém, ao projeto do livro. O ensaísta defende o trabalho de Tolentino contra minha invectiva, dizendo que a historicidade de seu trabalho estaria comprovada, por ser este uma narrativa que se passa na Alexandria dos anos 20. Isso explica realmente alguma coisa? É por isso que Tolentino usa o verso alexandrino? Por que sonetos, além da velha pirraça infantil de Tolentino, em usar uma forma que seus "inimigos vanguardistas" consideram morta, Tolentino sempre viciado nos cheap thrills da polêmica? Lendo os sonetos de Tolentino, neste A Imitação do Amanhecer, não consigo pensar na Alexandria mencionada em vocativos ad nauseam no livro, mas na Paris do século XVI. No entanto, diga-se clara e infelizmente, Tolentino não é nenhum Du Bellay, muito menos, alas! do ai-de-nós, um Ronsard.

§- Em determinado momento, o ensaísta cita os versos: "Ah, não me leves, não me enxugues do soneto/ esses levíssimos diamantes de suor,/ essa garoa, Alexandria, o sal do amor// na terra quente dos meus versos...” , para demonstrar a luta de Tolentino com o real e o ajuste deste em sua forma escolhida. O ensaísta parece dedicar grande admiração a estes versos, que eu usaria, em qualquer contexto, como exemplo de escrita frouxa, convencional, retórica. Notem a metáfora adolescente, tomando seu trabalho formal como "diamantes de suor", a rima quase ridícula com "o sal do amor // na terra quente dos meus versos". O ensaísta não discute, porém, o trabalho formal de Tolentino. Ele está absorto demais com a ambição do projeto-todo do poeta que admira. A intenção de Tolentino parece bastar-lhe.

§- eu acreditava estarmos discutindo poesia, é por isso que não me importei com o assunto do livro de Tolentino, mas com sua forma e com a maneira que esta se adequa à "meditação sobre a história" do poeta, ainda que "ambientada na Alexandria dos anos 20", levada a cabo pelo autor em seu calhamaço de retórica. Alexandria dos anos 20? Conheço um outro poeta, que realmente viveu na Alexandria dos anos 20 e meditou muito sobre a História. Trata-se, obviamente, de Constantino Cavafy. Convido qualquer um a comparar a linguagem deste poeta, extremamente consciente de seu contexto histórico, nos idos de 1920, à ficção de Tolentino, com sua linguagem que mais parece a de um poeta que acabara de jantar com beletristas retóricos como Boileau ou Pope, lá pelos idos de 1710.

§- Quando lemos Cavafy, somos realmente transportados à Alexandria dos anos 20, vemos como um poeta daquele momento vivia, pensava, escrevia. Esta é uma das belezas da poesia produzida por um autor consciente de seu contexto histórico: seu mundo sobrevive em seu texto, mesmo após um naufrágio contextual, e ao mesmo tempo segue encontrando leitores em subsequentes contextos. O grande poeta jamais tem medo de escrever poemas "datados", justamente o que apavora o neoclássico, aquele que almeja a Eternidade e escreve poemas empoeirados e embolorados, mal saíram do forno. Assim, Cavafy, morto há mais de 70 anos, nos parece muito mais vivo que Tolentino, com quem compartilhávamos oxigênio há poucos anos. Pois Tolentino, ainda que tenha tanto criticado o "mundo como Idéia", neste A Imitação do Amanhecer não faz outra coisa que não seja doar-nos uma "Alexandria como Idéia", enquanto a de Cavafy segue viva e concreta em seus textos.

§- O poeta Dirceu Villa publicou em seu blog esta semana, por "coincidência", um artigo em que discute algo destas preocupações. O texto explica bem o que há de moroso na poesia de autores equivocados como Bruno Tolentino. Como escreveu Villa: "Justificar um versejador como poeta é simples. Basta destacar sua habilidade formal nos usos conhecidos, & louvar parafrasticamente o que ele diz, em geral coisa supostamente complexa & filosófica (mas ínfima se posta junto de seus paralelos daqueles gêneros). E naturalmente exigir, para criticá-lo, a leitura dos cinco tomos de suas obras completas, sob olhos lacrimejantes não de comoção, mas de desespero. Longos discursos abstratos, metrificados regularmente ou não, sempre foram feitos & sempre serão feitos, recheados de muita, com o perdão da palavra, filosofia, & de, ah-ham, `imagens´."

§- o problema, é claro, não é "retórica". Há discurso em Guido Cavalcanti, em John Donne, até mesmo em João Cabral de Melo Neto. Mas, nestes poetas, há uma justeza de propósitos, união entre o dizer e o fazer. Num grande poeta, é impossível separar o que diz de como o diz, há um "comooquê", conteúdo e continente são o mesmo movimento. Não vejo isso em Tolentino. Nele há apenas discurso enfiado a qualquer custo numa forma fixa, ainda que seus admiradores insistam em não ver o esforço. Não há a tríade-junção entre forma, função e contexto, como tentei argumentar nos últimos artigos.

§- Jamais acusei a poética de Tolentino de ser "alheia ao mundo, incontaminada das miudezas do cotidiano etc.". O que o acusei é de raramente ter encontrado a maneira adequada de atacar este "mundo como Idéia" ou, como é o caso deste livro sobre o qual me debruço com tédio desesperado, de muitas vezes doar-nos belos exemplos daquilo mesmo que critica.

§- o que existe na linguagem de Tolentino neste livro, e permite que Jessé de Almeida Primo chame de "quotidianidade", que ele confunde, deliberadamente ou não, com "historicidade", é apenas a linguagem muitas vezes prosaica e retórica de Tolentino, na qual a única densidade é a que ele relega à grandiloquência de seu vocabulário, para discursar sobre temas "profundos".

§- História, em Tolentino, é sinônimo de "pretérito". A Alexandria de Tolentino é completamente abstrata, alegórica. É mera metáfora. Até mesmo a Roma de Catulo, que submergiu há 2 mil anos, se nos afigura mais concreta que a Alexandria de Tolentino, que é, por fim, apenas uma abstração, uma "imitação da eternidade", nas próprias palavras deste Imitação do amanhecer. Para Tolentino, todo ser parece "fantasmático / entre a pedra e a emoção, é póstumo, é o artífice / de uma visão que o faz passar de um precipício / ao outro..."

§- percebam, no entanto, o vocabulário do ensaísta, após crer ter provado a consciência histórica na prática de Tolentino, ao citar certas cenas quotidianas em sua poesia, com sua noção simplista de historicidade: "Por outro lado, não quer isso dizer que Tolentino faça concessões ao vulgar, que ele se apequene para aparecer simpático aos bárbaros ou para tornar-se visível a eles, o que seria um distanciamento do real com sinal invertido: trocar a torre de marfim pelo buraco de avestruz. Significa o quanto os elementos aparentemente insignificantes, tão cotidianos, servem a uma reflexão refinada sobre o real: `as pequenas/ epifanias da agonia e do esplendor´."

§- Sim, aqui surgem mais uma vez as veleidades aristocráticas de Tolentino e de seus defensores, a crença de que sua poesia demonstra uma poética "que não faz concessões ao vulgar", pois não se importam se parecem ou não simpáticos aos "bárbaros".

§- aquilo que Nogueira e Primo chamam de "poética difícil", que exigiria do leitor "grande conhecimento literário", não se manifesta em Tolentino como forma, estrutura, função de sua poesia. As alusões literárias de Tolentino, ao longo do livro, consistem, em grande parte, em mero name-dropping, sempre de autores dos quais ele espera saquear a autoridade literária, esperando que a mera aparição dos nomes de Rilke ou Proust, em seu texto, o eleve ao patamar da alta cultura, à qual Tolentino, com afã provinciano, tanto aspira. Nada há de difícil, na verdade, na linguagem de Tolentino, que se afigura, neste livro, como retórica bastante prosaica em muitos momentos, pontilhada pela grandiloquência do vocabulário e de certas rimas empoeiradas, verdadeiros desafios à resistência do meu gag reflex.

§-Vejamos alguns exemplos (o que pode ser bastante didático a quaisquer poetas adolescentes que estejam acompanhando este debate) da linguagem frouxamente retórica de Tolentino, as metáforas fáceis, a grandiloquência do vocabulário, sua linguagem prosaica, enfiada incômoda no alexandrino, sua noção de alusão literária como mero name-dropping e sequestro da autoridade alheia, as rimas empoeiradas, se possível reunidos nos mesmos trechos (ainda que Jessé de Almeida Primo espere, talvez, que eu digite os 528 sonetos-"estrofes"):

do soneto I. 31

"De acordo com Platão, o ser nasce diante
do outro, da metade, e a alma dissatisfeita
mantém-lhe o corpo à espreita até o último instante,
quando atravessa o espelho e se entrega, se deita..."




do soneto I. 43

"...ergo o meu Maldoror
com a imitação do mal da aurora... O trocadilho
ri do que Lautréamont mal ousara dizer:
que há uma chaga, uma brecha entre a linguagem e o ser,
e que essa fenda é que chamamos arte, exílio,
sonho, mitologia. Que mesmo o amanhecer
baixa a esse abismo como um pária maltrapilho."


I. 116

"A jovialidade imanente no canto
é a única grandeza, haja vista Catulo,
Hölderlin louco, Keats tísico... Amo- os tanto
porque com eles atrevi-me ao salto, ao pulo
sobre a torrente musical. E se me anulo
e me aceito mortal, ao menos por enquanto,
deles tenho também que é a morte o casulo
em que crescem as asas munidas desse encanto
capaz de unificar a música e o discurso.
Não creio no prodígio senão de um mimetismo,
de uma reconstrução do eterno sobre o abismo
que escava cada rio imortal em seu curso -
partilhei com Pitágoras o sonho do algarismo,
mas fui virando arroio, soluço por soluço."


do soneto I. 165 (em que Tolentino name-drops Cavafy)

"... Porque fomos talvez
o ramalhete separado do jardim,
um instante perdulário e grave, e que se fez
e se desfez porque a alegria é sempre assim,
Alexandria... Ainda o outro dia éramos três
e já agora não sei o que fazer de mim!"


do soneto II. 113

"E como Proust, olhando a bota e atando o laço,
lembrava a voz da avó, um rosto de anciã,
penso na Alexandria venerável e vã,
a ancestral de um amor de mármore, o palácio
e o bordel onde vive a eterna cortesã
da arte - e lhe ofereço a última flor do Lácio"


...

And so on and so forth ad infinitum pelos séculos dos séculos. E há quem diga "amém". Mas é bem provável que eu esteja simplesmente entre os bárbaros que fazem concessão ao vulgar, sem pertencer à "aristocracia".

§- Sei que, usando as palavras de Érico Nogueira, Tolentino provavelmente acreditava que "a relevância de um texto está nas alusões eruditas, no manejo e correção do léxico e da sintaxe, no engenho retórico", como ele descreve o trabalho dos poetas de períodos (nunca homogêneos, de qualquer forma) neoclássicos. Já argumentei longa e claramente, espero, contra tal escolha e quais os parâmetros que sigo. Não quero convencer qualquer pessoa a deixar de ler Bruno Tolentino, se isso lhes dá prazer ou os faz feliz. Que um crítico queira, no entanto, provar que a poética de Tolentino tem relevância e consciência históricas, da maneira como Jessé de Almeida Primo o fez, parece-me simplesmente equivocado. Há autores que respeito, como Érico Nogueira, a quem considero muito superior a Tolentino, ou João Filho, de quem admiro muito a prosa, que consideram este trabalho específico de Bruno Tolentino como inovador. Dentro de meus parâmetros críticos, que venho tentando deixar claros, o trabalho de Tolentino está muito distante de qualquer noção de inovação. Muito menos de relevância. Como não me preocupo demasiado com o Make It New como mero afâ novidadeiro, não me importo com isso, deixando a discussão para os que se preocupam com a legislação do cânone. Mas me sinto impelido a questionar uma est-É-tica tão fortemente baseada na retórica e em uma noção tão rasa de "cultura".

§- O fracasso de Tolentino acaba sendo predito por sua própria intenção original, ao criar uma narrativa tão longa, que usa o soneto alexandrino como mera camisa-de-força, na noção rasa de forma que Tolentino sempre pareceu demonstrar, sem qualquer necessidade intrínseca aparente à própria estrutura de seu livro, escrito no momento em que foi escrito. Chego até mesmo a entender os que se deslumbram com a imponência monumental do projeto, que é superado apenas pela monumentalidade de seu fracasso. Aos que se interessarem pelo alexandrino, seria melhor deixar a "Alexandria como Idéia" de Tolentino, e buscar a Paris concreta de Pierre de Ronsard; assim como os que se interessem pela Alexandria concreta dos anos 20, muito mais concreta que a "imitação da eternidade" de Tolentino, podem encontrá-la nos poemas de Constantino Cavafy. É o que eu pretendo fazer, após retornar o exemplar de A Imitação do Amanhecer à estante, de onde espero não ter que o tirar tão cedo.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Estação ferroviária, por favor

Passei o fim-de-semana em Leipzig, onde fui convidado a discotecar após a apresentação do novo projeto musical da deslumbrante cantora transsexual Nomi Ruiz, mais conhecida por doar suas muitas vozes ao projeto Hercules and Love Affair. Foi um grande prazer conhecer Nomi e os outros membros do projeto Jessica 6, durante a checagem de som e um jantar, no qual a grande parte da nossa conversa girou em torno do processo de gentrificação em Nova Iorque e Berlim ou sobre como é viver em São Paulo.

Estes músicos estão entre os muitos responsáveis pelo disco revival atual, feito no entanto por músicos extremamente talentosos, e não me surpreendeu que um dos pontos altos do concerto foi a cover de uma canção disco do grande grande Arthur Russell (1951 - 1992).

§

Não conhecia Leipzig. Estivera na cidade em março, lendo na Feira do Livro, por ocasião do lançamento da antologia bilíngüe (português-alemão), com textos dos 10 poetas lusófonos e dos 10 germânicos que participaram do Festival de Poesia de Berlim, em 2008. Foi uma passagem-relâmpago e apenas desta vez pude caminhar pela cidade, tomar um café no sol, ler.

Entrei, como sempre, em todas as livrarias que vi, em meu hábito de analisar estantes de poesia. Enquanto esperava na fila, em uma delas, poeta brasileiro comprando uma antologia de um dos grandes minnesänger medievais (versão alemã do troubadour), Walther von der Vogelweide (c. 1170 - 1230) --- um de meus poetas alemães favoritos ---, a alemã em minha frente esperava na fila para pagar por seu exemplar de Die Hexe von Portobello, de Paulo Coelho.

Quero trabalhar em uma tradução de Walther von der Vogelweide para o português. Tarefa das trabalhosas.

§

Caminhando de volta para o hotel, entro na Thomaskirche, sem saber que era o local de repouso dos restos mortais de Johann Sebastian Bach, no momento em que o famoso coro de meninos conhecido como Thomanerchor, fundado em 1212, do qual Bach foi diretor entre 1723 e sua morte em 1750, ensaiava, se não me engano, a cantata “O Ewigkeit, du Donnerwort”, de 1723. Passei um bom tempo ali.

§

Retornei ao Berlimbo no domingo à noite. Percebi que ainda tenho um prazer imenso em subir num táxi e dizer: "Estação ferroviária, por favor" ou "Train station, please" ou "Hauptbahnhof, bitte."

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Meus parabéns, Alemanha, meus pêsames.


(Anna & Bernhard Blume, "Wahnzimmer", 1984, série fotográfica em 10 partes, cada foto com 200 x 126 cm. O título é um trocadilho com a palavra "Wohnzimmer", que significa "sala-de-estar" em alemão. O casal de artistas troca o "wohn", de morar, por "Wahn", de loucura, criando algo como "sala-de-esgar")


Visitei esta semana a exposição 60 Jahre - 60 Werke, no Martin-Gropius-Bau, que se propõe a celebrar, como diz o título, com 60 obras os 60 anos da República Federal da Alemanha (1949 - 2009). Este ano de 2009 é cheio de oportunidades para os alemães se pensarem a si e sobre si, também com os 20 anos da queda do Muro de Berlim.

Meus amigos alemães todos, sem exceção, torcem o nariz e se recusam mesmo a pôr os pés no Martin-Gropius-Bau para uma exposição como essa, cheia de overtones nacionalistas. Compreendo e compartilho da repulsa, mas queria ver a exposição por dois motivos: primeiro, por uma curiosidade, digamos, sociológica, pois me interessa a tendência histórica revisionista da sociedade alemã atual; em segundo lugar, ainda que uma mostra coletiva tenha uma curadoria idiota, há sempre a possibilidade de ver bons trabalhos individuais de artistas específicos. E eu não perco a oportunidade de lançar os olhos sobre as obras dos meus alemães favoritos, muitos presentes na exposição, em especial certos grandes da década de 60, como Sigmar Polke, Gerhard Richter, Georg Baselitz, Jörg Immendorf, Joseph Beuys, assim como seres esquisitos e exquisite como Wols (1913 - 1951) e Blinky Palermo (1943 - 1977). A exposição trazia ainda vários artistas que eu desconhecia, alguns muito interessantes, como Karl Otto Götz, além de artistas menos conhecidos fora da Alemanha, como Willi Baumeister, Hans Hartung, A.R. Penck ou o casal Anna & Bernhard Blume.

Assim, diria que valeu muitíssimo a pena da viagem à waste land da Potsdamer Platz e os 7 euros de entrada. Mas seria necessário não possuir um cérebro para ignorar os aspectos irritantes da curadoria idiota desta exposição.

Não vou discutir os aspectos celebratórios e pouco críticos de tal posição comemorativa. Nem mesmo a mentalidade adolescente que levou os curadores a escolherem 60 trabalhos, por estarem celebrando 60 anos da mais recente república alemã, um conceito que demonstra apenas a preguiça de pensar em um conceito mais inteligente e interessante para a exposição. Há algo na exposição que demonstra os aspectos mais deprimentes do mercado de arte atual, algo que percebi claramente também ao visitar em 2007 a exposição USA Today, na Royal Academy of Arts, em Londres.

A presente exposição consiste, basicamente, de pinturas a óleo de grandes proporções. Claro, havia o desejo de uma mostra de narrativa "épica", mas há aspectos mais tristes. Intercaladas a poucas esculturas, caminhar pela exposição é percorrer salas cobertas de pintura após pintura. Em 60 anos de arte neste território, os curradores, oops, I mean: curadores, apresentam apenas um único trabalho em vídeo (bastante ruim, diga-se de passagem) e uma única instalação sonora, do maravilhoso Carsten Nicolai, mais conhecido como Alva Noto. Vivemos um momento de inflação gigantesca no mercado de arte (ainda que a última crise econômica comece a se fazer sentir), que transformou a produção artística nas duas últimas décadas em mero mercado de decoração para as salas-de-estar dos nouveaux riches. A proliferação da pintura de grande dimensão está ligada a isso. Na mentalidade do mercado de arte atual e dessas pessoas, um quadro grande é ("obviamente", eles diriam) mais valioso que um quadro pequeno. É a "arte por metro" e a "arte por quilo". Um amigo meu, videasta alemão, recebeu uma mensagem perturbadora de sua galeria este ano. O galerista pedia a ele que fizesse seus vídeos um pouco mais longos, pois era difícil convencer colecionadores a pagarem por vídeos de poucos minutos. O videasta respondeu com a reação mais lógica, diante de um pedido desses: "Mas meus vídeos são loops!". O galerista simplesmente seguiu com o mesmo raciocínio: "Sim, mas um loop de 5 minutos valeria mais dinheiro que um loop de 2 minutos."

Que esta mentalidade comece a influenciar as coleções de arte de instituições como museus e institutos é apenas uma questão de causalidade.

Nunca foi tão necessária a discussão das implicações est-É-ticas de certas escolhas, assim como o período atual prepara o terreno para a revitalização de algumas práticas que me interessam demasiado, como a necessidade da retomada da performance como prática artística, em um mundo que segue obcecado com a manufatura de objetos e produtos, mundo onde a arte delimita-se à decoração de salas-de-estar, enquanto os preguiçosos seguem falando em "pós-utópico" e os reacionários tentam neutralizar as implicações est-É-ticas dos trabalhos de poetas como os do Cabaret Voltaire. Neste ambiente, o trabalho dos pintores do irônico "Realismo Capitalista", de Gerhard Richter, Sigmar Polke, Wolf Vostell e Konrad Lueg, torna-se incrivelmente atual, tal qual o pensamento de gente como John Cage, Lygia Clark, Joseph Beuys ou Yoko Ono.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Ah! O sempre jovem Catulo!

Até meados do ano passado, estava entregue a uma pesquisa obsessiva e apaixonada nos arquivos de algumas das vanguardas históricas do início do XX, em especial os poetas do Cabaret Voltaire e da revista DADA. Viver na Alemanha facilitava o processo, já que muitos deles escreveram em alemão, como o deslumbrante Hans Arp, além dos trabalhos interessantíssimos de Kurt Schwitters, Raoul Hausmann e da artista visual Hannah Höch.

Em francês, minha pesquisa me levou a realmente LER o senhor Tristan Tzara, já que os manuais de história da literatura contentam-se apenas em reproduzir o texto "Como fazer um poema dadaísta", aquela witty anedota (com a qual, no entanto, há implicações inteligentes a aprender), sem se preocupar em buscar os poemas do romeno, que são excelentes. Há quem prefira, obviamente, ler André Breton. Oh well. Breton era francês, etc, sabe como é. Entendia de marketing, etc. Paciência, etc. Parece-me incrível que Breton seja muito mais famoso que um francês genial como Pierre Albert-Birot. Mas... paciência. Como dizia Gertrude Stein sobre Breton: "You and I know he won´t be read for long."

A mesma pesquisa, em busca de parâmetros para o meu próprio trabalho, me levou aos poetas-performers do pós-guerra, Henri Chopin e Bernard Heidsieck, por exemplo, ou aos poetas do Grupo de Viena, do qual H.C. Artmann viria a se tornar uma referência muito importante para mim.

Há cerca de um ano, no entanto, minha pesquisa expandiu-se, abriu o foco. Comecei a perceber que a narrativa histórica distorcia não apenas as vanguardas, geralmente colocadas todas no mesmo balaio, sendo tão distintas entre si. Senti a necessidade de retornar a certos poetas do passado, provar neles, e contra eles, os parâmetros que vinha estabelecendo a partir de certos poetas dos séculos XIX e XX. Foi assim que passei a ler, obsessivamente, entre 2008 e este ano de Nosso Senhor, poetas (e seus críticos) como Safo de Lesbos, Caio Valério Catulo, François Villon e trovadores como Arnaut Daniel, Bertran de Born, Raimbaut d`Aurenga, Beatriz de Diá, Guilherme IX da Aquitânia.

Um dos que mais me fascinam é Catulo, em quem sinto encontrar um nó, ligando em corrente e teia várias das minhas preocupações est-É-ticas. Iniciei há poucos meses um ciclo crítico sobre o jovem poeta romano na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co. Já escreveram sobre Catulo os poetas Érico Nogueira, Dirceu Villa e Ismar Tirelli Neto.

Publiquei hoje a quarta postagem do ciclo crítico, com um artigo do poeta Danilo Bueno .

Catulo, forever young, dá até vontade de cantar.

domingo, 7 de junho de 2009

Calendário de trabalhos e prazeres

A correspondência se empilha na caixa física e digital, as obrigações kafkiano-burocráticas de um estrangeiro na Alemanha, as olheiras arrastam-se até a região das orelhas. Interrompo o ciclo de artigos por um segundo, para cuidar da obra que importa mais, no fundo e no raso, a poesia, e daquela tal de vida prática. Algumas notícias, algumas novíssimas.

§- corrigindo, neste momento, as provas do meu terceiro livro, intitulado Sons: Arranjo: Garganta, cuja composição (2004 - 2008) correu paralela e simultânea à composição de meu segundo livro publicado, a cadela sem Logos, formando uma espécie de álbum duplo e irmanado, como se os dois livros fossem my own private "Kid A / Amnesiac", guardadas as devidas proporções. O livro sai pela Cosac Naify no início do segundo semestre, se tudo correr como planejado, com os livros de outros três poetas brasileiros contemporâneos.

§- tenho uma leitura e duas daquilo que chamo de "performances vídeo-textuais" marcadas para os próximos meses, além de algumas apresentaçoes como DJ:

--- no dia 27 de junho, apresento-me em Heidelberg com minha performance vídeo-textual, no centro cultural Karlstorbahnhof. Na mesma noite, lê o jovem poeta e romancista norte-americano Travis Jeppesen. A convite do curador, preparei uma pequena seleção de vídeos de outros artistas, a serem apresentados na mesma noite, incluindo trabalhos do coletivo berlinense Die Tödliche Doris, do fotógrafo suíço Walter Pfeiffer e de jovens videastas como Niklas Goldbach.

--- entre os dias 27 de junho e 5 de julho, ocorre por aqui o lendário Poesiefestival Berlin, o maior da Europa. Estou entusiasmadíssimo com a leitura de Rosmarie Waldrop, a quem poderei finalmente conhecer em pessoa, após certa correspondência, troca de livros e a tradução que fiz de vários textos seus para o português. Também quero muito ver a performance da norueguesa Maja Ratkje e ainda dos americanos Edwin Torres e Saul Williams. Após ler por dois anos seguidos no festival, este ano a Literaturwerkstatt convidou-me para tocar como DJ na festa de encerramento.

--- no dia 31 de julho, faço uma apresentação solo de minha performance vídeo-textual no EACC - Espai d´Art Contemporani, na pequena cidade catalã de Castelló, nos arredores de Barcelona. O Espaço de Arte Contemporânea da cidade dedica a programação deste verão europeu a poetas experimentais, trabalhando com texto, voz e vídeo. A série foi inaugurada pela lendária Lydia Lunch, na semana passada.

--- entre os dias 25 e 30 de agosto, estarei na Eslovênia, a convite do Festival Medana, lendo poemas nas cidades de Ljubljana, Ptuj e Medana. Cerca de dez poemas meus estão sendo traduzidos para o esloveno, especialmente para o festival, dos quais cinco devem figurar na antologia/catálogo publicada a cada edição do evento, sempre com textos na língua original, em tradução para o inglês e tradução para o esloveno.

§

Planejando uma viagem ao Brasil para o segundo semestre. Faz mais de três anos que não visito o país. Quero rever a família, os amigos, ouvir mais português do que aquele oferecido pelo turista ocasional nos subterrâneos do metrô berlinense.

§

Há algumas semanas, disse com entusiasmo que estava a caminho da performance de Janine Rostron, a Planningtorock, na Haus der Kulturen der Welt aqui em Berlim. Uma boa alma decidiu gravar a performance, em que Planningtorock mostrou novos trabalhos em vídeo e música, e postar excertos no YouTube. A performance foi deslumbrante e aqui vocês podem ter um gostinho (vocês podem, se quiserem, me imaginar na terceira fila, em distância do palco, onde estava sentado com o moço, drooling de admiração):

quarta-feira, 3 de junho de 2009

"Primazia das premências" ou "Resposta a Érico Nogueira"

Meu caro Érico,

nós dois sabemos que não encerraremos este debate que, de uma forma ou de outra, se repete há séculos. Iniciei, com "O que é est-É-tica", uma série de artigos em que tento aclarar meus parâmetros e princípios. Não tenho a menor intenção de convencer você ou qualquer outro. É minha noção de honestidade crítica, e creio segui-la nos últimos artigos: aclarar estes parâmetros e só então fazer meus juízos de valor. Não baseio meu trabalho em conceitos que são meramente
taken for granted por já estarem numa suposta tradição unívoca.

Quando você declarou que respondi de forma "cabal" à sua argumentação, após meu artigo em que trato de alguns sonetos, incluindo um dos seus textos, em momento nenhum compreendi sua reação como uma concordância total comigo ou que eu tivesse "vencido" o debate. O debate não é apenas com você e não terá vencedores. Cri que sua reação demonstrava simplesmente que você havia finalmente compreendido minha posição, com a qual não espero, nem por um segundo, que você concorde. No entanto, em seu último artigo, você se propõe o "resumo" de minha argumentação, levada a cabo em 4 longos artigos. Não me incomoda que você queira "resumir" meu trabalho, mas isso acabou gerando certa confusão e não creio que você o tenha feito de forma correta. Tentarei ser breve, o que sempre me resulta difícil:

Não defendo uma noção de contextualização histórica que transforme forma poética em mero espelho de seu contexto sócio-cultural. Acredito que poemas são estruturas altamente complexas, envolvendo o que se convenciona chamar de forma, mas também sua função dentro de um contexto específico. No entanto, é impossível saber a todo momento em que direção apontam as setas da influência entre forma poética e contexto histórico: a relação é complexa, de espelhamento mas também de transformação mútuas, de um sobre o outro. Acredito, porém, que a atitude neoclássica toma os aspectos mais superficiais de uma "forma poética" e, em seu anseio por eternidade e pavor dos efeitos do fluxo histórico sobre estas mesmas formas (com o gradual nível inevitável de abstração que isso impõe sobre sua linguagem poética), transforma-a em fórmula, mera teatralização visual e matemática do que era uma estrutura mais complexa, em minha opinião.

Se o conceito de forma fixa parte, porém, de um inventor, que estabelece um parâmetro de qualidade, é necessário analisar a estrutura completa de sua invenção e o uso subsequente da forma em outros contextos, já que esta forma, obviamente, será transformada pelo contexto de cada novo uso. Você tem toda razão ao dizer que cada contexto precisa ser analisado, apenas erra ao não perceber que o fiz em meu texto. Jamais defendi, porém, este tipo de contextualização arqueológica. Aqui entra minha defesa sincrônica de contextualização histórica: não quero apenas entender a época em que o poema foi composto, desculpando o poeta por qualquer falha, mas estabelecer um diálogo entre a época do poeta e a minha, buscando saber o que pode ser usado em nosso momento histórico e como, não apenas num recurso à autoridade da tradição, muito menos tratando-o como caixa de ferramentas da qual posso tomar qualquer forma histórica.

Você insinua exatamente aquilo que meu conceito de contextualização nega. Tentei deixar claro que não defendo um neodeterminismo, que não defendo algum tipo de teleologia sociológica entre contexto político-cultural e forma artística, como se uma fosse mero reflexo da outra, e é exatamente isso que você propõe em seu "resumo" de minha argumentação. O que analisei em meu texto é a estrutura completa da sextina de Arnaut Daniel em seu aspecto formal, funcional e contextual, como uma estrutura complexa, muito além da figura simplista de forma como mera contagem de palavras e versos. Argumentei que a sextina deixa de ser esta estrutura formal complexa para se transformar em fórmula, quanto mais se distancia da sua estrutura original, de sua forma/função/contexto, para transformar-se em contagem de caracteres. Você ignorou isso para transformar minha argumentação em alguma espécie de louvor vanguardista e romântico de uma originalidade qualquer. É interessante que no mesmo dia em que você publicava seu questionamento sobre meu último artigo, eu escrevia, na introdução ao ensaio de Rodrigo Damasceno sobre Raimbaut de Vaqueiras, na Modo de Usar & Co., "que nosso conceito de vanguarda poderia ser reavaliado, substituindo certa mentalidade de tendência romântica, que busca rupturas dentro de uma fictícia tradição unívoca, em suposta evolução linear, por uma visão da história da poesia como a recorrência de problemas est-É-ticos e suas soluções formais, mostrando sucessivas "modernidades" a exigirem "atualizações", com as religações simultâneas e paralelas a práticas negligenciadas por uma determinada narrativa crítica hegemônica. O trabalho dos trovadores ainda é uma das fontes mais frutíferas para uma renovação poética e busca de soluções formais novas/necessárias para os dias de hoje."

Não quero vedar o uso das tais de formas fixas, mas insisto que seu uso exige um conhecimento do contexto em que foram criadas e sua possível funcionalidade em nosso próprio contexto. Não se trata, insisto, de arqueologia histórico-sociológica, mas de discernimento crítido da estrutra completa e complexa de uma forma poética em seu contexto e SUA FUNCIONALIDADE EM NOSSO CONTEXTO.

Você erra ao afirmar que eu não compreendo o contexto de Camões. Minha compreensão está explícita em meu texto, ainda que minha discordância de certas escolhas sugira um tom negativo ao falar sobre os parâmetros hegemônicos na Renascença. Conheço o que você chama "padrões de composição, recepção e crítica de poesia" na Renascenca, suas diferenças em relação à poesia medieval, o desejo de "erudição, 'disciplina gramatical', e convenções retóricas que remetiam à Antigüidade greco-latina", sendo isso o "selo de qualidade, digamos, de um poema". Neste momento, assim como em sua insinuação de que eu não pareço compreender os períodos que você chama de clássicos (neoclássicos, na verdade), é você quem demonstra não parecer compreender que alguém possa simplesmente DISCORDAR destas escolhas. Há uma diferença entre desentender e discordar. Passei, portanto, a aclarar os motivos por que discordo delas.

Compreendo perfeitamente até mesmo a necessidade, por parte dos poetas neoclássicos, do uso de uma linguagem abstrata, sem marcações temporais, contextuais. É totalmente coerente com a est-É-tica neoclássica. Angustiados com o efeito que a passagem do tempo parece ter sobre os textos poéticos, eles buscam em um grau mais elevado de abstração a possível fuga deste efeito temporal. Daí o pavor de qualquer noção de contextualização, já que estes poetas almejam a eternidade. Não é uma característica exclusiva dos períodos neoclássicos. Vemos isso também entre certos simbolistas. Hugh Kenner escreveu que se tratava da busca de uma linguagem que estivesse imune ao envelhecimento histórico, ou que já tivesse, de certa forma, sofrido os efeitos possíveis do tempo.

É interessante que parece ocorrer uma inversão de papéis pois, de repente, você se põe a defender Camões apenas por seu "contexto". Minha argumentação partiu, em primeiro lugar, dos textos. O que você chama de engenhosidade, nos parâmetros renascentistas, entre os neoclássicos, fique claro, parece-me mera engenhosidade retórica, não poética. A engenhosidade de Camões, naquela sextina, que é uma de suas melhores, é fortemente retórica, ele transforma uma composição tão POETICAMENTE engenhosa como a sextina de Arnaut Daniel em veículo para a engenhosidade RETÓRICA de sua época. A diferença está nos textos, no trabalho formal dos dois poetas. Engenhosidade retórica contra engenhosidade poética não é "privilégio" dos neoclássicos renascentistas. Basta ler Alexander Pope ou William Wordsworth, poetas que você talvez aprecie. Ou, para citar um exemplo de poeta contemporâneo que frequentemente confunde engenhosidade retórica com engenhosidade poética, poderíamos aqui, mais uma vez, mencionar Bruno Tolentino, a quem você não perde a oportunidade de louvar. Engenhosidade retórica em versos não caracteriza, para mim, engenhosidade poética.

Veja bem, em meu texto, eu escrevo que "em Camões, já vemos a sextina transformar-se em veículo para a retórica renascentista, no uso que Camões faz de sua rede de repetições." O que talvez tenha incomodado você foi meu tom de sutil invectiva. Sim, porque a preponderância da retórica na poética hegemônica da época me parece um declínio da poética mais complexa do período medieval. Engenhosidade é questão de perspectiva.

Portanto, Érico, compreendo que poetas, em diversos momentos históricos, escolham crer que "a relevância de um texto está nas alusões eruditas, no manejo e correção do léxico e da sintaxe, no engenho retórico", períodos que você chama de "deliberadamente 'beletristas', em que a relação de um poeta com as demandas da experiência concreta, histórica ou biofísica que seja, é fortemente mediada por toda a sorte de convenções."

Permita-me, porém, discordar desta escolha e expressar minha discordância de forma clara, sem esperar que qualquer um que a adota venha a mudar sua posição apenas por minha causa. Apenas ouso afirmar o seguinte: que um período ESCOLHA produzir uma poesia beletrista, bacharelesca e retórica é, em minha humilde opinião, uma tristeza, e também acredito que não precisemos desta poesia hoje. Não estou insinuando que alguém deixe de ler os poetas neoclássicos de várias épocas, se isso os faz feliz. Pessoalmente, prefiro os que demonstram uma relação mais crítica com a tradição, dialogando com sua própria época, sabendo o que permanece funcional ou não, sem furtar-se ao debate histórico de seu tempo, simplesmente adotando parâmetros genéricos, com o recurso à "autoridade da tradição". Estando aqui a criticar parâmetros neoclássicos, é engraçado que você me sugira a leitura de Virgílio. Ler Virgílio, meu caro, apenas me convence ainda mais de minha "posição anti-neo". Posso ler as "Bucólicas" de Virgílio, mas não me esqueço de um certo poeta contemporâneo que, em 2008, publicou uma "Bucólica", mais tarde chamada de "Quatro estudos neoclássicos", em que, demonstrando consciência histórica e contextual de sua impossibilidade de imitar Virgílio hoje, escreve:

"Não há faias na
América do Sul.

As que eu
quero, nem no
Mediterrâneo mais.

Estão abstratas no
poema de
Virgílio,
são refúgio da
sombra,
desafio,
abismo."


Reconhece os versos? Foram escritos por Érico Nogueira, que demonstra em alguns momentos, digo com todo o respeito, mais consciência histórica em sua poesia do que em sua crítica. Mas eu não estava meramente querendo criar uma hierarquia, que a você não parece "cabível" ou pertinente. No entanto, numa das contradições de seu texto, você passa imediatamente a criar pares hierárquicos, segundo, obviamente, a sua própria ideologia da percepção, com a assertiva de que Virgílio é melhor que Teócrito, e fazendo a comparação, esta sim pouco cabível e pertinente, entre o Quixote e as novelas de cavalaria. Trata-se, obviamente, apenas de minha opinião, sem basear-se na autoridade da tradição ou querer atemporal. É, no entanto, coerente com as minhas escolhas est-É-ticas, que venho tentando deixar claras.

Portanto, minha idéia de contextualização não implica uma espécie de teleologia em que forma poética se torna mero espelho de um contexto cultural, nem prega o mero louvor da originalidade, do que você chamou sarcasticamente de "primazia da premiére". O que argumento é que há uma ligação intrínseca entre uma forma poética e seu contexto, tratando-se de uma relação (vou usar uma palavra perigosa) dialética, dialógica, com todas as contradições envolvidas. Não pretendo vedar o que se convenciona chamar de formas fixas, mas acredito que elas se engessam quanto mais se afastam desta estrutura complexa entre forma, função e contexto. Quem quiser escrever sextinas, que se dê ao trabalho, então, de escrevê-las com a mesma complexidade formal e funcional de Arnaut Daniel (de quem, lembremos, temos uma única sextina, sem podermos saber se mesmo ele algum dia a usou como "forma fixa"), com alta complexidade literária e musical. E que esteja preparado para cantá-la. O que melhor o fez foi outro trovador, Bertran de Born, que escreveu uma sextina com as mesmas seis palavras, num ato de emulação e diálogo possíveis, dentro da mesma forma, função e contexto.

O que me parece um tanto ingênuo é nutrir veleidades aristocráticas ao defender uma poesia de engenhosidade retórica e livresca, crendo que o público tem a obrigação de interessar-se por uma poética que, feita em tom acadêmico, acaba por ter, como leitores, apenas outros acadêmicos. O que não significa que eu defenda uma poesia fácil ou "democrática e popularesca". Meu trabalho poético já foi chamado de incompreensível em mais de um (lá venho com a palavra obsessiva) contexto.

Grande abraço,

Ricardo Domeneck

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