quinta-feira, 31 de maio de 2012

Uma noite no Boiler Room e uma citação de Mark von Schlegell, de uma conversa com Daniel Kane, na revista "The Happy Hypocrite"

Ontem ocorreu a décima edição berlinense do Boiler Room. Meus amigos Anika e Obi Blanche fizeram uma discotecagem genial de abertura, antes de A Guy Called Gerald, Sandwell District, Session Victim e Silent Servant tomarem as mesas.


Estava lá com alguns amigos antigos e novos. Depois de um par de horas na sessão de discotecagens e concertos, saí com duas destas amigas recentes. Fomos a um boteco e começamos a nos entupir de vinho tinto. Conversamos muito sobre as hesitações e a impulsividade no momento da criação. Elas, reclamando de suas hesitações. Eu, de minha impulsividade. Uma delas, a poeta e artista visual irlandesa Doireann O. Malley, disse que gostaria que eu lesse um texto de Yve Lomax e me emprestou o quarto número da revista The Happy Hypocrite: A rather large weapon, editada por Maria Fusco. O texto de Lomax, baseando-se em Foucault e Agamben, intitula-se "To become an author (Necessity)" e é realmente interessante, tocando nos pontos de nossa conversa sobre hesitações, impulsividade. Mas, dentro da revista, foi de uma conversa entre os escritores Daniel Kane e Mark von Schlegell que retirei a citação abaixo, que gostaria de compartilhar com vocês. Quem fala é o norte-americano von Schlegell:


"I notice in the poetry world a new debate about the meaning of `hybrid´ poetry: the arguments seem to involve a kind of poetry which works different styles into it. I mean, the idea that a poem can contain competing `styles´ within itself and is therefore something new and exciting reveals not so much that there´s something new going on in poetry but that the poetry `scene´ is so closed-off from the other arts that it actually believes a mash-up of obscure 20th century poetic styles is a cause for hosannas. It´s not an accident that Richard Serra, Marcel Broodthaers, Dan Graham all started out as poets. This was around 1965. Contemporary art is way beyond poetry in its use of the hybrid, involving itself directly as it does with actually different genera of cultural production like architecture, music, even poetry. But that said, and to get back to your earlier point about why I portray `art´ and `poetry´ in a less than stellar light within my work, I would add that most of the art world is similarly provincial when perceived from the poetry sphere. The art world claims practically every day to have discovered self-publishing, critical theory and the chap book. Lyricism is courted without poetics. I wouldn´t be surprised if people in that world read Walt Whitman soon."

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quarta-feira, 30 de maio de 2012

Só um pequeno aviso

Aos amigos que desejam acompanhar a série de artigos sobre a seleção de autores da FLIP 2012, quis avisar que a Deutsche Welle se interessou por aquele que tratará do número baixíssimo de mulheres no festival, e o pediu com exclusividade para sua publicação. Estou entrando em contato com o curador deste ano, e os de algumas outras edições, para que tenham a chance de comentar a situação. O artigo sairá na Deutsche Welle em um par de semanas.

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sexta-feira, 25 de maio de 2012

"Cigarros na cama" (2011), disponibilizado para download. Apoio ao livrosdehumanas.org



Soube através das redes sociais sobre a situação do Livros de Humanas, que disponibilizava livros raros e caros para estudantes que obviamente não podem pagar os preços absurdos de livrarias e estantes virtuais. O site foi fechado por decisão judicial. Voltarei ao assunto. Por ora, informo que me uni aos escritores Veronica Stigger, Eduardo Sterzi, Angélica Freitas, Idelber Avelar, Marília Garcia, Ismar Tirelli Neto, André Vallias e Victor Heringer, que disponibilizaram livros para download gratuito em solidariedade e apoio aos curadores do Livros de Humanas, disponibilizando ontem meu Cigarros na cama (2011). Na semana que vem, pretendo disponibilizar Carta aos anfíbios (2005).


quinta-feira, 24 de maio de 2012

FLIP 2012 homenageia grande poeta. Como anda sua relação com a poesia?


Carlos Drummond de Andrade, na página da FLIP 2012.

A edição de 2012 da Festa Literária Internacional de Paraty homenageia um dos grandes poetas brasileiros do século XX, Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987). Por ocasião, os cento e dez anos de seu nascimento. É certamente uma alegria ver, uma vez mais, um poeta no centro das homenagens daquele que se tornou o mais conhecido festival literário do país. É a quarta vez, num festival que chega este ano a sua décima edição: Vinícius de Moraes (1913 - 1980) foi o homenageado em 2003 – a primeira; Manuel Bandeira (1886 - 1968), em 2009; o escritor múltiplo (poeta, prosador, ensaísta e dramaturgo) Oswald de Andrade (1890 - 1954), em 2011; e agora, o itabirano. Se levarmos em consideração que, entre os outros seis homenageados – João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Jorge Amado, Nelson Rodrigues, Machado de Assis e Gilberto Freyre –, o último foi um grande sociólogo e pensador, temos uma curadoria razoavelmente equilibrada na importância dada à prosa e à poesia brasileiras - ao menos às já canonizadas. Estou ciente de que Machado e Rosa também escreveram poesia, mas ninguém há de insinuar que foi, sequer de longe, por suas produções poéticas que eles foram homenageados ou são hoje reverenciados. Quanto à decisão de homenagear apenas autores mortos, se ela denuncia a velha necrofilia crítica brasileira, isto já seria outra discussão, à qual não pretendo dedicar este artigo.

Ora, ninguém aqui é ingênuo; todos já estamos cansados de artigos nos quais a organização da FLIP recebe, justamente ou não, as contumazes acusações de ser mera vitrine comercial das grandes editoras do País. Ao mesmo tempo, ninguém realmente espera que as tendas da Festa se encham e seus copos de champagne se esvaziem, apinhando a programação com poetas. A festa dedica-se, obvia e compreensivelmente, aos produtores de prosa do País e do mundo - pois isto vende. Para tal, precisa ainda de suas celebridades. Desde que tenham qualidade literária, não há motivos para nos enfezarmos demais com os curadores. Imagino que o curador da edição deste ano, o jornalista Miguel Conde, esteja orgulhoso de poder trazer à festa brasileira o francês J.M.G. Le Clézio, galardoado com o Nobel em 2008; o inglês Ian Mcwean; o americano Jonathan Franzen, estrela da cena literária norte-americana e mundial; o espanhol Enrique Vila-Matas; e, por que não?, mesmo o sírio Adonis, um dos mais famosos poetas contemporâneos, candidato sério ao Nobel há vários anos.

Mesmo assim, não me parece absurdo observar de perto a seleção de autores feita pela curadoria, justamente na edição de um evento que tem como homenageado o grande poeta Carlos Drummond de Andrade. Afinal de contas, ainda que também tenha escrito prosa, ninguém há de insinuar que foi por suas crônicas que o mineiro tornou-se o gigante literário que nós hoje reverenciamos.

Foi com isso em mente que visitei esta noite a página oficial da FLIP 2012. Dos 40 escritores listados, pude contar 10 poetas – se tomarmos os nomes do chileno Alejandro Zambra e da escocesa Jackie Kay, que também escrevem poesia, ainda que pareçam estar claramente entre os convidados por seu trabalho em prosa. Voltamos uma vez mais ao problema: até que ponto o aspecto comercial deveria condicionar a seleção de um festival que se quer literário?

Se é papel de um festival como a FLIP reverter ou intervir num problema que tem, como base, complexas questões socioeconômicas, seria uma discussão larguíssima. É claro que tudo nos levaria, por exemplo, a uma discussão sobre os problemas educacionais brasileiros - isentando talvez a festa. No entanto, na discussão toda entraria certamente um debate sobre o financiamento do festival, quanto dinheiro público ali jorra e, portanto, quais suas responsabilidades socioculturais. Não tenho acesso a estas informações. Na página do festival, encontramos os logos da Lei de Incentivo à Cultura; do BNDES; da Secretaria de Cultura do Governo do Rio de Janeiro; e ainda da Petrobras.

Talvez seja utópico, idealista, ou apenas pouco realista esperar que a edição de 2012 da Festa Literária Internacional de Paraty, que homenageia o poeta Carlos Drummond de Andrade, tenha uma seleção mais equilibrada entre poetas e prosadores. Será realmente pouco convidar 10 poetas entre 40 escritores?

Confesso haver outras questões que me incomodam mais na seleção, ou me levam a questionamentos que complicam ainda mais a discussão. Uma delas: dos 7 poetas brasileiros convidados (ou quase todos os poetas, se excetuarmos Adonis, Zambra e Kay), apenas 1 tem menos de 50 anos. Apenas 3, menos de 60. A festa dá, em geral, espaço a escritores jovens. Conheço vários poetas de minha geração que já participaram de eventos anteriores. Este ano, entre os 30 "prosadores", pelo menos 7 são razoavelmente jovens, com menos de 40 anos.

A foto de Drummond usada na página da festa para a homenagem é, naturalmente, do Drummond que se tornou canônico em nossas mentes: o ancião, certamente já passados seus 80 anos. Trata-se de um fenônemo cultural, forte no Brasil.  Mesmo que muitos dos mais famosos poemas – dos mais famosos poetas – tenham sido, com frequência, escritos quando estavam na casa dos 20 ou 30 anos, espera-se ainda do poeta algo como uma manifestação de sabedoria, talvez remanescente dos tempos em que os poetas da comunidade eram realmente os anciãos, que carregavam na mente e boca a história oral da tribo.

Mas pensemos no caso específico de Drummond: diz a História literária brasileira que o poeta tornou-se já bastante conhecido na cena poética nacional com a publicação do poema "No meio do caminho" na Revista de Antropofagia, em 1928. O poeta tinha 26 anos. Quando publicou seu primeiro livro, Alguma poesia (1930), tinha 28. O livro contém clássicos como "Poema de sete faces", "Quadrilha" e o próprio "No meio do caminho". Até completar 40 anos, publicaria os livros Brejo das almas (1934, com 32 anos), Sentimento do mundo (1940) e José (1942), com alguns de seus poemas mais famosos. Por muito tempo, parte do establishment literário nacional sequer considerava poesia o que o mineiro fazia. Se pensarmos na conferência de Mario de Andrade em 1942 como marco do triunfo institucional do Modernismo de 22 no establishment, tornando centrais no debate seus autores, seria correto pensar que apenas a partir daí o poeta Drummond teria sido considerado digno de participar de um festival de porte nacional e internacional no País?

Estou ciente de que tal meditação coloca grande pressão sobre os poetas jovens brasileiros, os que não foram jamais convidados para participar da FLIP, ou até mesmo sobre os mais velhos que foram convidados em anos anteriores ou neste. Para alguns, isso é querer compará-los a Drummond. Ou seja: dentre os poetas em atividade hoje no País, na casa dos 20 ou 30 anos, haveria algum que teria a importância que Drummond teve aos 20/30 anos? Não seria aconselhável se apressar na resposta. Pois temos que nos lembrar que o próprio Drummond teve por muito tempo sua obra considerada nos termos, tão frequentes ainda hoje, da famosa "mas isso não é poesia". Em todos os tempos, sempre houve cinquentões bradando que os mais jovens são péssimos poetas, apesar da História quase invariavelmente prová-los equivocados.

Mas, então, em que momento muda-se de opinião sobre a obra de um poeta? Gertrude Stein, em sua famosa conferência Composition as explanation, escreveu que "No one is ahead of his time, it is only that the particular variety of creating his time is the one that his contemporaries who also are creating their own time refuse to accept. And they refuse to accept it for a very simple reason and that is that they do not have to accept it for any reason". Ela continua:

"For a very long time everybody refuses and then almost without a pause almost everybody accepts. In the history of the refused in the arts and literature the rapidity of the change is always startling. Now the only difficulty with the volte-face concerning the arts is this. When the acceptance comes, by that acceptance the thing created becomes a classic. It is a natural phenomena a rather extraordinary natural phenomena that a thing accepted becomes a classic. And what is the characteristic quality of a classic. The characteristic quality of a classic is that it is beautiful. Now of course it is perfectly true that a more or less first rate work of art is beautiful but the trouble is that when that first rate work of art becomes a classic because it is accepted the only thing that is important from then on to the majority of the acceptors the enormous majority, the most intelligent majority of the acceptors is that it is so wonderfully beautiful. Of course it is wonderfully beautiful, only when it is still a thing irritating annoying stimulating then all quality of beauty is denied to it."

Perdoem-me a longuíssima citação, especialmente quando ela mais complica que aclara a discussão. Pois, aqui, seríamos obrigados a discutir nossa noção contemporânea de classicismo e modernidade,  e quando esta última começa; questionar noções de linearidade histórica e evolução nas artes; entrar no ninho de vespas que é o debate sobre diacronia e sincronia; alguns se refeririam a Baudelaire, enquanto outros questionariam se este é mesmo o início de nossa modernidade, e não Rimbaud, ou Mallarmé, ou, a partir do interessantíssimo debate ao qual as traduções de Heine feitas por André Vallias poderiam ter-nos levado, mas não o fizeram por nossa preguiça, se foi o alemão; alguém, justamente, lembraria da querelle des anciens et des modernes, entre os literatos franceses do século XVII; ou será que Catulo já não teria sido moderno em alguma acepção do termo (teríamos então que voltar à raiz da palavra); ou, ainda, se não terá sido Calímaco, ao dizer que o modelo homérico ja não fazia sentido em seu tempo - século III antes da Era Comum – quem não instaurou a primeira querelle em suas disputas com Apolônio de Rodes. A questão é mais que complexa, talvez insolúvel.

Eu vou ensaiar uma minúscula contribuição à discussão, sobre o momento em que a aceitação de um autor torna-se clara e começa a estabelecer-se:

A geração que escolhe desperdiçar seus poetas, certamente os desperdiçaria até o fim, não houvesse um fator decisivo: os leitores mais jovens, aqueles que nascem em um mundo no qual tais obras são já fatos. São estes leitores que se sentem mais livres dos entrincheiramentos críticos engessados, aqueles decidindo a recepção de uma obra. Duvido que muitos dos leitores que viram "No meio do caminho" como uma perversão do que deveria ser a poesia (ou seja, aquilo que aprenderam a ver como poesia), tenham realmente mudado de opinião antes de morrerem. Foram muito provavelmente alguns poucos críticos e leitores da idade de Drummond, apoiados mais tarde por aqueles que nasceram após a criação de sua obra, que aos poucos impuseram sua percepção sobre tais poemas. 

Assim como, para persarmos num exemplo recente, foram leitores mais jovens que começaram a transformar a recepção crítica das obras de autores como Hilda Hilst e Roberto Piva. Como são poetas  e leitores mais jovens os que buscam hoje chamar a atenção para a qualidade da poesia de Leonardo Fróes.

Dessarte, eu perguntaria: se você está entre aqueles que consideram todos os poetas jovens brasileiros péssimos autores, e que o que fazem não é poesia, você tem certeza que as gerações nascendo hoje, ou em 10 anos, ou em 20 anos, não ridicularizarão nossa época por desperdiçar os poetas produzindo agora, na casa dos 20 e 30 anos? Podemos estar realmente certos de que nossa época será lembrada por sua prosa, não por sua poesia?

Talvez tenhamos nos afastado bastante da discussão inicial, sobre a seleção dos autores da FLIP 2012. Mas não demasiado. Pois o próprio curador desta edição, na página dedicada à homenagem a Drummond, comenta: "Embora hoje seja considerado um clássico, por muito tempo Drummond recebeu críticas duras de pessoas para as quais o que ele escrevia não merecia nem mesmo ser chamado de poesia."

Seria realmente muito, esperar que o curador de um festival do porte da FLIP se mostrasse consciente de autores que estejam talvez hoje, neste exato momento, questionando o dilema entre o moderno e o eterno, propondo desafios ao "que ainda hoje diversas pessoas consideram definidoras do que é uma boa poesia"?

Por fim, estas são questões est-É-ticas interessantes, que têm implicações políticas talvez distantes, mas não por isso menos importantes. Não é obrigação dos curadores responder por completo a uma questão que se forma a partir de problemas socioculturais e, portanto, inescapavelmente econômicos nos nossos dias. Ou será?

Mas diante de outras questões políticas muito mais sérias ao contemplar a seleção de autores deste ano, tudo isto chega a parecer, a mim mesmo, picuinha. Quantos poetas e quantos prosadores estão entre os autores da FLIP 2012? Não é exatamente uma aberração.

Aberração verdadeira e gritante é a façanha dos curadores ao terem, entre os 40 autores, conseguido convidar apenas 5 mulheres. É a esta questão que pretendo dedicar o próximo artigo, seguindo depois para uma avaliação da porcentagem de autores vindos de fora dos âmbitos culturais europeu e norte-americano.


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domingo, 20 de maio de 2012

Traduzindo Hans Magnus Enzensberger (II): "Ela, aos trinta e três"

Ela, aos trinta e três

Ela imaginara tudo bem diferente.
Ainda este Volkswagen enferrujado.
Certa vez, quase casou-se com um padeiro.
Antes, costumava ler Hesse, depois, Handke.
Agora ela prefere resolver charadas na cama.
De homens, não tolera abusos.
Por anos foi trotskista, mas à sua maneira.
Jamais tocou num cupom de racionamento.
Quando pensa no Camboja, passa mal.
Seu último namorado, o acadêmico, gostava de apanhar.
Vestidos de batique esverdeados, largos demais para ela.
Parasitas nas plantas à janela.
Na verdade, queria pintar, ou emigrar.
Sua tese, Luta de classes em Ulm, 1500
a 1512, e suas marcas no cancioneiro:
bolsas, começos, e uma maleta cheia de notas.
De vez em quando, a avó manda-lhe dinheiro.
Danças acanhadas no banheiro, caretas,
horas de hidratante ao espelho.
Ela diz: pelo menos não morrerei de fome.
Quando chora, fica com cara de dezenove.

Hans Magnus Enzensberger, tradução de Ricardo Domeneck.

Nota 1, do título:

É possível, em alemão, ter substantivos derivados de numerais, para indicar a idade de alguém: die Dreiunddreißigjährige poderia ser traduzido como "a mulher de trinta e três anos", longo e explicativo demais. Optei por "ela, aos trinta e três", já que Enzensberger insiste em deixar claro o gênero da personagem no título.

Nota 2,  do verso "Insetos nas plantas à janela":


Blattläuse são insetos específicos, conhecidos em português como afídios, pulgões ou piolhos-das-plantas, e Zimmerlinde é uma planta do gênero Sparmannia, da família das Malvaceae. Não consegui encontrar nome popular em português. Para evitar um verso como "Afídios na Sparmannia" ou mesmo "Pulgões na Sparmannia" (como a planta é chamada nas páginas de botânica que visitei), optei pela generalização questionável de "Insetos nas plantas à janela". Sugestões são bem-vindas.

Abaixo, outra opção, dentro do que eu costumava chamar de transcontextualização, apesar de, hoje em dia, ter desenvolvido pavor alérgico ao prefixo trans para tais abstrações. Uma contextualização, digamos.

Ela, aos trinta e três

Ela havia imaginado tudo bem diferente.
Ainda com este Fusca enferrujado.
Uma vez, quase casou-se com um padeiro.
Antes, costumava ler Clarice, depois, Cabral.
Agora ela prefere resolver charadas na cama.
Dos homens, não tolera abusos.
Por anos foi petista, mas à sua maneira.
Nunca recortou cupons de desconto em jornais.
Quando pensa no Afeganistão, passa mal.
Seu último namorado, o intelectual, gostava de apanhar.
Vestidos de batique esverdeados, largos demais para ela.
Pulgões nas folhas da samambaia.
Na verdade, queria pintar, ou emigrar.
Sua tese, Conflitos religiosos no Nordeste, 1889
a 1930, e suas marcas na música popular:
bolsas, começos, e uma gaveta cheia de notas.
De vez em quando, sua vó manda-lhe dinheiro.
Danças acanhadas no banheiro, caretinhas,
horas de hidratante ao espelho.
Ela diz: pelo menos não morrerei de fome.
Quando chora, fica com cara de dezenove.

Hans Magnus Enzensberger, contextualização de Ricardo Domeneck.

§ - Nota, do verso "Antes, costumava ler Clarice, depois, Cabral":

O desafio é conseguir encontrar equivalentes com o maior número de implicações comuns possíveis. Creio que o par "Hesse/Handke" (fiz questão de  manter o jogo inicial das consoantes iguais) encontra algumas implicações/insinuações comuns em "Clarice/Cabral", mesmo que não a da diferença geracional. Após considerar a possibilidade "Graciliano/Gullar", que salvaria no entanto apenas o jogo visual-sonoro das consoantes iniciais e as diferenças geracionais, optei pelo jogo usado acima.

§ - Nota 2, do verso "Nunca recortou cupons de desconto em jornais"

No verso "Jamais tocou num cupom de racionamento", o alemão refere-se à luta por sobrevivência na Alemanha no período imediato ao fim da Segunda Guerra, quando  muito dependia dos cupons de racionamento para conseguir comida. Recomendo os filmes Germania anno zero (1948), de Roberto Rossellini, e Die Ehe der Maria Braun (1978), de Rainer Werner Fassbinder, para visualizar algo do período. Como minha ideia de contextualização refere-se não só à geografia cultural mas ao momento histórico, verti o verso como "Nunca recortou cupons de desconto em jornais".

§ Nota 3 -  Trotskista/Petista

Verter "Trotzkistin" por "petista" é escolha pessoal e, dessarte, questionável, como aliás praticamente tudo o que escrevo aqui, diga-se de passagem. Não pensem, porém, que eu esteja equivalendo politicamente as duas "filiações".

O original em alemão de Hans Magnus Enzensberger, o maior poeta público da Alemanha, em minha opinião, ainda em vida:


Die Dreiunddreißigjährige
Hans Magnus Enzensberger

Sie hat sich das alles ganz anders vorgestellt.
Immer diese verrosteten Volkswagen.
Einmal hätte sie fast einen Bäcker geheiratet.
Erst hat sie Hesse gelesen, dann Handke.
Jetzt löst sie öfter Silbenrätsel im Bett.
Von Männern läßt sie sich nichts gefallen.
Jahrelang war sie Trotzkistin, aber auf ihre Art.
Sie hat nie eine Brotmarke in der Hand gehabt.
Wenn sie an Kambodscha denkt, wird ihr ganz schlecht.
Ihr letzter Freund, der Professor, wollte immer verhaut werden.
Grünliche Batik-Kleider, die ihr zu weit sind.
Blattläuse auf der Zimmerlinde.
Eigentlich wollte sie malen, oder auswandern.
Ihre Dissertation, Klassenkämpfe in Ulm, 1500
bis 1512, und ihre Spuren im Volkslied:
Stipendien, Anfänge und ein Koffer voller Notizen.
Manchmal schickt ihr die Großmutter Geld.
Zaghafte Tänze im Badezimmer, kleine Grimassen,
stundenlang Gurkenmilch vor dem Spiegel.
Sie sagt: Ich werde schon nicht verhungern.
Wenn sie weint, sieht sie aus wie neunzehn.


in Die Furie des Verschwindens (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986).



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sábado, 19 de maio de 2012

"21-87", de Arthur Lipsett



Arthur Lipsett, "21-87" (1963)

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Arthur Lipsett nasceu em 1936, na cidade de Montreal, Canadá. Começou a trabalhar muito jovem no National Film Board of Canada, no departamento de animação. Sua obra inicial era dedicada à poesia sonora, trabalhando com a colagem de fragmentos para criar peças auditivas. Pouco depois, passa a usar a mesma técnica com imagens e a unir estas colagens visuais às suas colagens sonoras. O primeiro resultado foi o poema visual Very Nice, Very Nice (1962), uma peça visual-sonora de 7 minutos que o tornaria conhecido na América do Norte ao ser indicada ao Oscar como "Best Short Subject, Live Action Subjects". Seu próximo poema visual-sonoro foi o lendário 21-87, fazendo de Lipsett um dos artistas mais interessantes de uma década populosa destes. Este filme teria uma grande influência sobre diretores posteriores como Stanley Kubrick a George Lucas. O último se inspiraria em 21-87 para criar certos elementos de seu épico sci-fi Star Wars. Lucas declarou que sua ideia para "A Força" (The Force) vem deste poema-filme de Arthur Lipsett, retirado de um dos trechos sonoros em que uma das vozes diz que "people in the communication with other living things become aware of some sort of... Force... something behind this apparent mask which we see in front of us". Arthur Lipsett cometeu suicídio em 1986, pouco antes de completar 50 anos de idade.


O trabalho de Lipsett pode ser visto como uma ponte/elo entre o trabalho visual-poético-sonoro dos Lettristes parisienses (Isidore Isou, Marc O e Gil J. Wolman, entre outros) e as colagens visuais e sonoras dos filmes de Guy Debord (durante seu período "situacionista") e Jean-Luc Godard. Lipsett pode ser incluído entre os artistas e poetas que retomam certas estratégias das vanguardas do início do século XX, tenham eles religado o pós-guerra a DADA, como Isidore Isou com os outros Lettristes, Frank O´Hara com os nova-iorquinos, H.C. Artmann com os vienenses, John Cage, etc.; ou ao futurismo/construtivismo, como Augusto de Campos com os outros paulistanos ou Ian Hamilton Finlay com seus companheiros britânicos.

(Nota 1: Originalmente publicado na Modo de Usar & Co., a 20 de novembro de 2008)

(Nota 2: Também menciono o trabalho de Lipsett em meu artigo "Colagem, apropriação, redirecionamento".)


quinta-feira, 17 de maio de 2012

Brás Cubas & Malone


"Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria."


Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Machado de Assis.

§

"... for he was no more than human, than the son and grandson and greatgrandson of humans. But between him and those grave and sober men, first bearded, then moustached, there was this difference, that his semen had never done any harm to anyone."


Malone Dies (1951), Samuel Beckett.



segunda-feira, 14 de maio de 2012

When Saints Go Machine


Há pouco mais de uma semana, o quarteto dinamarquês When Saints Go Machine apresentou-se em Berlim. Foi uma noite muito bonita e tenho ouvido muito algumas de suas canções desde então, em especial esta "Parix", que mostro abaixo. Tive a sorte de ir ao concerto com uma amiga para quem eles haviam feito um remix, e pude conhecê-los no camarim. Além de tudo, rapazes muito educados. O poeta lírico da banda, o vocalista Nicholas Manuel Vonsild, me concedeu outra daquelas experiências em que pude vislumbrar um futuro possível para a poesia no novo milênio. Trobar leu, me deixa leve também.


Parix
Nicholas Manuel Vonsild

Bad dreams ricochet ricochet
Walking talking endlessly
Dancing dancing on my tongue
Paris scream avalanche avalanche
Talking talking in my sleep
Dancing dancing on my tongue (x2)

Where the road meets wild
And concrete meets the river
Young and wild shake and shiver
And your eyes talk to the blind

Where the wind made the house go tired
Fall to the ground from the voice you speak in
Bored when you’re not sleeping
Tired and awake

Bad dreams ricochet ricochet
Walking talking endlessly
Dancing dancing on my tongue
Paris scream avalanche avalanche
Talking talking in my sleep
Dancing dancing on my tongue

Cold where skin meets fire
Where letters burn your lips
Where reason seems careless
And the desperate lead the fight

And when she tells me she’s in love with me
In a room above light
You could pick me from a field of lies

Where the road meets wild
And concrete meets the river
Young and wild shake and shiver
And your eyes talk to the blind

Where the wind made the house go tired
Fall to the ground from the voice you speak in
Bored when you’re not sleeping
Tired and awake

Bad dreams ricochet ricochet
Walking talking endlessly
Dancing dancing on my tongue
Paris scream avalanche avalanche
Talking talking in my sleep
Dancing dancing on my tongue 


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quarta-feira, 9 de maio de 2012

Lendo "X + Y: uma ode" na Casa Refugio Citlaltépetl, na Cidade do México, em dezembro de 2011

Abaixo, vídeo com minha leitura do poema "X + Y: uma ode" na Casa Refugio Citlaltépetl, na Cidade do México, em dezembro de 2011. A leitura foi organizada por Paula Abramo e o Centro Cultural Brasil-México. Na mesa, três dos meus poetas mexicanos favoritos: Luis Felipe Fabre, Julián Herbert e Minerva Reynosa, assim como o argentino Ezequiel Zaidenwerg, e Paula Abramo moderando. Foi uma noite linda, alguns dos melhores poetas com quem já tive a honra de ler. O video foi-me enviado pelo poeta mexicano Alejandro Albarrán, um dos melhores poetas da nova geração latino-americana. Agradeço a todos com muita saudade e todo o meu respeito.


 



X + Y: uma ode

An refert, ubi et in qua arrigas?
Suetônio

Houvesse nascido
mulher, já teria dado
à luz sete
filhos de nove
homens distintos.
Agora, vivo entretido
com as teorias
a explicarem meu gosto
por odores específicos,
certa distribuição de pelos
nas pernas alheias,
os cabelos na nuca
e no peito
sem seios, ainda que aprecie
certas glândulas mamárias
de moços e rapazes
com aquela dose
saudabilíssima
aos meus olhos de hipertrofia.
Medito sobre as conjecturas
de terapeutas,
os relatos de uma Persona
partida, Édipo subnutrido,
sem modelo
na infância de um lendário
Laio
exemplar, lançando-me
a uma suposta
busca entre amantes
por mim mesmo.
Tentei, sem o menor
sucesso,
por dias induzir-me à ereção
diante do espelho.
Concluí não ser tão
eréctil meu ego.
Ouvi com atenção
a fórmula
sobre pai ausente e mãe
dominante a gerar rainhas
de paus, espadas e copas
lassas e loucas,
mas, apesar do meu histórico
de progenitora histérica
e procriador estóico,
meus irmãos
tão afeitos e afoitos
diante dos clitórides
embromam a estatística.
Li todas as reportagens
sobre a possível queerness
na boutique do código
genético, esta quermesse
das afinidades seduzidas,
e ri com o amigo
que certa vez, em chiste,
nomeou-me dispositivo
biológico
de uma Natureza em estresse,
medicando o hipercrescimento
populacional. Não mentirei dizendo
que não temo e tremo
com o perigo do inferno.
Cheguei, contudo, à conclusão
de que minha passagem
só de ida
ao Hades
não se dá
apenas pela inclinação
algo obcecada
de minha genitália
pelo caráter heterogêneo
dos vossos gametas.
Houvesse
nascido fêmea,
já teria dado à luz onze
filhotes de treze
machos diferentes,
e, de puta,
assegura
o Vaticano (e mesmo Hollywood),
não se conhece ascensão,
tão-somente queda.
Portanto, poeta, pederasta e puta,
sigo com meus olhos pela rua
cada portador
desta combinação gloriosa
de cromossomas
X e Y,
chamem-se Chris ou Absalom,
com suas espaçadas proporções
entre os buracos
do crânio, a linha que se forma
entre orelhas e ombros,
as asas de suas omoplatas
e a coifa dos rotadores,
as simetrias volubilíssimas
entre as extremidades
excitantes e excitáveis
como nariz, pênis e dedos,
o número de pelos
entre o umbigo
e ninho púbico,
o formato dos dentes
e seu espelhamento
em diâmetro
nos pés e suas unhas.
Se andam como comem,
se bocejam como riem,
se bebem como tossem,
se fodem como dançam.
A absoluta falta de mistério
em alguns deles, incapazes
da dissimulação famosa
de certas personagens
literárias femininas
do século XIX.
Neles, é oblíqua
somente a ocasional
ereção inconveniente.
Constrangem-me
estas confissões,
mas cederia certos direitos políticos
por algumas dessas cristas ilíacas
já presenciadas em praias, ao sol,
e abriria mão de uma ida às urnas
este inverno por esta ou outra nuca.
E veja só como o planeta
insiste na demonstração empírica
dessa abundância de músculos
e seus reflexos
cremastéricos:
neste exato momento,
enquanto escrevo este textículo,
entra no café, em pleno Berlimbo,
um desses exemplares de garoto
canhestro e canhoto,
o boné cobrindo meio rosto,
prototipagem de barba
e bigode, calças
que me catapultam a fantasias
com skateboards como props,
sobrancelhas feito caterpillars
sitiando os olhos com promessas
de delícias e desfaçatez épicas.
Seu tênis é bege;
ao tirar o suéter, vê-se
a sua escala de Tanner.
Sua Calvin Klein.
Bege fico eu, adivinhando que pele
cobre seus joelhos, seus calcanhares.
Sonho o sexo biônico e homérico,
algo entre Aquiles e Pátroclo,
interpretados em nosso mundo
por Brad Pitt e Garrett Hedlund,
potros xucros como búfalos
ou bárbaros.
E este mundo está cheiíssimo
dessas distrações quase sádicas
para meu masoquismo
voluntarioso e em vício,
que impedem que componha
a minha Divina Commedia,
meu Paradise Lost.
Perdoe, Sr. Cânone,
esta minha tosca e parca
contribuição lírica à safra
de seus contemporâneos,
mas não me catalogue
entre as farsas, sátiras.
Pois não é, consinto, culpa
das massificações capitalistas
esta minha attention span
pouco renascentista,
mas desta explosão de cântaros
plenos de testosterona púbere
a ir e vir nos espaços públicos.
Quando passam, petiscos,
finger food em arrogância
cocky e garbosa, murmuro
na cavidade oca
da boca:
"Deviam ser proibidos
seus exageros de lindos".
Meu fim será nestes botecos
do Berlimbo,
entupindo-me de café preto
e esperando suas ocasiões
para escrever poemas
que vos celebrem, atores
principais deste longo pornô
em que me vi concebido, gerado
e expelido, coadjuvante
contente e dublado.
Agradeço-vos a oportunidade
de fazer do advérbio sim
uma interjeição obscena.
Aos outros, juro que não se trata
de encômio, louvor ou gabo.
Quisesse eu fazer apologia,
talvez dissesse
haver mais elegância
em "Sê meu erômenos
e eu serei teu erastes"
do que, ao cangote,
"Mim Tarzan, você Jane".
Não busco novos adeptos
que me façam concorrência.
Boys will be boys,
há quem diga, e, ora,
não vou dizer que espero
de todo moço
que seja Mozart
ou Beuys.
Haverá os momentos de caça
e rendição felizes, as poucas
vezes de sorte
em que seremos camareiros
de algum moço pasolínico,
com quem se poderá, enfim,
fazer o cama-supra, meia-nove
e então discutir no pós-coito
outros conceitos hifenizados
ao som de Cocteau Twins,
listar as guitarras de 1969,
nosso horror a Riefenstahl,
a obsessão por Fassbinder,
e oxalá sentir em meio a tal
loa uma nova ereção
cavucar
as malhas entre as dobras
do edredão
enquanto lemos poemas de Catulo,
Kaváfis.
Quando chegarem os bárbaros,
me encontrarão na cama;
que venham porém armados,
pois hei de estar acompanhado,
e em riste as nossas lanças.

Berlim, 25 de outubro de 2010

Publicado em Ciclo do amante substituível (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012).


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terça-feira, 8 de maio de 2012

Gossip. Inícios, reinícios.

Há seis anos, em julho de 2006, tive uma das noites mais espetaculares em minha vida como DJ: fui convidado a tocar no Berghain, o clube mais importante de Berlim, como abertura para a noite do concerto da banda Gossip. Hoje à noite, a banda volta a tocar no mesmo clube, e os envolvidos naquela linda noite de 2006 decidiram que era hora de um revival, chamando-me para mais uma vez abrir para a banda em Berlim. Hoje, às 20:00, inicio meu set, uma hora antes da banda subir ao palco. Abrirei com Diamanda Galás e Mary Margaret O´Hara, seguindo em seguida um caminho por entre minhas artistas favoritas (sim, pretendo tocar quase exclusivamente a música de mulheres), como Kate Bush, Cocteau Twins, Planningtorock, Grimes, Creep, Anika, Nite Jewel, THEESatisfaction e outras. Mais tarde, festejamos juntos numa aftershow party, num outro clube, onde pretendo começar um novo projeto. Noite de relembranças e novos inícios. Que os amigos que passarem por aqui torçam por mim. Ando necessitado de inícios. Chega de fins.


    



Gossip, com a canção "Heavy Cross". 


§ 

 Abaixo, o cartaz da festa depois do concerto. 
Para quem não sabe, meu nome de guerra como DJ é Kate Boss.


domingo, 6 de maio de 2012

Samuel Beckett - "Krapp's Last Tape" (com o ator Patrick Magee)



Krapp´s Last Tape é uma peça de um ato, escrita em inglês por Samuel Beckett (especialmente para o ator Patrick Magee), em 1958. Foi publicada pela primeira vez no verão do mesmo ano pela revista Evergreen Review, e mais tarde em Londres no volume Krapp’s Last Tape and Embers (1959) e, em Nova Iorque, no volume Krapp’s Last Tape and Other Dramatic Pieces (1960). É um dos meus favoritos dentre os textos de Beckett, autor que exerceu uma influência forte sobre minha textualidade, talvez mais marcadamente em a cadela sem Logos (SP / RJ: Cosac Naify / 7Letras, 2007), em especial com seus textos tardios, borrando qualquer fronteira entre o narrativo, o poético e o dramático. A interpretação de Magee é brilhante.


quarta-feira, 2 de maio de 2012

A poesia perante o genocídio: três poemas de Heimrad Bäcker

Esta tarde, o poeta André Vallias postou numa das redes sociais um artigo da revista Jacket2, que discute a poesia do austríaco Heimrad Bäcker (1925 - 2003). O pequeno artigo chama-se "Poetic representations of the Holocaust". Trouxe-me à mente as "traduções / anotações" que fiz de três poemas visuais/textuais de Heimrad Bäcker em 2008, para a Modo de Usar & Co., que reproduzo abaixo. Como estamos vivendo a situação atual em que o Governo de Dilma Rousseff mostra-se disposto a colocar-se às portas de cometer genocídio no Brasil, que será a consequência do ecocídio causado pela construção inconstitucional da hidrelétrica em Belo Monte, quis trazer a questão a este espaço, no mesmo espírito de "I have nothing to say / so I let others say it / and that´s poetry / as I need it". É assustador ver o Governo da ex-guerrilheira assumir caráter desenvolvimentista irresponsável, como o da Ditadura Militar. Não se pode esquecer, neste caso específico, que Belo Monte foi idealizada pela Ditadura. Se a alguém parecer exagero o uso da palavra "genocídio" neste contexto, reproduzo aqui as palavras do poeta Pádua Fernandes:

"A Convenção da ONU para a prevenção e a repressão do crime de genocídio foi celebrada em 1948 e o Brasil dela participa desde 1952. A lei federal nº 2889, que tipifica o crime, é de 1956: 


Art. 1º 
Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: 
a) matar membros do grupo; 
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; 
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; 
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; 
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo; 


Não consigo entender porque ela jaz quase inaplicada enquanto a matança de índios permanece firme no Brasil, sob ou sobre este governo que vê o meio-ambiente como ameaça à sustentabilidade." - Pádua Fernandes, in O Palco e o Mundo, 19 de abril de 2012.

A postagem abaixo, com os poemas de Heimrad Bäcker, poderia levar-nos a várias questões: a possibilidade de representação do horror em linguagem poética, assim como a capacidade horripilante que o humano possui de racionalizar o horror. Não estou dedilhando oxímoros. O impensável teve papel fundamental no sucesso do plano de extermínio nazista, já que a grande maioria das vítimas entregou-se nas mãos dos algozes, mesmo quando ouviam as assustadoras histórias ("boatos") das matanças, pois era-lhes simplesmente impensável que outros seres humanos fossem capazes do que o foram, tão eficiente e energicamente, os nazistas e seus colaboradores internacionais (na França - pesquise "Vélodrome d´Hiver / 1942" -, na Áustria, na Hungria, etc ). Hannah Arendt já escreveu sobre isso de forma tocante e inteligente. É difícil não pensar aqui na última proposição de Wittgenstein no Tractatus (para o austríaco, não há diferença entre o impensável e o indizível): "Sobre o que não se pode falar, deve-se calar" (Wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen). Abaixo, vemos como Heimrad Bäcker lidou com o dilema.


Heimrad Bäcker (1925 - 2003) 
por Ricardo Domeneck 
para a Modo de Usar & Co. 
11 de maio de 2008


Heimrad Bäcker nasceu em Viena, Áustria. Estudou filosofia, sociologia e filologia germânica. Mudou-se mais tarde para Linz, onde passou a lecionar. Iniciou um trabalho de pesquisa histórica nos arquivos nazistas austríacos na década de 50. Começa a publicar seus textos na década seguinte e, entre 1968 e 1992, foi editor da revista neue texte, mais tarde transformada em editora, dedicada à literatura experimental. O poeta morreu em Linz, em 2003.

A Modo de Usar & Co. apresenta 3 poemas visuais de Heimrad Bäcker, da década de 80, criados em sua pesquisa histórica sobre o extermínio de judeus pelos nazistas. Sua escolha é pelo silêncio pessoal de respeito e a apresentação de documentos que gritam por si mesmos. Os três poemas são chamados de "epitáfios".

Ontem, 10 de maio de 2008, completaram-se 75 anos da noite em que livros foram queimados numa grande fogueira em Berlim, na Bebelplatz, na frente da Universidade Humboldt. O tom da "comemoração" e memorial do evento aqui na Alemanha tomou, em alguns aspectos e em meio ao vozerio de boas intenções, o sussurro do eufemismo e da banalização espetacular, encabeçados pela epígrafe repetida inúmeras vezes neste contexto: a declaração do poeta judeu Heinrich Heine (1797 - 1856), que foi impedido em seu tempo de exercer a profissão que escolhera por ser judeu e morreu no exílio, banido por seu ativismo político, de que "wo man Bücher verbrennt, verbrennt man auch am Ende Menschen", ou seja, "onde se queimam livros, acabarão por queimar por fim também pessoas." Os poemas de Heimrad Bäcker trazem de forma clara à consciência política e poética esta causalidade expressa na frase de Heine, que se fez verdadeiramente histórica na Alemanha nazista. Outra data se faz importante neste contexto, que apresenta os trabalhos de um poeta austríaco: em 2008 completam-se os 60 anos da anexação da Áustria pelo Terceiro Reich de Hitler, anexação que foi celebrada pela grande parte dos austríacos da época, prontos para colaborar com o projeto nazista. Após a guerra, o período 1938 - 1945 foi relegado ao eufemismo dos chamados "anos alemães". Esta hipocrisia seria fortemente combatida por poetas e escritores austríacos do pós-guerra, como Thomas Bernhard, Ingeborg Bachmann, H.C. Artmann e Heimrad Bäcker.


epitáfio (1) – 1989

documentos da história dos judeus de frankfurt (1933-1945), capítulos I 1 – XIV 15.

Nota do tradutor: A expressão "nach dem osten nach dem osten" ao final deste primeiro poema pode ser traduzida como "para o leste para o leste".





epitáfio (2) – 1989

texto rotativo com abreviações dos nomes dos campos de concentração alemães de dachau, sachsenhausen, buchenwald, mauthausen, etc. (usadas para comunicação interna)





epitáfio (3) – 1986

plano ferroviário nr. 587 da direção geral da ostbahn (ferrovia do leste), do dia 15 de setembro de 1942: “trem especial para migrantes”


Notas: Sedziszow, Szydlowiec e Kosienice são cidades do interior da Polônia. O campo de extermínio de Treblinka é o mais conhecido dos quatro campos de extermínio da chamada “Operação Reinhard”, nome dado pelos nazistas para o programa de extermínio dos judeus poloneses. Treblinka foi o destino da grande maioria dos judeus do Gueto de Varsóvia. Entre julho de 1942 e setembro de 1943, cerca de 750.000 judeus foram assassinados no campo. Em agosto de 1943, cerca de 1.500 prisioneiros judeus iniciaram uma revolta. Tomando armas de pequeno porte e querosene, conseguiram incendiar a maior parte dos prédios do campo. Alguns soldados nazistas foram mortos na revolta, mas ao fim apenas algumas dezenas dos prisioneiros sobreviveram. O extermínio estava muito próximo de ser completado, mas após a revolta o campo de Treblinka tornou-se inoperável. O campo foi oficialmente fechado em novembro de 1943, após o fuzilamento do último grupo de prisioneiros (cerca de 40 meninas). O diretor do campo de extermínio de Treblinka, o austríaco Franz Stangl, fugiu para o Brasil, onde viveu por quase duas décadas usando seu nome verdadeiro e até mesmo registrado oficialmente no Consulado da Áustria em São Paulo, onde viveu. Só seria extraditado em 1967 e condenado pelo assassinato de milhares de homens, mulheres e crianças, assassinatos sobre os quais comentou de forma leviana: “Eu apenas fiz meu trabalho.”





9228 de sedziszow para treblinka

9229 trem vazio

9230 de szydlowiec para treblinka

9231 trem vazio

9232 de szydlowiec para treblinka

9233 trem vazio

9234 de kosienice para treblinka

9235 trem vazio



tradução e notas de Ricardo Domeneck

terça-feira, 1 de maio de 2012

Traduzindo Hans Magnus Enzensberger (I): "A merda"

A merda

Sempre ouço falar dela
como se de tudo tivesse culpa.
Vejam, que macia e modesta
ela se posiciona sob nós!
Por que então maculamos
seu bom nome
e o emprestamos
ao Presidente dos EUA,
aos policiais, à guerra,
e ao capitalismo?

Como é transitória
e quão duradouro
aquilo a que doamos seu nome!
Ela, a transigente,
deixa-se levar na ponta da língua
quando falamos do explorador!
Ela, que nós esprememos,
tem agora ainda que exprimir
nossa ira?

Ela não nos aliviou?
De constituição macia
e inerentemente dócil,
de todas as obras dos homens
é provável que seja a mais pacífica.
O que ela fez contra nós?

(tradução de Ricardo Domeneck)

:


Die Scheisse
Hans Magnus Enzensberger

Immerzu höre ich von ihr reden
als wäre sie an allem schuld.
Seht nur, wie sanft und bescheiden
sie unter uns Platz nimmt!
Warum besudeln wir denn
ihren guten Namen
und leihen ihn
dem Präsidenten der USA,
den Bullen, dem Krieg
und dem Kapitalismus? 

Wie vergänglich sie ist,
und das was wir nach ihr nennen
wie dauerhaft!
Sie, die Nachgiebige,
führen wir auf der Zunge
und meinen die Ausbeuter.
Sie, die wir ausgedrückt haben,
soll nun auch noch ausdrücken
unsere Wut? 

Hat sie uns nicht erleichtert?
Von weicher Beschaffenheit
und eigentümlich gewaltlos
ist sie von allen Werken des Menschen
vermutlich das friedlichste.
Was hat sie uns nur getan?

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