quarta-feira, 30 de junho de 2010

COMO MORREM OS POETAS: Segunda parte: "A morte, sempre privada, também pública"

Possível local do fuzilamento de Federico García Lorca


É sempre fácil e tentador circundar de glamour a vida miserável e a morte triste de nossos poetas, especialmente quando se é um jovem poeta a sonhar com o que sonhamos ser uma vida-de-poeta. Naquele poema de Jack Spicer, que, como seu conterrâneo Edgar Allan Poe, bebeu até ser encontrado desacordado numa sarjeta e morreu mais tarde em um hospital público, praticamente indigente, ele fala sobre "The death / That young men hope for."


Thing Language
Jack Spicer

This ocean, humiliating in its disguises
Tougher than anything.
No one listens to poetry. The ocean
Does not mean to be listened to. A drop
Or crash of water. It means
Nothing.
It
Is bread and butter
Pepper and salt. The death
That young men hope for. Aimlessly
It pounds the shore. White and aimless signals. No
One listens to poetry.


Língua Coisa: Este oceano, humilhante em seus disfarces / Resiste a tudo. / Nem um sintoniza na poesia. O oceano / Emite ondas para a sintonia de ninguém. Gota / Ou tromba d´água. Omite / Significados. / É / Manteiga e pão / Pimenta e sal. A morte / Que os jovens almejam. Sem mira / Alveja as margens. Sinais sem mira, alvos. Nem / Um sintoniza na poesia. (tradução de Ricardo Domeneck)

§

Mas Wittgenstein escreveu, em uma de suas proposições que parecem indicar que só chegamos à verdade pela tautologia e então por suas implicações, que a morte não é um evento da vida, que não vivemos para ter a experiência da morte.

Nossa morte, então, pertence aos outros. Talvez a mais íntima de nossas experiências possa tão-somente ser experimentada por outrem. Ou seja, a nós mesmos isso significa que a própria morte pertence a ninguém.

Entre os muitos poemas elegíacos escritos por poetas para poetas, um dos meus favoritos é sem dúvida "In Memory of W. B. Yeats", de W.H. Auden. Imortalidade de poeta será isso?

Now he is scattered among a hundred cities
And wholly given over to unfamiliar affections,
To find his happiness in another kind of wood
And be punished under a foreign code of conscience.
The words of a dead man
Are modified in the guts of the living.


(fragmento de "In Memory of W. B. Yeats", de W.H. Auden)

§

Anjo nenhum desceu à terra para erguer Rilke aos céus. Benjamin morreu na fronteira, o Anjo da História o observou como observou a tudo, de olhos arregalados, assustados. Trasladados foram apenas Enoque e Elias, e há teólogos que afirmam que eles são as duas testemunhas que serão mortas durante o Apocalipse, pois também eles terão que passar pelo vale da sombra da morte. Como diz a canção meio assustadora de PJ Harvey com John Parish, chamada "Taut": "even the Son of God had to die, my darling."



("Taut", de PJ Harvey & John Parish)

§

Toda morte é então privada e pública? Algumas parecem ter se tornado símbolos do século, e talvez seja apenas cruel nossa necessidade de alegorizar estas mortes. Penso, por exemplo, em uma das mais famosas mortes-de-poeta do século XX, a de Federico García Lorca. Aquele que escreveu um dos poemas mais bonitos do século passado para lamentar a morte de alguém, em seu "Llanto por la muerte de Ignacio Sánchez Mejías", com aqueles versos lindos "No te conoce el toro ni la higuera, / ni caballos ni hormigas de tu casa. / No te conoce el niño ni la tarde / porque te has muerto para siempre." Ele próprio, Lorca, mais tarde fonte de inspiração para novos lamentos.

§

Alguém terá sido tentado, ao fim daquele ano, a ver em retrospecto na morte de Manuel Bandeira, no dia 13 de outubro de 1968, um augúrio tristíssimo de que tudo ainda haveria de ficar pior e mais horrendo no país, principalmente com o que seria escrito naquela sexta-feira 13, em dezembro de 1968, não um poema, mas o AI-5? Mas o que pode um poeta contra um governo, quando o poema de Auden a Yeats já nos alertava que:


...poetry makes nothing happen: it survives
In the valley of its making where executives
Would never want to tamper, flows on south
From ranches of isolation and the busy griefs,
Raw towns that we believe and die in...


Será que a única imortalidade ao escrever poemas é a de não ser, quando morto, carta completamente fora do baralho? O poeta morre e torna-se carta na manga dos vivos? Mesmo os que estão ocupados demais, absortos demais na vida?

Momento num Café
Manuel Bandeira

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes da vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.


Talvez possamos apenas nos lembrar de outros versos do poema de Auden a Yeats, que dizem, se poetry makes nothing happen, ao menos "it survives, / A way of happening, a mouth." Isso sempre me intrigou: que Auden dissesse da poesia que ela makes nothing happen, mas que é, ao mesmo tempo, a way of happening.

§

Algumas mortes, no entanto, parecem carregar tanto magnetismo em sua ânsia por narrativa, que é difícil não buscar nelas FIGURAS, mensagens-em-garrafa ao oceano dos tempos para entendermos nosso FIM. Penso então em um poeta desconhecidíssimo no Brasil, o húngaro Miklos Radnóti, que, prisioneiro em um campo de concentração nazista, carregou no bolso de sua camisa os últimos poemas que escreveu, até ser fuzilado por um soldado alemão. Mais tarde, ao exumarem a vala comum, puderam reconhecer o corpo desfigurado de Miklos Radnóti apenas pelos poemas que carregava no bolso da camisa.

Mas esta é uma experiência histórica IRREDUTÍVEL, não pode ser transposta em metáfora ou alegoria de uma outra experiência. A forma como a poesia de autores como Radnóti foi metaforizada e alegorizada, no Brasil por exemplo, não está longe de poder ser vista como o ato de barbárie de que falou Adorno. Refiro-me à alegorização por que a poesia destes autores passa, transformando-se em metáfora de algum sofrimento humano anônimo. A poesia e escrita de Simone Weil, Paul Celan, Edmond Jabès, Rose Ausländer, Dan Pagis, Etty Hillesum ou Primo Levi, entre outros artistas e autores do que passaria a ser estudado como "Literatura do Holocausto", são, como já disse e repito, experiências históricas irredutíveis, indivisas, que não podem ser lidas ou saqueadas como metáforas ou alegorias para a tal de "condição humana". Isso sim poderia ser chamado de ato de barbárie, especialmente se feito por poetas em busca da perdida "aura de autoridade", aquela auréola que Baudelaire perdeu na rua e que, ouso dizer, sem a qual vivemos e morremos melhor.

And so will I wonder...?
Miklos Radnóti (translated by Gina Gönczi)

I lived, but then in living I was feeble in life and
always knew that they would bury me here in the end,
that year piles upon year, clod on clod, stone on stone,
that the body swells and in the cool, maggot-
infested darkness, the naked bone will shiver.
That above, scuttling time is rummaging through my poems
and that I will sink deeper into the ground.
All this I knew. But tell me, the work--did that live on?



Miklos Radnóti (1909 – 1944)

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Um comentário:

Sebastião Ribeiro disse...

Valeu a pena esperar essa segunda parte. Agradecido pelo serviço que coisas como "The words of a dead man/
Are modified in the guts of the living." nos trazem.

Até Domeneck, obrigado.

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