domingo, 26 de junho de 2011

Amigos em revistas: Marília Garcia e outros poetas brasileiros em uma antologia da revista francesa "Action Poétique"

Capa do número da Action Poétique com a antologia de poesia brasileira contemporânea



Action Poétique é uma das mais antigas revistas de poesia em atividade na França, fundada em 1950 em Marselha. Seu editor-chefe é o poeta Henri Deluy (n. 1931). O último número traz uma pequena antologia de poesia brasileira contemporânea, Poètes du Brésil aujourd´hui, e inclui poemas de Marília Garcia, Ricardo Aleixo, Márcio-André, Fabrício Carpinejar, Marcelo Ariel, Simone Brantes, Paula Glenadel, Karinna Gulias, Nora Fortunato e Eduardo Sterzi. Alguns deles são verdadeiramente poetas que respeito.


§


Marília Garcia



Como celebração, deixo vocês com dois dos meus poemas favoritos de Marília Garcia, que está entre os vários poetas que respeito na lista acima, mas também por ser uma poeta com quem tenho muitas afinidades est-É-ticas. O trabalho dela sempre me pareceu um representante corajoso na poesia contemporânea, tão obcecada por precisões, daquilo que Marjorie Perloff chamou de "poética da indeterminação". Sempre tive esta afinidade com seu trabalho, este seu questionamento da objetividade fictícia dos dogmas crítico-poéticos brasileiros das últimas décadas, através desta exposição e desnudamento do que eu chamaria de uma realidade editável.

Nós compartilhamos várias escolhas críticas. Amigos muito sérios e inteligentemente preocupados com parâmetros infalíveis de qualidade literária talvez dissessem que nós dois somos apenas indulgentes com os mesmos autores. Talvez. Será um equívoco o prazer que encontramos em livros como Un Test de Solitude (2001), de Emmanuel Hocquard? Nosso interesse por poetas como Charles Pennequin, Nathalie Quintane e Pierre Alferi? Esta insistência que compartilhamos em encontrar implicações poéticas em tautologias e listagens absurdamente cotidianas? Por nos emocionarmos com o que há de impreciso na observação da experiência?

Nós captamos parcialmente. O poeta é a antena seletiva e ligeiramente distraída da raça. A nós só é dado ver em parte. Conhecemos apenas fragmentos das pessoas, como nos poemas de Marília, em que somos expostos a vislumbres de biografias alheias, vivas, talvez fictícias, editáveis. Nossa vida é editada pela memória, pela atenção.

Foi durante uma das edições do Festival de Cinema de Berlim que espalharam pela cidade um cartaz, trazendo uma frase de um cineasta (já não me lembro do nome), que dizia que a diferença entre o cinema e a vida é que a vida não se pode editar. Era algo assim, cito de memória. Eu entendo o que ele quer dizer, mas sempre me pareceu ligeiramente falsa esta proposição, pois nós editamos sim a vida, pela nossa atenção deficitária que dá tanta importância a uma única pessoa em meio à multidão, pelo foco do nosso desejo, pelas prioridades das nossas expectativas.

O trabalho de Marília Garcia me emociona pois, para mim (trata-se de visão muito subjetiva e pessoal), demonstra esta aceitação da impossibilidade da ambição de abarcar a existência e sua experiência de maneira, digamos, imperialista ou totalitária. Trata-se de uma poesia que aceita o contextual, o limitado, a visão parcial. Sabe que atrás de nossos corpos, logo à nuca, há ainda paisagem, paisagem não vista.

Neste aspecto, o título do primeiro poema é muito apropriado: trata-se da tradução francesa do título de um poema de Jack Spicer (1925 - 1965), "The territory is not the map". Eu sorrio muito com as implicações deste título. Sim, Marília e eu, ouso dizer, compartilhamos deste desejo por uma poética de implicações. Daí talvez nossa indulgência, diriam os que são mais prudentes que a gente, nossa indulgência inocente com tautologias. Jack Spicer entendia bem disso.

Eu viria a dialogar com este poema de Marília (que eu lera em manuscrito) e com o de Spicer em um dos fragmentos do poema-livro "Dedicatória dos joelhos", incluído em minha segunda coletânea, a cadela sem Logos, lançada juntamente com o livro de Angélica Freitas e o de Marília (na coleção Ás de Colete da Cosac Naify), 20 poemas para o seu walkman (2007). Trata-se do seguinte fragmento:


o real é a
decoração do momento
& a cidade não é o
mapa mas o mapa
está correto
pois entre os sujeitos
que o
parto consagra estão
apenas os sujeitos com
corpo
do centro da fertilidade
da mãe do acaso
o ensinamento necessário
da devastação completa
da decepção do
salto no escuro na
crença dos
braços abertos do
chão do colo
a diferença básica
entre
abraão medéia
o Logos já não
me procura
mais meu
filho


(fragmento de "Dedicatória do joelhos", fragmento que dediquei a Marília Garcia,
incluído em a cadela sem Logos, São Paulo: Cosac Naify, 2007)


Estas preocupações, que acredito compartilhar com ela, talvez levem nosso trabalho a parecer demasiado oblíquo para algumas pessoas. É que enquanto muitos se preocupam prudente e exclusivamente com a concretude do signo, em muitos textos sinto-me compartilhar com Marília Garcia justamente o interesse pela opacidade da linguagem. Nós somos mesmo muito imprudentes.



Marília Garcia lê os poemas "plano b" e "39°34´13.26´´N 2°20´49.50´´E (diz em catalão)"

O segundo poema dela que mostro aqui chama-se "Classificação da secura" e é também um de meus favoritos. Não consigo deixar de ler em parte deste poema uma sátira à precisão objetivizante dos cabralinos e seus desertos e pedras e sequidões.

Eu continuo vendo como uma espécie de sabedoria – que me comove, a de poetas que parecem aceitar, de forma tão cândida, que "Vivianne est Vivianne", como escreveu Hocquard em um poema de amor. Que "o nível do mar / é um engano" e que "a voz esconde o que realmente quer dizer", como escreveu Marília Garcia.

E ela talvez mal saiba como me comove quando escreve no poema "plano b" (Deus meu, as implicações deste título!):

"saber se está triste há um ano / ou há 24 horas // (de volta, passa a colecionar / objetos. a vingança começa num / aquário / é como furar a realidade com a / realidade, dizia, ficar no quarto medindo o / nível do mar para descobrir / onde pôr os peixes)".


Marília, eu estou em espírito neste exato momento em Santa Teresa, sussurrando em seu ouvido: "Vivianne est Vivianne".


§


DOIS POEMAS DE MARÍLIA GARCIA
extraídos do livro 20 poemas para o seu walkman (SP: Cosac Naify, 2007)



Le pays n´est pas la carte,


pensa bem mas
se tivesse as ruas quadradas
teria ido a outro café, teria dito tudo de
outro modo e visto de
cima a cidade em vez de se
perder toda vez
na saída do metro, não é desagradável
estar aqui, é apenas
demasiado real
diz com cílios erguidos
procurando um mapa


II


não é o avião em rasante sobre
a água e nem o corpo
na janela semi-aberta
vendo o desenho
dos carros embaixo — não comenta nada
porque prefere armar planos
em silêncio
(estaria sonhando
com colinas?)


III


de lá manda longas
cartas descrevendo o país,
os terremotos e a forma da cidade.
pode me dizer que nunca se
espanta mas não percebe que
caminha perguntando:
é de plástico a cabine? é sua voz
na gravação? é um navio no
horizonte? pode ser apenas
uma margem de erro mas
não pensa nisso
com frequência
(pode ser apenas a janela
aberta que carrega os papéis)


§


Classificação da secura
Marília Garcia

I


agora já é quase amanhã mas queria
dizer apenas que é muito
tarde: acrescentar quatro horas ao relógio
indica que já é depois. lá é sempre
depois. parecia um nome
italiano com aquele som ecoando e a
resposta em outra língua mostrava
a cor das linhas no mapa, "é lilás", para
não dizer algo preciso
para não terminar: com ela
saio cedo todos os dias. fico de
vez em quando escondido
no porto. tomarei
o transmediterrâneo e comerei
calçots,
até chegar o instante antes
do instante, momento em que vê o relógio
e diz: não. já conhece todos os erros
do sistema e a retina derretendo
sempre que levanta
para sair dali.
(precisão é o retângulo do degrau
inferior.)


II


alguém que não consegue se mover
e uma semana de vozes cortadas, deve
se acostumar aos movimentos em câmera
lenta, à descida pela escada em
espiral:
recorta os sons de cada
quarto e apaga as perguntas que
mais detesta responder. como aquela
noite no ônibus, ruídos do rádio e
pedaços de frases atiradas,
sempre girando as horas.
ver a paisagem
sem ela e precisar o tamanho da ausência
com poucos dados — sabe que as baleares ficam
do outro lado do mar, que custa chegar
anos depois e dizer. ergue os olhos para
fixar o que tem ali e não perder
de vista a secura.





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2 comentários:

Anônimo disse...

ricardo querido,
estou ouvindo este seu sussurro aqui do lado me dizendo que "viviane est viviane"
mas também todo o estrondo
que essas suas palavras tão lindas causam em minha realidade editável.
obrigada por estar tão perto.
um beijo,
marília

Anônimo disse...

Die kritischen bzw. kritisch anmutenden Schriften in diesem Blog stellen eine Gattung an und für sich dar, die kritische Schriften des R. Domenenecks (und obwohl ich an dieser Stelle ein kleines bisschen scherzen möchte, um nicht all zu pathetisch zu klingen, spreche ich hier, grundsätlich sin ironía, en el fondo hablo en serio): es sind analystischem, kritische, teils theoretische Schriften, die klar strukturiert sind und die immer versuchen in ziemlich leidenschaftlicher Art und Weise eine These (or -ish) zu verteidigen oder zu widerlegen.

Und doch haben sie eine gewisse Textur, eine merkwürdige Qualität: lirismo, emoción, un cierto candor también, das Gefühl, das dem Leser nicht verlässt, zu wissen jemand sagt "hier bin ich, und das will ich sagen, und ich werde es mit aller Kraft und allen den zu meiner Verfügung stehenden Ressourcen und Mittel erklären und darstellen"... Mut könnte wohl man das nennen...

Dieser Eintrag fand ich wunderschön: hermosos textos de la autora, a la que es un placer escuchar... y un emocionante ensayo crítico/poético a la manera Domeneck ;-).

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