Passei a última semana lendo e relendo, com admiração e entusiasmo crescentes, uma antologia poética de Bernadette Mayer (A Bernadette Mayer Reader, New York: New Directions, 1992), poeta norte-americana sobre a qual já havia escrito aqui (veja a postagem de 2011 ao fim). Amanhã quero comentar algo mais sobre ela mas, pensando no dia de hoje, quis finalmente postar a tradução de "Eve of Easter" na qual trabalhei nos últimos dias, o primeiro poema dela que ouvi no excelente vídeo abaixo, de 1978. Confesso não estar ainda satisfeito com o resultado, mas queria muito postar este poema hoje, pois me parece uma das coisas mais inteligentes que já li em termos de política de gênero.
Véspera de Páscoa
Milton, que forçava suas filhas ágrafas
A ler para ele em cinco línguas
Até receberem a notícia que ele se casaria de novo
E disseram que prefeririam ouvir que ele morrera
Milton que transforma até mesmo Paradise Lost
Em uma autobiografia, eu tenho três
Bebês esta noite, todos estão dormindo:
Rachel a tataraneta
De Herman Melville dorme na cama
Sophia e Marie estão dormindo
Sophia homônimo das mulheres
De Lewis Freedson o acadêmico e Nathaniel Hawthorne
Marie o nome mais velho de minha mãe, estas três meninas
Em repouso na escuridão, eu fiz a escuridão luzente
Eu roubei imagens de Milton para curar o tenebroso opaco
Para tornar o quarto um globo sob esta rouca
Lua de março, eclipsada só à luz do dia
Corpos de bebês em respiração pesada
Filhas e descendentes na presença dos
Grandes, Milton e Melville e Hawthorne, todos falando
Ao mesmo tempo, eu apenas as olhei todas fundidas
Cada uma parte semita, de uma raça sempre em guerra
O restante de sua graça herdada
Dentre nórdicos, alemães e ingleses, escritores na paz
Apressando judeus em guerra para a democracia quando em verdade
A paz está à janela implorando admissão
Com as hordas em meio ao ar
Frio demais para esta época do ano,
Véspera de Páscoa e a chocante ideia da ressurreição
Algum dos bebês mexe-se agora, faminto por um ovo
É a bebê Melville, pronta para a gritaria
A Melville chupa seus dedos como consolo
Ela faz um som de grunhido
Bebê Hawthorne ainda em sono profundo
A que assemelha-se a minha mãe está apagada
A Melville ainda que a menor é a que mais quer
Porque não vive em verdade aqui
Hawthorne vai querer ser amamentada quando acordar
Melville chupou um pouco e logo cochilou novamente
Agora Hawthorne está se movimentando, a mais faminta
Mas talvez a mais seduzida pela escuridão no quarto
Eu posso escutar Hawthorne, sei que agora está acordada
Mas será que se moverá, perturbando o sono plácido
De Melville e insistindo em despertar-nos a todos
Enquanto isso o restante das pessoas de Lenox
Sobem e descem as ruas de carro
Agora Hawthorne quer comer
Todas elas veem a luz à qual escrevo, Hawthorne suspira
A casa está quieta, eu escuto Melville e seu jogo
Eu nunca troquei as fraudas de um garoto
Acho que vou pegar Hawthorne e amamentá-la pelo prazer
De cortar em meio à escuridão antes que seu barulho comedido
Estimule os garotos, cozinharei um peixe
Mantendo a postura na presença
De intrépidos descendentes, obstinados seus pais
Olham-me e brindam tinta
Eu devolvo o olhar para as filhas como quem pisca
Véspera de Páscoa, eu herdei este
Sono pacífico dos filhos de homens
Rachel, Sophia, Marie e novamente eu
Bernadette, toda coração eu vivo, toda crânio, toda olho, toda ouvido
Eu perdi o preconceito do paraíso
E acabei aqui, cuidando dos bebês destes caras
(tradução de Ricardo Domeneck)
§
Postagem de abril de 2011.
Bernadette Mayer nasceu na cidade de Nova Iorque, no bairro do Brooklyn, em 1945. Ela estreou em livro, creio, com Ceremony Latin (1964), e ficou conhecida com suas plaquetes de poemas publicadas durante a década de 70, especialmente pela editora Angel Hair, dirigida por Anne Waldman e Lewis Warsh. Seu trabalho, porém, começou a circular através de sua revista 0 to 9 no fim dos anos 60, revista que ela editou em colaboração com o então poeta, mais tarde performer e videasta, Vito Acconci (n. 1940).
Foi através desta associação com Acconci que a descobri há alguns anos. Na época em que eu escrevia os poemas da segunda parte de Carta aos anfíbios e todos os d´a cadela sem Logos, por causa de minha obsessão por trabalhar na fronteira das dualidades corpo/mente, concreto/abstrato, corporal/espiritual, além do início do meu interesse pelo vídeo como meio poético para a poesia oral e em performance, passei a pesquisar intensamente o trabalho de performers-videastas americanos que usavam textos em seus vídeos, como por exemplo Martha Rosler, Gary Hill e Vito Acconci. Este último iniciara sua carreira como poeta conceitual, antes de dedicar-se ao vídeo e à performance, passando a ser mais conhecido por estes trabalhos e não como escritor. Esta sua metamorfose me interessava muito. O volume Vito Acconci Studio, no qual leria pela primeira vez sobre Bernadette Mayer, foi publicado como catálogo de uma exposição no MABCA - Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, e traz alguns dos textos de Acconci e também reproduções de páginas da revista 0 to 9.
Confesso ter perdido muito do meu interesse inicial por Vito Acconci, mas meu interesse por Bernadette Mayer apenas cresceu. Seu trabalho vai do puramente conceitual à prosa fluida.
Bernadette Mayer nos últimos anos tem sido publicada pela importante editora heróico-modernista New Directions, que primeiro lançou A Bernadette Mayer Reader (New York: New Directions, 1992), seguido de trabalhos como Proper Name & other stories (1996), a reedição de Midwinter Day (1982/1999), Scarlet Tanager (2005) e o seu mais recente, Poetry State Forest (2008).
Sob a força desta leitura-em-vídeo, procurei novamente trabalhos dela na Rede. Passei a manhã com Poetry (1976), que traz desde textos mais conceituais a textos em prosa e sextinas, do qual extraí e traduzi o poema abaixo.
.......................O porto
............Nós contamos a eles os mitos de outros
............Sentados ao redor da velha, imponente nau
............E à mesa da nau, que fora despachada
............Dalgum porto distante.
............O despenseiro chegou em busca das cartas
............À espera de notícias de um porto próximo
............Mas, como o vinho que bebêramos cedo demais,
............Nossos corações estavam com a nau
............Onde afinal nossa mesa fora posta.
............Parte de nossa atenção concentrava-se
............Na tempestade a flagelar-nos como se a chuva
............Pudesse sobrepujar a presença de outros
............E da velha devoção no discurso do capitão.
............O capitão preferia antigos modelos de exórdio
............Àqueles que eram curtos
............E interceptara a carta do despenseiro
............Durante o seu próprio discurso inicial,
............Abreviado com loas à companhia dona da nau.
............Ele acusou-nos de sermos velhos e alcoólatras
............E de deixarmos bigodes que se enroscavam
............No sal do mar em que navegávamos
............Se ao menos pudéssemos deixar o porto.
.......................(tradução de Ricardo Domeneck)
Clique na imagem para ler o original
Se você não conhece a incrível página Eclipse, que mantém arquivos em pdf dos livros do início de carreira de vários poetas norte-americanos da década de 60 e 70, conheça-a já. A página declara apresentar: "exemplars of the new trobar clus, adventures in diminished reference, lost classics of modernism, écriture actuelle, hard-core composition, ephemeral memos filed by the Research Division of the Bureau of Resistance, and a series of sacrifices in which the victims are words.", heroicamente editada por Craig Dworkin.
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