terça-feira, 20 de março de 2012

Alguns poemas brasileiros: "hymnoi", de Dirceu Villa

Chega o momento nesta série de compartilhar um poema de Dirceu Villa, convidado por minha curadoria ao Festival de Poesia de Berlim 2012, no qual terá como parceiro um de meus poetas alemães favoritos, o suábio Ulf Stolterfoht (Stuttgart, 1963), autor dos livros handapparat heslach: Quellen und Materialien (2011), ammengespräche (2010), das nomentano-manifest (2009), fachsprachen XXVIII-XXXVI (2009), holzrauch über heslach (2007), traktat vom widergang (2005), fachsprachen XIX-XXVII (2004), fachsprachen X-XVIII (2002) e seu livro de estreia, fachsprachen I-IX (1998), mesmo ano em que estreou Dirceu Villa com seu MCMXCVIII (São Paulo: Selo Badaró, 1998). Dirceu Villa é um dos poetas de minha geração que mais respeito, com quem dialogo em nossas discordâncias frutíferas. Foi uma alegria ver como sua tradução do Lustra (1918) de Ezra Pound suscitou debate e teve atenção no ano passado. Não tinha como não ser uma das grandes publicações do ano em termos de tradução e crítica, e, ao lado das traduções de André Vallias para poemas de Heinrich Heine, certamente uma das grandes lufadas de ar fresco na poesia brasileira dos últimos anos, já que está na hora de todos nós conhecermos Ezra Pound por sua poesia, além do usual disse-que-disse das leituras-por-citação interessadas de seu ensaísmo.

Meu primeiro impulso seria mais uma vez chamar a atenção para seu poema "O cutelo", incluído em Icterofagia (São Paulo: Hedra, 2008), um poema que é uma belezura, um dos meus favoritos na década que se encerrou. É um poema mui bem realizado, com seu ritmo anapéstico – como me chamou a atenção para o fato Ezequiel Zaidenwerg em conversa no México, durante minhas palestras sobre poesia brasileira contemporânea, em que fiz uma leitura crítica do poema –, seu uso inteligente de uma imagética expressionista, as implicações interessantíssimas que minha mente tresloucada vê no texto. Mas como pretendo reproduzir ao final desta pequena postagem o artigo que escrevi sobre seu trabalho para a Modo de Usar & Co. em 2010, no qual comento especificamente "O cutelo", achei por bem chamar a atenção dos meus queridos leitores para alguns poemas que Villa vem publicando em seu blogue nos últimos tempos, belos exemplos de poesia satírica que apenas confirmam para mim como este segue sendo um dos melhores campos de atuação dos poetas brasileiros contemporâneos, ou ao menos um dos que mais me interessam e no qual creio ver a sobrevivência intocada da necessidade do trabalho poético nos dias de hoje, sem ao menos a necessidade de hibridismo de gêneros. A poesia satírica parece-me também um trabalho que pode ajudar-nos a reflorestar a desértica arena de leitores de poesia. Dos poemas satíricos publicados por Villa nos últimos tempos, um dos meus preferidos é "hymnoi", no qual podemos ver que o poeta não se entrega a qualquer populismo ou facilidade ao voltar-se para o riso sarcástico. Ao fim, reproduzo meu artigo de 2010.


hymnoi
Dirceu Villa


aujourd’hui, ce qui ne vaut pas la peine d’être dit, on le chante
beaumarchais, le barbier de seville


I
aperta o cinto, pisa fundo
..........a boa vida passará
em 1 segundo. grande crono
..........velho corno:
antigo engodo algum
de onde píndaro
..........pendia ou implorava
..........sua paga
lavo a musa como corça
..........com faíscas e canções
de meus pneus [para o alto
..........e avante]
quem quiser ser vencedor
..........que calce minhas botas,
minha arte,
..........antes que,
é evidente,
haja mais de mim, como de um deus,
..........por toda parte.

II

dos menelaus levou
os leitos, uma virgem em suas asas
mil éguas incansáveis
e guris em pouco tempo
se atiçavam;
que virtude então teriam
antes da tumba? —
batem bola numa várzea
desgramada
nos torneios onde, após,
três dedos dão mil dribles
de mil dólares
toque rápido e
sentindo o mel
de alguns milhões
dão chapéu nesta miséria.

III


voz de esquinas e bibocas
metálica na máquina idiota:
..........bem supremo
o ser mortal
..........de tão porca melodia;
glorioso meio hino de lampejo
..........no quintal: um deus alegre
protege sua prece
..........a implorar celebridade,
matraca de concurso
..........de discurso
de jornal
..........não larga a isca que lhe deu
a mão risonha
..........em meio às nuvens:
a chave da cidade,
..........sobre um burro,
o animal.

IV

num garfo vê tridente
entre outras coisas
..........um vidente
à beira de alva praia
se confunde, “será vênus
..........ou tritão”,
uma vulva ou
..........grande arpão; dado
de aposta, sabe o vento com saliva
..........no seu dedo,
....................búzios ou brinquedos
o levam oportuno a miami
neste mau “porvir azedo”
..........um casado, outro morto
“sei dizer, quando me deito”
..........pois depois um livro inteiro
psicoimportado
..........“dois ou três, verdade mesmo,
sofrem acidente ou feio dano
..........neste ano
danado”,
..........quod scripsi, sempre a esmo.

V

do monte pó e com rajadas
soberano; glória aguda
como o morro de onde mata
..........e quer a morte amante;
belo enfeite as dez correntes
..........de ouro x quilates
reluzindo na metranca
sobre o ombro calejado.
quem o ouve diz que é como
..........júpiter à noite: caem
raios — todos falsos —
..........mas fulminam.


VI

tânatos te teve em tetas,
..........distintivo: detectando, delegavas
uma senha pro banquete
..........ou pro boquete
aquece ao sol à tarde
..........a boca rubra da sereia
que berra como louca no capô
..........a noite inteira:
éter, porre de sujeira,
..........vai com calma, coração!
cruzar dois ossos na caveira
—eloqüente, a velha lei— e
..........me passa a escarradeira.

VII

acocorada de tão
..........flamante coma
....................desdourada
grande olympia
..........se banhava: tem o cetro
de sua casa, mas colhia só galinhas
..........no espelho arredondado

que fascínio festejar?
..........que espora
...................põe o corpo a se lembrar
da antiga chipre?

olhos glaucos,
..........para homens e crianças
louça à tarde
insônia, noites frias
pratos quentes
..........e palavras
....................e palavras
como a cara
amorphophallus acabando no quintal

agora cala quando sobe
em um sorriso
..........eis adônis
.................nada mau


§


Artigo para a Modo de Usar & Co., postado a 8 de junho de 2010.


Dirceu Villa nasceu em São Paulo, em 1975. Estreou em livro com o volume MCMXCVIII (1998), seguido, neste nosso século que engatinha em meio a desastres ecológicos e econômicos, os volumes Descort (2003) e o mais recente Icterofagia (2008), no qual me concentrarei para esta postagem. Dirceu Villa é tradutor de Ezra Pound, de quem verteu e anotou, em sua íntegra, o belo Lustra (1916), que, como se poderia esperar no Brasil, permanece inédito. Seus ensaios, poemas e traduções já foram apresentados em países como o México, os Estados Unidos e o País de Gales. Por algum tempo, manteve uma excelente coluna de crítica literária na revista Germina, e escreve com frequência em seu espaço pessoal, chamado O Demônio Amarelo. Publicamos poemas seus no primeiro número impresso da Modo de Usar & Co., assim como um ensaio sobre o português Dom Tomás de Noronha, mais tarde reproduzido aqui na franquia eletrônica. Ele também participou dos nossos ciclos críticos dedicados a Caio Valério Catulo e Guido Cavalcanti.

Tratando-se de um poeta em produção e atividade, não tentarei esboçar arcos que abarquem, em exegese simplificadora, um trabalho que está em andamento. Através de alguns poemas específicos, de minha predileção e extraídos de um único livro, seu último, tentarei elaborar o que me parece interessante e feliz em seu trabalho, se me entendem o uso do adjetivo, em conjunção entre forma, função e contexto.

Na década de 90, sabemos que o discurso crítico hegemônico, em geral, felicitava a época pela chamada pluralidade de vozes e possibilidades do uso eclético das formas históricas, em grande parte baseado no discurso ideológico proposto por Haroldo de Campos em seu ensaio sobre o "poema pós-utópico" e o conceito de "trans-historicidade". Já questionei estes conceitos em diversos textos e não retornarei a eles aqui. Se os menciono, é porque seria tentador abordar o trabalho de Dirceu Villa pelo uso que faz das formas históricas, retornando a dicções de outros momentos poéticos, talvez como o poeta das máscaras que Pound nos propôs em Personae (1909). A mim parece que uma das maneiras mais viáveis de analisarmos o trabalho poético dos autores contemporâneos está justamente em sua relação com a historicidade da textualidade poética, sobre a qual já participei de debates largos e longos com o autor de Icterofagia, que, eu arriscaria dizer, acredita nesta historicidade como manifestação, digamos, talvez orgânica, ou auto-evidente, o que por vezes, em alguns poemas de Icterofagia, poderíamos aproximar do discurso da autonomia da linguagem poética, certa ausência do contexto para habitar uma realidade literária. No entanto, em muitos poemas, eu creio que ele estabelece uma saudável relação de pêndulo entre diacronia e sincronia, historicidade e Literatura, algo que lhe entrega seus melhores poemas, alguns dos quais buscarei reproduzir e comentar a partir daqui.

Para começar, remeteria o leitor a um pequeno poema que já comentei em um ensaio intitulado "Das fatrasies medievais a DADA, do Sapateiro ao Rilke shake", sobre a (mais que necessária) poesia satírica contemporânea, publicado em meu espaço pessoal e aqui. Trata-se do poema "Pontos-de-fuga do século XX", à página 119 do Icterofagia (2008):

Pontos-de-fuga do século XX
Dirceu Villa

Era Yeltsin
Em 1995, parecendo uma caricatura
De Russo frente às câmeras do Western
Americano, que pensava: "É nisso
Que dá o Comunismo".

O que Hobsbawn chamou
"Capitalismo de Estado": onde
Deus & Mammon dão lugar
Aos Canalhas do Partido: tudo
Em maiúsculas, ou uniforme militar.



Rimar "Yeltsin" com "Western" parece-me um dos momentos mais inteligentes da poesia satírica contemporânea. Aqui, se levarmos em conta a definição de Pound para o "épico", ou seja, "um poema incluindo a História", Villa produz um texto que é, ao mesmo tempo, épico e satírico, o que talvez irrite quem associa o "épico" apenas com a ideia de "poema longo". Poderíamos remeter esta poética, não a Pound primordialmente, mas ao mestre eleito por Dirceu Villa para si, o maranhense Joaquim de Sousândrade (1833 - 1902), em especial no "Tatuturema" e na sequência que ficou conhecida como "O Inferno de Wall Street". Em outro bom momento de poesia satírica no livro, isso se torna ainda mais claro:

Angst Brazileira I
Dirceu Villa


Anacreonte
tangia uma lira de onde
pingavam sonetos
poeirentos:


fingimento
era apenas - não a arte
- mais uma forma
de sustento.

Ceci tinha só
o sêmen de orvalho
do pistilo que passava em Peri
por caralho,

quando Pedro II
atendeu a Graham Bell
pra dizer, que profundo,
o dito de papel:


To be or not to be,
ou o tolo grude
do tupi que
tange o alaúde.

Dá no mesmo,
saúde.



Aqui, percebemos a boa poesia em que as funções da linguagem se entrelaçam, se usarmos as definições de Jakobson, como a função poética e a função referencial (mas não só), sem cancelamento mútuo como alguns equivocadamente defendem, mas uma relação de textualidade em que o poema funciona, como insisto, na fronteira entre transparência e não-transparência do signo. Assim, não se trata de buscar o texto-fantasma que seria a exegese do poema, nem a dissolução da palavra por sua referencialidade, para atingir alguma espécie idealizada de "realidade" fora da linguagem. Isso estava claro, eu creio, em vanguardas históricas como a dos dadaístas ou dos expressionistas. É nesta capacidade de criar uma espécie de fluxo e refluxo entre significado e significante, como nos expressionistas germânicos ou em seu exímio contemporâneo Augusto dos Anjos, que eu penso ao ler um texto tão bom como este, abaixo, publicado pela primeira vez na Modo de Usar & Co. impressa, que eu chamaria aqui, se me permitem um neologismo, de expressinoir, remetendo tanto a Gottfried Benn, Jakob van Hoddis e Augusto dos Anjos, como a filmes de uma espécie de terror-thriller:

O cutelo
Dirceu Villa

São ossos. E às vezes, a banha amarela nos ossos;
e às vezes, o sangue vermelho nas unhas.
São porcos, ou são as cabeças dos porcos,
penduram num gancho as cabeças,
ou a cara de estúpida morte dos porcos
no vidro embaçado do açougue.
Ou o branco, mas branco embebido de rosa,
o sangue no sonho de tripas,
sonha o açougueiro: que empunha o cutelo.
E o branco avental que se banha
ou que bebe, o sangue que salta dos nervos
num abraço com ossos, onde vibra o cutelo,
e como brilha o cutelo que corta:
é essa a virtude do aço no punho, que sobe,
ou a ameaça na roda vazia que o prende
no espaço do açougue, visível aos olhos,
anúncio de corte. Ou espeta seu fio numa pedra,
e o único olho vazio se concentra, à espera da carne.
São cortes na pedra lanhada de sangue,
ou fendas, de onde a morte o espreita,
açougueiro no sonho vermelho, acariciando
o fio afiado, o sorriso sutil do cutelo,
que corta. E então o cutelo é outra coisa:
nem porcos, nem nervos, nem ossos,
nem mesmo o açougueiro que o sonha,
mas parte extensiva do braço que o vibra,
e parte indelével do que ele mutila,
o fio afiado, o sorriso sutil do cutelo, que corta.



Na pequena antologia de Vasco Popa traduzida por Aleksandar Jovanovic, publicada na coleção "Signos", da Perspectiva, há um pequeno poema intitulado "O porco", em que Popa, praticando o que Haroldo de Campos chamou de "coisismo ontológico", parece transportar-nos para dentro de um porco a correr feliz para um portão, sem saber que este o separava de seu abate. Neste "O cutelo", de Villa, é como se estivéssemos dentro da vertigem agônica deste porco, em uma escrita permutacional que parece querer desestabilizar-nos o aparelho vestibular, dando-nos quase tonteira-desequilíbrio, em um jogo de linguagem que parece imitar o de uma câmera em filmagem giratória, ou, talvez, por um segundo, o que adentra os olhos do porco, fixados em sua cabeça, que cai após ser cortada. Trata-se de escrita altamente substantiva, mas não como a dos poetas cabralinos da década de 90 e meados dos 2000, que se obcecavam com pedras e desertos e securas; os sustantivos aqui são secreções e massa orgânica, numa poética bastante corpórea. Há rimas internas e aliterações em abundância, como em "Ou o branco, mas branco embebido de rosa, / o sangue no sonho de tripas, / sonha o açougueiro: que empunha o cutelo", girando e reposicionando palavras, quase uma dança entre algoz e vítima, sem deixar de ter conotações perturbadoramente eróticas.

Em outros momentos, de delicadeza lírico-amorosa e o que já chamamos aqui de "coisismo ontológico", Villa usa algo desta escrita para nos doar poemas como este gentil "Coisas que se quebram":

Coisas que se quebram
Dirceu Villa

mecanismo de relógio:
manejo a pinça
& cuidado,
patas de inseto: cílios
com pegadas;
pequeno, tudo parte
& corre risco, coisas
que se quebram.
& como, tão
quebrados & partidos
não contamos
os resquícios, apegar-se
a todo vício de
viver:
o que sei o
que amo, frágeis
elos de cadeia, mí
nimos confortos
de uma ideia & tão
no entanto
humanas
coisas que se
quebram,
que se não se sabem
ou se respeitam
pactos
como esses, micros-
cópicos, não
germina amor nem
nada bom
deriva disso, tão minús-
culo impreciso de-
licado
ajuste.



Alguns dos cortes, se isomorfizam em ícone, como Augusto de Campos costuma pesquisar, as quebras e partidas, são também precisamente posicionados, coisa de relojoeiro, gerando vocábulos novos e totalmente pertinentes, como em "minús/culos", ou "micros/cópicos", além de ser um texto que se baseia numa linguagem que me parece a meio caminho entre a metáfora e a metonímia, algo que aprecio muito.

Icterofagia, com cerca de 200 páginas, é um dos livros mais largos da poesia brasileira desta década. Quando um crítico contemporâneo não está disposto a lidar com a dificuldade de um trabalho, no Brasil de hoje, ele chama o poeta de "ambicioso". Poderíamos aplicar o adjetivo a Dirceu Villa e seu último livro? O que eu diria é que Villa demonstra acreditar na historicidade implícita do fazer poético, produzindo uma poesia lírica que, em seus melhores momentos, apresenta uma poética tesa e tensa, e o liga a poetas tão diversos quanto Sousândrade, ou, no século XX, belos poetas que deveriam ter mais público, como o mineiro Dantas Motta (1913 - 1974), e o carioca Leonardo Fróes (n. 1941). Se, em minha opinião, nem sempre pende para o lado que prefiro o prato da balança entre o vivido e o lido, ou a experiência imediata do poeta e sua cristalização por técnicas poéticas, há momentos abundantes de beleza no livro, como os que comentei aqui. Encerro com um texto recente de Dirceu Villa, que ele publicou há algumas semanas em seu espaço pessoal, O Demônio Amarelo, e que traz algumas das características que discuti neste artigo.



--- Ricardo Domeneck


§

façam suas apostas
Dirceu Villa


desbastar do crânio
toneladas de palavras:
quem cultiva o balbucio
que coma suas mil larvas;

enquanto penteio palavras
a contrapelo,
vinte inválidos palermas
contam favas;

mas trouxe maçaricos,
lança-chamas
e o belo incêndio que verão
engolirá os trapaceiros
de plantão;
“crises”, direi, “como no almoço;
coveiros literários,
sepultados com seus ossos”.

ler livros que não passam
de farrapos?
ou reunir, numa feira de acepipes,
velhos trapos?

quantos dormem
aturdidos pelo vento
— uma existência miserável?
a estátua patética e grotesca
de anhangüera bandeirante,
com merda na cabeça
em pé no trianon?

não despertarão
do sono estético de estante?
o merencório de janela, com o anestésico
que compra com a dor
de liquidação,
oscila entre o verso
ou algum outro remédio
da emoção.

“poeta bom é poeta morto”
diz o lema da crítica,
ano um.
desentoca aquela mítica
fúria, alecto velha e cancerosa
que invade venenosa
o labirinto da memória.

mas mesmo diante
dos macacos:
cego, surdo e mudo,
a poesia vive
e não requer escudo
pra batalha,
a despeito de paspalhos
e outras tralhas.

os estados unidos do brasil
gostam de remendos
na velhíssima antigualha
sociopatológica de ocasião,
por isso a inapetência
não descreve
a história dos costumes
engessados em fardão;

críticos/poetas de sala de estar:
mentes com picotes
de onde destacar.



§

OUTROS POEMAS DE DIRCEU VILLA
extraídos de Icterofagia (São Paulo: Hedra, 2008)

NENHUMA DAS ANTERIORES


Existem gatos e novelos de lã.

A abstração pode ser encontrada nos interstícios que ligam duas coisas sensíveis de modo a lhes conferir um significado, digo, um significado que inclua as duas coisas. Fora isso, a abstração é inútil (filosófica), brutal (política) ou insignificante (poética).
Eliot escreveu: “o correlato objetivo”. A seção áurea da poesia.
É impossível parecer um acessório num país de necessidade.
O espetáculo: promessa de renovar superficialmente tudo que é vazio até que alguém descubra ou desconfie, daí renovar de novo do nada.
A ilusão ignorante de que se está no topo da civilização.
Um dos trabalhos do poeta é tirar as coisas do lugar, isolar, ou estabelecer relações antes invisíveis e fundamentais.
Estamos imersos numa cultura de morte ou misericórdia, i.e., o circo romano, metáfora de bolso para as multidões famintas de farrapos.
Um homem sem mestre ensina a si mesmo e cumprimenta os mortos ilustres.
O progresso da inteligência: do inventivo para o instrumental.
A poesia não está morta, os poetas estiveram dormindo (Jean Cocteau).

Moralidade: se você não sorrir, seus lábios estão com defeito.


§

MEMÓRIA, A MÃE DAS MUSAS

primeiro sim foi
quando
deuses
tolheram as letras
das tuas
preciosas palavras
e acho te partiram em mil
pedaços
espalharam
teus sons
sem sentido soando
sim mas outros te ouviram
e suponho colheram
tuas sílabas
num tecido de ritmo
indecisas e belas
em fuga perpétua
do sentido
força informe
que desfez
a velha Babel
e a devolveu
num
como é mesmo
num
pequeno milagre.


§

OS CIENTISTAS
Doubt truth to be a liar

Há alguma corrosão no início
— faz parte de seu ofício;
distribuem, como os padres,
a profilaxia, que não é santa,
mas igualmente certa.

Um silêncio de murmúrio
recobre máquinas e ataduras;
aplicam por critério antecedente
prescrições e vacinas em quem
um dia vai ficar doente.

Como na Lei,
há a vantagem do microscópio,
que é por onde entra o miópico
olho da civilização: macacos gritam,
flores abrem, deuses mortos
cospem sangue verde em gargalhada.

“Nós temos a resposta para o Nada.”

§


DILUIR EM CAFEÍNA

Diluir em cafeína a conversa, as palavras;
Seus olhos, baços, as belas unhas, sujas,
Dou um dinheiro, um aviso, e daí?
Seus olhos brilhavam no primeiro sol:
O dia espalha cores fortes pelo céu
E você, o ruído e o mundo em ruínas
Não sabem nada do sol, perderam o calor,
E uma sombra suspira e os olhos suplicam:
“Café. Preto e sem açúcar. Eu estou só.”


§

LYRA ARAGONESA: REFRAM DE ABRIL

Pero mi fez e faz Amor mal
Martim Moya

Não amor não pode
mal fazer
nenhum;
ou torna o senhor escravo,
escolhe em mil a mais
gentil
e colhe a dor do cravo
no amargo
mês de abril?

[Se então tal mal me vem
eu, sábio,
o torno logo em bem:
tolice é ter em sol tão certo
deserto só
& desolação;
e se esse é o preço
que pago,
bem pouco parece:
um pequeno estrago
no brio
que bem o merece.]

Pois tal fervor demove o frio,
e traz ardor à alma;
e então a flecha erra
a calma
e põe o peito em guerra:
torna o senhor
escravo,
o gentil prazer des
terra,
o estio já desfalece,
é um pássaro sem
pio
no amargo mês
de abril.

§


UMA MANEIRA DE

Aujourd’hui grand-mère est morte
a cama branca
cheira a antisséptico
os pulsos enrugados

importante: não há janela
paredes brancas
tudo é branco
glaucoma
a cegueira vem antes dos olhos
azul-cinzento leitosos
quando os olhos se viram para dentro
tudo é branco menos
quando os olhos se viram para dentro

você morre

peixes

se multiplicam
mas morrem

a maré não se move
cardumes de ventre para o alto

poder algum sobre a permanência
tempo como ordem
a espécie, a estação, um número

a morte vem antes da morte
o sangue não é a verdade
o dinheiro não é a verdade
as rugas no rosto
não são a ruína

idade não é a ruína

heranças, família,
ódios mesquinhos
uma maneira
amena
de dizer adeus?

§

VALE DO DEMÔNIO ANNO DOMINI 2003

Le pauvre monde est sujet à l’erreur.
Laurent Tailhade, “Ballade (touchant la variété des jugements humains)”


Do viaduto você divisa o vale do anhanga,
o “demônio”, com seus chifres e cauda:
um hiato sob as palmeiras de folhas amplas
que fatiam com suas lâminas o vento encanado;

no Municipal há o beijo de enlace neoclássico
de Eros e Psiquê; a belle époque dos italianos
nada anarquistas, mas talvez, oh sim, artistas,
que talvez lessem D’Annunzio com prazer;

os chafarizes onde farreiam moleques de rua
não têm nada de torpe, nem de Verlaine. Vivos
túneis do metrô, office-boys e envelopes pardos,
azulejos pichados no Largo da decadente Memória :

em 84 no Vale não era só escorraçar Figueiredo
ou outro fantoche de farda; votar mal, sobretudo;
um belo lugar pra se encher de gente e dizer:
“Chega”, ou “estamos fartos”, com a bênção

da Diana dos Bosques, rainha dos bêbados loucos
do Vale, e filha de Jean-Antoine Houdon (17 etc),
o mesmo do sorriso maroto do velho Voltaire:
“il faut cultiver nôtre jardin”— jardineiros de merda.

Pregadores cristãos na praça com línguas de fogo
— bênçãos das pombas dos Correios — dentro
de ternos surrados; ciganas te agarram e há uma luz,
diáfana, que surge ao fundo no horizonte.

As folhas das palmeiras se movem,
como seus cabelos, contra o vento
que leva embora os ruídos e a inutilidade
da sua opinião sobre as coisas deste mundo.




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