Descobri o trabalho de Buffy Sainte-Marie, nascida em 1941 no seio da nação Cree que sobrevive no Canadá, há um par de anos, durante minha pesquisa pessoal sobre a poesia oral e vocal, que me levara a abandonar os preconceitos literarizantes dos meus antepassados imediatos e buscar os praticantes desta tradição vivíssima, com seu arcabouço entre os Trobadours, Skalds e Goliardos medievais, chegando aos poetas-cantores do século XX, poetas orais e vocais como Woody Guthrie, Bob Dylan e Hedy West nos Estados Unidos, o belga Jacques Brel, o francês Georges Brassens, os canadenses Leonard Cohen e Joni Mitchell, o russo Vladimir Vysotsky, os chilenos Víctor Jara e Violeta Parra, entre tantos outros. Pesquisando sobre a geração anterior à que ficaria conhecida na década de 60 nos Estados Unidos, chegara a uma poeta satírica como Malvina Reynolds e seus vídeos no excelente programa televisivo de Pete Seeger, esta figura fenomenal. Foi entre os vídeos do programa que descobri as duas performances brilhantes de Buffy Sainte-Marie que mostro abaixo.
Somente preconceitos raciais e o trabalho eficiente da CIA em neutralizar poetas como Buffy Sainte-Marie poderiam explicar que uma mulher fenomenal como esta não seja idolatrada hoje ao lado de poetas-cantores como Bob Dylan e Joni Mitchell, vivendo hoje sem a fama insuspeita dos dois. Faz algum tempo que venho querendo escrever sobre ela, mas nestes últimos dias, pensando nas comemorações e protestos em torno da Ditadura Militar no Brasil, assim como a discussão com certos companheiros sobre minha postagem daquela página do Diário Completo de Lúcio Cardoso (sobre a relação entre escritor e Estado – voltarei a isso em breve), é que me vi uma vez mais ouvindo estas duas canções poderosas vez e vez outra aqui em minha caverna, pensando e pensando sobre a função política do poeta.
Em meio a tudo isso, houve duas outras situações neste mês que trouxeram novas perguntas a minha mente. Em primeiro lugar, minha última leitura em Berlim, ao lado do americano Black Cracker, da britânica Annika Henderson e da norueguesa Stine Omar Midtsæter, e as conversas que tive com vários amigos sobre suas impressões da leitura. Uma das conversas principais e mais interessantes girou em torno do caráter político de certos textos lidos naquela noite, alguns abertamente posicionados em sua política, outros altamente irônicos. Foi com tudo isso na mente que, há duas noites numa mesa de bar aqui no Berlimbo, conversava com duas amigas que são poetas-cantoras (não vou dizer quem são para não desviar a atenção da discussão), e discutíamos a despolitização do discurso poético na literatura e na música contemporâneas, assim como o uso que fazemos da ironia em nossos textos mais políticos. Lamentando o neo-hedonismo na poesia cantada atual, falávamos de Public Enemy e Bob Dylan, e passamos um bom tempo em torno da pergunta se a ironia ainda é apropriada e realmente eficiente diante de certos problemas políticos que deveriam ser enfrentados de frente por poetas. Mais uma vez, estas duas canções de Buffy Sainte-Marie vieram-me à mente.
Na primeira, "Little Wheel Spin and Spin", há um trabalho de concisão e ironia cortantes, num texto que nos leva tanto ao trobar leu dos trovadores como ao trabalho satírico dos Goliardos (que recorriam a esquemas de rima parecidos em latim), assim como a certos textos de Heinrich Heine e Bertolt Brecht. Tem uma função quase atemporal, pois tanto poderia referir-se à ganância em Roma como em Wall Street. Como eu gostaria de ter escrito os versos "Oh the sins of Caesar's men / Cry the pious citizens / Who petty thieve the 5 & 10s" ou "Turn your back on weeds you've hoed / Silly sinful seeds you've sowed / Add your straw to the camel's load / Pray like hell when your world explode"... Há ironia aqui, eficiente e que torna o poema funcional para qualquer momento, como sempre digo, já que vivemos eternamente no pré-distópico. Mesmo poetas contemporâneos posteriores como Harryette Mullen e Angélica Freitas usam estes recursos para seus textos de carga política na discussão de problemas raciais e de gênero no mundo contemporâneo, e de forma eficiente.
Aí penso em um poema poderoso como o é "My Country 'Tis Of Thy People You're Dying", sem podermos separar seu texto da performance cheia de autoridade de Buffy Sainte-Marie, e me pergunto se a ironia poderia ter sido usada ali. Tenho certeza que alguns amigos literatos dirão que o poema não se sustenta na página ou é "datado" e "de palanque". O que posso dizer é que sua força poética, de performance, e sua carga política me atingem em cheio todas as vezes que o ouço.
Mas é esta discussão que me parece estar no coração do problema que vivemos hoje, com a separação completa entre poeta e seu público. Esta ânsia por "sustentar-se no papel", este medo do "datado" levando poetas a ignorarem problemas que sempre foram tratados abertamente por poetas em seus momentos históricos, sem a preocupação (que hoje me parece tão patética) se seus textos entrariam em antologias escolares ou não. Era uma relação direta e aberta com seu público e seu momento histórico, sabendo que alguns textos sobreviveriam por tratarem de problemas eternos, mas sem negar-se a cuidar de questões que estavam marcando o calendário do seu uso pessoal do oxigênio coletivo, do ar de seus pulmões para soltarem palavras pela garganta, usando uma língua que é também propriedade coletiva, comunitária. Eram poetas realmente presentes. Até porque a apresentação de seus poemas exigia sua presença física, em contato direto com o público. É de uma miopia incrível ignorar as consequências destas trasnformações na distribuição e publicação para a recepção da poesia.
Ao tratar do genocídio de seu povo, não há como usar ironia, ainda que Buffy Sainte-Marie recorra ao sarcasmo mordaz diante da nação branca vitoriosa a engordar enquanto seu povo morria. Com o acúmulo de catástrofes sob os pés do Anjo de Benjamin, sempre uma nova matança exigindo nossa atenção, os genocídios passados vão se tornando abstratos, presos nas páginas dos livros de História, até que um poeta como Buffy Sainte-Marie ergue-se sobre seus pés em toda a sua autoridade criaturizada (uso o termo a partir de Celan) e nos atinge em cheio com a memória, trazendo à tona uma catástrofe passada. É poesia datada e eterna. É épica. É sim uma experiência histórica específica, mas nós poetas deveríamos saber que há o "tempo de buscar e tempo de perder; tempo de guardar e tempo de deitar fora; tempo de rasgar e tempo de coser; tempo de estar calado e tempo de falar". É minha crença firme que a poesia escrita não encontrará novamente público amplo enquanto nós, poetas contemporâneos, seguirmos abstendo-nos de fincar os pés no nosso tempo, e seguirmos tecendo sempre e sempre e uma vez mais apenas guirlandinhas de signos desgarrados da referencialidade, trans-históricos, inofensivos e infantilizados como nós mesmos, poetas contemporâneos.
É meia-noite no Berlimbo, 1° de abril de 2012, aniversário do Golpe de 64. Meu pensamento está no Brasil. Perdoem a ênfase. The little wheel spins, the big wheel turns around, fico zonzo com os vértices e vórtices da História.
Little Wheel Spin And Spin
Buffy Sainte-Marie
Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around
Merry Christmas Jingle Bells
Christ is born and the devil's in hell
Hearts they shrink Pockets swell
Everybody know and nobody tell
Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around
Oh the sins of Caesar's men
Cry the pious citizens
Who petty thieve the 5 & 10s
And the big wheels turn around and around
Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around
Blame the angels, blame the fates
Blame the Jews or your sister Kate
Teach your children who to hate
And the big wheel turn around and around
Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around
Turn your back on weeds you've hoed
Silly sinful seeds you've sowed
Add your straw to the camel's load
Pray like hell when your world explode
Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around
Swing your girl fiddler say
Later on the piper pay
Do see do, swing and sway
Dead will dance on judgement day
Little Wheel
Spin and Spin
Big wheel
Turn around & around
§
My Country 'Tis Of Thy People You're Dying
Buffy Sainte-Marie
Now that your big eyes have finally opened
Now that you're wondering how must they feel
Meaning them that you've chased across America's movie screens
Now that you're wondering "how can it be real?"
That the ones you've called colourful, noble and proud
In your school propaganda
They starve in their splendor
You've asked for my comment I simply will render
My country 'tis of thy people you're dying.
Now that the longhouses breed superstition
You force us to send our toddlers away
To your schools where they're taught to despise their traditions
Forbid them their languages, then further say
That American history really began
When Columbus set sail out of Europe, then stress
That the nation of leeches that conquered this land
Are the biggest and bravest and boldest and best.
And yet where in your history books is the tale
Of the genocide basic to this country's birth,
Of the preachers who lied, how the Bill of Rights failed
How a nation of patriots returned to their earth?
And where will it tell of the Liberty Bell
As it rang with a thud
O'er Kinzua mud
And of brave Uncle Sam in Alaska this year?
My country 'tis of thy people you're dying
Hear how the bargain was made for the West:
With her shivering children in zero degrees,
Blankets for your land, so the treaties attest,
Oh well, blankets for land is a bargain indeed,
And the blankets were those Uncle Sam had collected
From smallpox-diseased dying soldiers that day.
And the tribes were wiped out and the history books censored,
A hundred years of your statesmen have felt it's better this way.
And yet a few of the conquered have somehow survived,
Their blood runs the redder though genes have been paled.
From the Grand Canyon's caverns to craven sad hills
The wounded, the losers, the robbed sing their tale.
From Los Angeles County to upstate New York
The white nation fattens while others grow lean;
Oh the tricked and evicted they know what I mean.
My country 'tis of thy people you're dying.
The past it just crumbled, the future just threatens;
Our life blood shut up in your chemical tanks.
And now here you come, bill of sale in your hands
And surprise in your eyes that we're lacking in thanks
For the blessings of civilization you've brought us,
The lessons you've taught us, the ruin you've wrought us
Oh see what our trust in America's brought us.
My country 'tis of thy people you're dying.
Now that the pride of the sires receives charity,
Now that we're harmless and safe behind laws,
Now that my life's to be known as yourheritage,
Now that even the graves have been robbed,
Now that our own chosen way is a novelty
Hands on our hearts we salute you your victory,
Choke on your blue white and scarlet hypocrisy
Pitying the blindness that you've never seen
That the eagles of war whose wings lent you glory
They were never no more than carrion crows,
Pushed the wrens from their nest, stole their eggs, changed their story;
The mockingbird sings it, it's all that he knows.
"Ah what can I do?" say a powerless few
With a lump in your throat and a tear in your eye
Can't you see that their poverty's profiting you.
My country 'tis of thy people you're dying.
.
.
.
sábado, 31 de março de 2012
Pequeno comentário sobre a função política do poeta a partir de dois poemas de Buffy Sainte-Marie
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Um comentário:
da buffy sainte marie só conhecia "bury my heart at wounded knee", via indigo girls. muito boa. vou procurar mais coisas dela. muito obrigada, mais uma vez, pela dica.
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