sábado, 17 de março de 2012
Alguns poemas brasileiros: "Ficção início", de Marcos Siscar
Retorno hoje à pequena série de postagens com poemas dos autores convidados para o Festival de Poesia de Berlim. Ao falar sobre os outros poetas até o momento (Horácio Costa, Jussara Salazar e Ricardo Aleixo), tinha muito claro em mente qual poema enfatizar. Selecionar um poema de Marcos Siscar foi um pouco diferente, quis chamar a atenção para um livro recente seu, com o título excelente de Interior Via Satélite (São Paulo: Ateliê Editorial, 2010), no qual algumas das proposições que discuto no artigo de 2008 (você pode lê-lo ao fim desta postagem) parecem ter assumido um tratamento novo e mais potente, renovando seu trabalho de indeterminação e borrar de dicotomias como "interno/externo" ou "subjetividade/objetividade" com uma sensibilidade bastante peculiar no cenário poético contemporâneo do Brasil. Ao fim da postagem, reproduzo outros poemas de Siscar, publicados na década de 90, em que este trabalho por aquilo que venho chamando de "lírica analítica" já se apresentava com beleza, levada a novas consequências em seu último livro. A propósito, o parceiro germânico de Marcos Siscar na Oficina de Tradução será o poeta alemão Jan Wagner (Hamburgo, 1971), autor das coletâneas Probebohrung im Himmel (2001), Guerickes Sperling (2004), Achtzehn Pasteten (2007) e Australien (2010), e traduziu livros e antologias dos poetas anglófonos James Tate, Charles Simic e Matthew Sweeney. Jan Wagner e Marcos Siscar trabalharão em traduções mútuas durante o Festival de Poesia de Berlim. Agora, ao poema de Siscar:
Ficção início
Marcos Siscar
Começar de dentro, do interior, de onde as coisas começam. Onde terminam sua elipse vertiginosa. O interior é o fim da partida, é o começo da volta. Sair como quem volta, voltar como quem sai. A ficção viagem.
Estar perto da própria coisa não está longe do extravio. Veja as mãos do adolescente, suando frio, sem saber virar as páginas de um livro.
O interior é o lugar do extravio, lugar não se fica. Que lugar é um lugar onde não se fica? É o limite, o limite é interior.
Do interior, se vai. Como de pequenas cidades, you know you have to leave. Não se fica, no interior se chega, do interior se vai, aonde se chega, no interior não se fica. Areia, cabra, pedra, e grito, mas não se fica.
O interior se trai. Só realiza, quando se trai. O exterior das coisas é quando o interior se trai. Por isso, não há exterior puro, poesia pura, aquilo que não se trai.
Não há silêncio que não se traia.
No interior, as coisas ressoam ocas. Nada para se ver. Aqui só se ouve a coisa oca soar. Um barco enferrujado soa, devolvido pelo rio, debaixo da amoreira.
A ficção origem. A ficção precisa ser cultivada, memória aparada, mentira amparada, piedosamente. Velha história, morno ludíbrio da literatura. Interior é a ficção, a terra.
O interior é bem real, é a terra, um chão onde cair. Ter onde cair, morto, é motivo de partir.
Interior. Se for pra partir, quero que seja para não deixá-lo. Interior é onde tudo começa, como forma de não se deixar cair. Quem nunca caiu de uma árvore, precisa de segurança? Quem já se jogou de uma árvore, conhece a dor da queda?
Meu silêncio me trai. Apago os parênteses. O interior é síncope.
Você não reclama, não pede, não aceita, não fica, não arreda o pé. O interior se fecha, se oferece. Carrapicho, áspera misericórdia.
(publicado no número de estreia da Modo de Usar & Co., com o título "Interior Via Satélite")
§
Artigo meu sobre o trabalho de Marcos Siscar, especial para a Modo de Usar & Co., de 9 de julho de 2008
Marcos Siscar nasceu em Borborema, interior de São Paulo, em 1964. Estudou literatura na Unicamp e na Universidade de Paris VIII, onde doutorou-se em literatura francesa. Seus primeiros poemas datam do início da década de 90 e viriam a formar o livro Terra Inculta, publicado apenas uma década mais tarde. Marcos Siscar é uma das personalidades mais discretas da poesia brasileira contemporânea. Começaria a publicar seus poemas apenas no fim da década/século, quando a revista Inimigo Rumor recolheu alguns de seus textos. Em 1999, a primeira surpresa, para quem acreditava que a década de 90 estava “catalogada”, viria com seu livro Não se diz, que começaria a revelar a um público mais amplo este que se tornou um dos poetas mais consistentes a surgirem no período, na opinião dos quatro editores da Modo de Usar & Co. e de muitos outros. No entanto, o alcance de seu trabalho só poderia ser sentido com mais clareza em 2003, quando é lançado o volume Metade da arte, reunindo todos os seus livros, como seu primeiro e inédito Terra Inculta, escrito entre 1990 e 1994, a coletânea Não se diz (já traduzida para o espanhol por Aníbal Cristobo e publicada na Argentina como No se dice), o pequeno livro Tome seu café e saia (2002) e o inédito Metade da arte. Desde então, surgiu O Roubo do Silêncio (2006), traduzido na França como Le Rapt du Silence (2007). Traduziu Jacques Roubaud, Michel Deguy e Tristan Corbière, entre outros. Marcos Siscar vive hoje em São José do Rio Preto.
O trabalho de Marcos Siscar surgiu em um momento em que a poesia brasileira estabelecera padrões de qualidade que se engessaram a partir de certos conceitos extremamente abstratos como “objetividade” e “economia de meios”, numa defesa que, ainda que baseada no trabalho crítico de poetas como Ezra Pound, se tornaria um tanto equivocada ao apregoar e legitimar um minimalismo invertebrado praticado ao exagero ao fim dos anos 90 e início deste século. Esta objetividade necessitaria, como já escrevi em outros lugares, “de um tratamento que evitasse a hipocrisia de poetas que se crêem e fingem neutros, invisíveis, como se a voz não saísse de suas gargantas, como se eles próprios pudessem ouvi-la pura, como se ela não ressoasse dentro de suas caixas cranianas e condicionasse sua audição. O problema na maioria dos poetas obcecados com esta idéia equivocada de 'objetividade' reside no fato de que tal objetivação requer, em sua base, a sobrevivência das dicotomias interno/externo, sujeito/objeto, e sua concentração no que crêem ser o 'mundo externo' (daí a avalanche de poemas descritivos) depende de uma espécie de percepção unívoca que acaba sendo centrada num sujeito monolítico, desonestamente camuflado. Infelizmente, a discussão de conceitos dualistas como estes, de objetividade ou subjetividade, assim como a pergunta das implicações de caráter político do trabalho poético, dá-se em geral no Brasil em um nível estritamente semântico, temático, como se expulsar a primeira pessoa do singular de seus verbos implicasse realmente objetividade por parte de tais poetas, ou como se a mera aplicação de técnicas narrativas e descritivas ao poema, formado por um vocabulário de base substantiva, garantisse seu sucesso em concretude.”
Marcos Siscar, sem abandonar a competência poética, passa a publicar poemas que questionam e apresentam alternativas a esta noção equivocada de objetividade, numa investigação lingüística que não tenta simplesmente obliterar o discursivo, mas o questiona e desestrutura por dentro. O próprio João Cabral de Melo Neto poderia ser visto como um dos mais discursivos poetas brasileiros do Pós-Guerra, o que não afirmo como crítica negativa. Em um ensaio sobre a poesia de Murilo Mendes, o crítico José Guilherme Merquior acenaria para este papel de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto na poesia modernista brasileira, a de rediscursivizar o que em poetas como Oswald de Andrade e Murilo Mendes surgira como antidiscursivo, seja na sintaxe altamente elíptica de Andrade, ou na sintaxe altamente paratática de Murilo Mendes.
Marcos Siscar entrega-nos a partir de então sua “lírica analítica”, com grande liberdade em relação aos axiomas das seitas poéticas cabralizantes, digamos, da década de 90 e mesmo de hoje. Ao escrever sobre esta lírica analítica de Marcos Siscar como precursora imediata de algumas das pesquisas poéticas mais interessantes do novo milênio no Brasil, escrevi em um outro ensaio que “se lidos com atenção, muitos destes textos trazem implicações mesmo à discussão da prosa contemporânea, com suas intervenções a partir da exposição de uma realidade editável, em que os cortes abruptos não funcionam como mera entrega a uma poética de elipses ou para qualquer efeito de hermetismo, mas em ação de uma poesia consciente de si como construção, desnudando o risco de mera transparência da linguagem e expondo-a como veículo de representação, requerendo sua leitura como processo epistemológico para ser devidamente compreendida em suas implicações.”
§
POEMAS DE MARCOS SISCAR
Tome seu café e saia
a quem interessa o fracasso
do outro por que nos interessa
o fracasso ou a dor de viver
é mais forte que o abraço
(por que na despedida o beijo
só então inadiável por que
as mãos nos cabelos apenas
antes da morte os corpos se encontram)
eu lhe ofereço este cansaço
talvez você se interesse
talvez você morra de astúcia
tome seu café e saia
§
Sobre pão e frutos
a colher volteia o açúcar se eclipsa
sem razão novo e meticuloso repetir-se
doçura é pouca tão longe do amor por que
voltar à morna inflação de consciência
acolhendo cada dia com seu método
eu faço a prova do inútil copista do torno
e do retorno longe do amor sobrou-me isto
saber que tanto gesto e tanta língua
tanto escrúpulo cultivado estará perdido
no mesmo dia do descanso em outra língua
que no entanto me faz o gosto talvez
o amor volte discreto mas composto
com o pão e com os frutos pela porta dos fundos
§
Dor
não se diz rasgar rasgar um tecido como só as mãos
festa vital do barbarismo rasgar a tela de linho longamente encerada
abrir um sulco uma esteira um traço olhar por dentro dele
(você se demora na janela o vinco do seu decote
o hábito de dilacerar as folhas do caderno)
não se diz reter o vislumbre da carne pela camisa mutilada
pele retraída ao toque cerimônia do intelecto que se avalia
guardar a coisa pelo avesso posse da coisa ida
(o ato sem causa de uma chave colocada no contato)
§
Reversibilidade de beijos
vou viajar preciso de um beijo
você me diz de um jeito largo
refém da experiência sim já não
é pouco isso de querer dar sem
abrir a boca isso de querer cair
de boca seca no café pingado
sua carne branca seu estômago
fraco recitando sem pensar
uma ocasional filosofia isso de ter
sem querer de me deixar sem
pedir à beira de um zigoto mofo
à beira de um bonde de partir nós
somos irmãos ambos mudos me dê
vou viajar preciso de um beijo
.
.
.
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