sexta-feira, 23 de março de 2012

Sugestão de leitura aos ainda usuários do "argumento legalista" em certos debates políticos atuais

Ainda que crescente desde o início da década, especialmente durante a candidatura de Luís Inácio Lula da Silva que o levaria por fim à Presidência da República, tornou-se simplesmente inegável hoje a percepção, com clareza óbvia a partir das últimas eleições (que por sua vez levariam sua sucessora Dilma Rousseff ao Palácio do Planalto), de como se intensificou e radicalizou mais uma vez a polarização dualista, entre direita e esquerda, do debate político no Brasil. Mesmo certo vocabulário corrente nas décadas de 60 e 70, que causaria sorrisos constrangidos na década de 90 quando o discurso apoteótico do capitalismo autoproclamado vitorioso lançou-se ao desmantelamento do discurso político e intensificação da desregulamentação das economias nacionais, parece retornar como uma vingança previsível e retardada. Pessoalmente, após defender desde o início de meu trabalho dentro do debate poético contemporâneo uma revisão dos conceitos do "pós-utópico" e da "trans-historicidade", contemplo com um misto de sensações que vão da obviedade ao susto os discursos públicos sobre os últimos acontecimentos em São Paulo, governado por criaturas como Alckmin e Kassab, e no circo precário que é Brasília. Ao mesmo tempo, esta polarização evidencia problemas que apenas foram camuflados pela problemática transição controlada à democracia (por aqueles que a anularam) na década de 80 e certa complacência político-intelectual brasileira na década de 90. Num momento em que o debate sobre a Ditadura Militar (1964 - 1985) se reacende, é por vezes assustador ler certos argumentos incrivelmente desprovidos de qualquer capacidade de pensamento político, por parte de defensores do Golpe de 64 invocando o conceito de "legalidade". Tal argumento foi usado com frequência, por exemplo, durante a invasão da Universidade de São Paulo por militares no ano passado, e é o mesmo argumento que tem sido usado nos últimos tempos em meio ao debate político de gênero (Gender Politics), tanto no Brasil como por exemplo nos Estados Unidos, que este ano vão às urnas para eleger um novo Presidente ou reeleger Barack Obama.

Especialmente durante os conflitos na USP, ao ler "legalidade" nos debates da imprensa e blogosfera brasileiras, as palavras, voz e rosto de Hannah Arendt vinham constantemente à minha mente. A quem já tenha lido Eichmann in Jerusalem (1963), não surpreenderá que o que chamo aqui de "argumento legalista" cause espanto e asco, não apenas por denunciar a incapacidade de pensamento verdadeiramente político de quem o usa, como por sua total contradição ao defender atos inconstitucionais e de violência militar contra civis do próprio país, e refiro-me aqui tanto ao debate atual sobre o Golpe de 64 como sobre conflitos na USP em 2011 e os crimes em Pinheirinho em 2012. Se o historiador já foi chamado de profeta com olhos voltados para o passado, um dos mais alarmantes e indefensáveis argumentos dos defensores de Golpe de 64 volta a ser a ideia de uma ditadura para defender o País de outra ditadura, como se o pensamento hipotético (com ares paranóicos) tivesse peso agora historiográfico, especialmente quando muitas das reformas propostas por João Goulart poderiam ser vistas como bastante moderadas e tímidas perante a necessidade gigantesca de transformações sociais que o País ainda hoje não conseguiu levar a cabo. Pádua Fernandes e Idelber Avelar, entre outros, têm discutido de forma inteligente várias destas questões.

Já deixei clara minha posição e crença sobre uma das funções políticas dos poetas: monitorar o uso e denunciar o abuso da linguagem no discurso político de sua comunidade, algo que o obriga a ser quase invariavelmente oposição, esteja quem estiver no poder. Não consigo imaginar interpretação mais prática, objetiva e funcional do velho adágio sobre "manter puras as palavras da tribo".

E esta noite, após uma ronda de leituras na blogosfera brasileira sobre a asquerosa comemoração anual dos militares em torno de seu criminoso Golpe de 64, volto a Hannah Arendt, a suas palavras, a sua voz. Tentarei voltar a este assunto com a frequência que me for possível nestas próximas semanas, encerrando por ora com a sugestão aos leitores deste espaço da leitura do livro de Hannah Arendt – estejam do lado que estiverem na atual polarização – e de uma meditação sobre algumas destas ideias, expostas também nos vídeos abaixo.




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