terça-feira, 28 de agosto de 2012

A caminho da cidade natal de Gunnar Ekelöf

Embarco amanhã de manhã para Estocolmo, onde discoteco no clube Debaser na quinta-feira. Fico na cidade até sexta-feira à noite, minha primeira visita à cidade. Viajo com o produtor alemão e meu amigo Uli Buder, mais conhecido como Akia, que também discoteca na mesma noite.

Seremos recebidos por meu amigo Pontus Ahlkvist, jovem escritor sueco e também DJ, que conheci em Berlim em 2009, quando ele morava na cidade. Tive ótimas conversas com ele, que passavam invariavelmente por nosso poeta sueco favorito em comum, Gunnar Ekelöf, e por outros escritores que ambos admiramos, como Roberto Bolaño. Algumas vezes, com café e cigarro queimando de permeio, líamos poemas de Ekelöf, eu em traduções para o inglês ou alemão, ele então os lia em voz alta no original sueco. O poema abaixo nós traduzimos juntos numa destas tardes, usando a tradução para o inglês e conversando com Pontus sobre o original, seus sons, seu tom. 


Gunnar Ekelöf



Gunnar Ekelöf nasceu em Estocolmo, Suécia, a 15 de setembro de 1907. Contemporâneo de poetas como Carlos Drummond de Andrade, W. H. Auden ou George Oppen, estreou em 1932, com a coletânea Sent på jorden ("Tarde na Terra"). A este, seguiram-se inúmeros livros em prosa e de poemas, até sua morte na pequena cidade de Sigtuna, a 16 de março de 1968. É um dos modernistas suecos mais amplamente traduzidos. O poema abaixo foi traduzido em colaboração com o jovem escritor sueco Pontus Ahlkvist.


POEMA DE GUNNAR EKELÖF


Quando alguém vai, como eu, tão longe no absurdo
palavras tornam-se de novo interessantes:
Algo soterrado
que se revolve com pá de arqueólogo:

A pequena palavra tu
talvez miçanga
que um dia enfeitara um pescoço

A grande palavra eu
talvez quartzo em lasca
com o qual um sem-dentes qualquer desfiara sua carne
dura.

(tradução de Ricardo Domeneck,
em colaboração com Pontus Ahlkvist)

§

När man kommit så långt som jag i meningslöshet
är vart ord åter intressant:
Fynd i myllan
som man vänder med en arkeologisk spade:

Det lilla ordet
du
kanske en glaspärla
som en gång hängt om halsen på någon

Det stora ordet
jag
kanske en flintskärva
med vilken någon i tandlöshet skrapat sitt sega
kött


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sábado, 25 de agosto de 2012

Discutindo e traduzindo um herói pessoal: Heiner Müller



Heiner Müller nasceu na cidade alemã de Eppendorf, na Saxônia, estado que tem sua capital em Dresden e que, durante a divisão do país, ficaria na Alemanha Oriental, da qual o autor viria a se tornar um dos intelectuais e artistas mais influentes e famosos. Heiner Müller pertence a uma geração de poetas e escritores que, apesar de muito jovem, veria de perto e viveria ainda as experiências horrendas da Segunda Guerra.

No Brasil, da mesma geração (em termos estritamente cronológicos) sairiam os poetas que formaram os grupos experimentais do pós-guerra, como Haroldo de Campos, Ferreira Gullar, Augusto de Campos, Décio Pignatari, Mário Chamie e Affonso Ávila, entre outros. Dentro da poesia germânica, Heiner Müller foi também contemporâneo de vários poetas experimentais que retomaram as estratégias das vanguardas, como os poetas que formaram o Grupo de Viena (H.C. Artmann, Gerhard Rühm, Konrad Bayer, Oswald Wiener ou Friedrich Achleitner), o suíço Eugen Gomringer, ou o seu conterrâneo Helmut Heissenbüttel. A formação de Müller, no entanto, como dramaturgo e tradutor/renovador das tragédias gregas, parece ligá-lo a uma tradição clássica que remontaria pelo menos até poetas helênicos como Calímaco (310 a.C. e 240 a.C.).

Em 1955, Heiner Müller se casou com a escritora Ingeborg Schwenkner, que passaria a assinar e ficaria conhecida como Inge Müller. Com ela, escreveu algumas de suas primeiras peças a quatro mãos. A relação dos dois foi tumultuosa e eles se separaram na década de 60. Inge Müller viria a cometer suicídio em junho de 1966. Uma ótima poeta lírica, de textos delicadíssimos, apenas nos últimos anos sua escrita tem encontrado a acolhida que merece e saído da sombra da obra de Heiner Müller, especialmente após a publicação do volume Inge Müller: Gesammelte Texte (Inge Müller: Textos Reunidos), em 2002.

Na década de 60 Heiner Müller começaria a ter seus primeiros problemas com as autoridades comunistas da Alemanha Oriental. Em 1961, sua peça Die Umsiedlerin oder Das Leben auf dem Lande é proibida após sua estreia. Seus textos, críticos não apenas contra o Regime de Hitler mas também contra a sua sociedade contemporânea, começam a ser encenados no Oeste, o que torna ainda mais abrasiva sua relação com o governo da Alemanha Oriental. Seus trabalhos mais importantes incluem Mauser (1970), Germania Tod in Berlin (1971), Die Hamletmaschine (1977) e as maravilhosas Der Auftrag (A Missão), de 1979, e Medeamaterial (1982).


Muito mais conhecido como dramaturgo, com publicações apenas esparsas de poemas, o Heiner Müller poeta teria este lado de sua produção textual divulgado apenas com a publicação póstuma de suas Obras Completas em 1998, das quais o primeiro volume contém seus poemas. Em alguns textos não há, porém, grande quebra estilística ou distinções textuais entre os "poemas", como o longo "Ajax zum Beispiel" (Ajax por exemplo), e certas "peças" como Die Hamletmaschine (1977) ou Medeamaterial (1982). É que Heiner Müller era um mestre do monólogo dramático em verso, tradição que ainda une poesia e teatro, mesmo nos dias de hoje.

No entanto, na maior parte dos casos, pode-se dizer que Heiner Müller integra com seus poemas a tradição lírica alemã, mas aquela que encontramos nas Lieder (canções) de Heinrich Heine, de certa forma talvez também a de Christian Morgenstern (1871 – 1914), tradição que teria em Bertolt Brecht (1898 - 1956) um continuador e mestre, e, por exemplo, em um poeta mais jovem como Thomas Brasch (1945 - 2000), sobre o qual já escrevi aqui, um renovador. Trata-se de uma parte da tradição poética germânica, incrivelmente telúrica, sempre muito pouco divulgada no Brasil, onde se traduz com mais frequência a ala órfica desta poesia, a de Novalis, Hölderlin, Rilke e Trakl, até chegar, no pós-guerra, a poetas como Paul Celan e Ingeborg Bachmann.

O trabalho textual de Heiner Müller, tanto aquele destinado ao palco como os seus poemas, poderia ter uma acolhida interessante no debate poético contemporâneo brasileiro, especialmente com o que me parece ser uma insistência quase intransigente sua em ver o escritor, seja ele poeta ou dramaturgo, como um artesão interventor, intelectual presente nos debates de sua República. Ele está certamente fincado na tradição clássica, mesmo nestes aspectos. Sua erudição jamais é postiça - é usada de forma pontual, criando analogias com o seu próprio tempo, sempre para intervir em seus debates. É o uso que fizeram de sua erudição clássica outros grandes poetas, como o polonês Zbigniew Herbert (1924 - 1998), contemporâneo praticamente exato de Heiner Müller, ou o russo mais jovem Joseph Brodsky (1940 - 1996). Imagino o que Müller pensaria das veleidades "trans-históricas" de certos poetas contemporâneos no Brasil.

Eu traduzi o poema "Klage des Geschichtsschreibers" (Lamento do historiador) há dois anos, e a tradução foi publicada no segundo número impresso da Modo de Usar & Co. (Rio de Janeiro: Berinjela, 2009). Nestes últimos dias, com todos os acontecimentos que parecem encavalar-se em nossa visão e audição, revoluções, maremotos e assassinatos políticos, vi-me pensando neste texto de Heiner Müller.


Lamento do historiador

No quarto livro dos ANNALES Tácito queixa-se
Pela duração do tempo de paz, mal interrompido
Por disputas fronteiriças pueris, com a descrição
Das quais precisa contentar-se, cheio
De inveja de seus predecessores
Que tiveram à disposição guerras mamute
Com imperadores à frente, exigindo uma Roma
Sempre maior, povos subjugados, reis cativos
Revoltas e crises de estado: material dos bons.
E Tácito desculpa-se junto a seus leitores.
Eu, por minha vez, dois mil anos depois dele,
Não preciso desculpar-me e não posso
Queixar-me da falta de bom material.

(tradução de Ricardo Domeneck)


Klage des Geschichtsschreibers: Im vierten Buch der ANNALEN beklagt sich Tacitus / Über die Dauer der Friedenszeit, kaum unterbrochen / Von läppischen Grenzkriegen, mit deren Beschreibung er / Auskommen muss, voll Neid / Auf die Geschichtsschreiber vor ihm / Denen Mammutkriege zur Verfügung standen / Geführt von Kaisern, denen Rom nicht gross genug war / Unterworfene Völker, gefangene Könige / Aufstände und Staatskrisen: guter Stoff. / Und Tacitus entschuldigt sich bei seinen Lesern. / Ich meinerseits, zweitausend Jahre nach ihm / Brauche mich nicht zu entschuldigen und kann mich / Nicht beklagen über Mangel an gutem Stoff.


O texto, escrito em agosto de 1992, é de uma ironia mordaz e dolorida, como em tantos de Heiner Müller. O poeta morreu em 1995. Nós estamos (ao que parece) vivos, também cheios de material, do qual não sabemos, no entanto, se Tácito reclamaria.

Seguem abaixo algumas traduções recentes e inéditas de poemas do alemão.


--- Ricardo Domeneck
publicado originalmente na Modo de Usar & Co. a 4 de maio de 2011.

§


(Excerto do filme I was Hamlet, de Dominik Barbier. Filmado no Cemitério Judaico de Weissensee, arredores de Berlim.)




POEMAS DE HEINER MÜLLER
Traduções de Ricardo Domeneck


Tristão 1993

Ontem vi em meu filho um olhar estranho
Que durou uma notícia trágica um comercial
Eu li nos olhos do meu filho
Que já viram coisas demais a pergunta
Se o mundo ainda vale o esforço que é a vida
Pelo instante que durou uma notícia trágica
Um comercial eu fiquei em dúvida
Se desejava a ele uma vida longa
Ou por amor uma morte prematura.


:

Tristan 1993

Gestern hatte mein Kind einen fremden Blick
Eine Schreckensnachricht einen Werbespot lang
In den Augen meines Kindes las ich
Der zu viel gesehen hat die Frage
Ob die Welt die Mühe des Lebens noch aufwiegt
Einen Augenblick eine Schreckensnachricht
Einen Werbespot lang war ich im Zweifel
Soll ich ihm ein langes Leben wünschen
Oder aus Liebe einen frühen Tod



§


O pai

I.

Um pai morto teria sido talvez
Melhor pai. Ainda melhor
é um pai nado-morto.
Sempre nova cresce a grama sobre a fronteira.
A grama tem que ser arrancada
De novo e de novo que sobre a fronteira cresce.


II.

Eu queria que meu pai tivesse sido um tubarão
Que estraçalhara quarenta baleeiros
(E eu aprendido a nadar neste sangue)
Minha mãe uma baleia-azul meu nome Lautréamont
Morto em Paris
Em 1871 desconhecido


:


Der Vater

I.

Ein toter Vater wäre vielleicht
Ein besserer Vater gewesen. Am besten
Ist ein totgeborener Vater.
Immer neu wächst Gras über die Grenze.
Das Gras muß ausgerissen werden
Wieder und wieder das über die Grenze wächst.


II.

Ich wünschte mein Vater wäre ein Hai gewesen
Der vierzig Walfänger zerrissen hätte
(Und ich hätte schwimmen gelernt in ihrem Blut)
Meine Mutter ein Blauwal mein Name Lautréamont
Gestorben in Paris
1871 unbekannt




§



A SÓS COM ESTES CORPOS
Governos utopias
Cresce a grama
Entre os trilhos
As palavras apodrecem
No papel
Os olhos das mulheres
Ficam frios
Adeus amanhã
STATUS QUO


:


ALLEIN MIT DIESEN LEIBERN
Staaten Utopien
Gras wächst
Auf den Gleisen
Die Wörter verfaulen
Auf den Papier
Die Augen der Frauen
Werden kälter
Abschied von morgen
STATUS QUO



§


Olhar estranho: despedida de Berlim

De minha cela perante a folha em branco
Na cabeça um drama para plateia nenhuma
Surdos os vencedores os vencidos mudos
Sobre a cidade estranha um olhar estranho
Cinza-amarelas passam as nuvens sobre mim
Branco-cinza cagam as pombas sobre Berlim


:

Fremder Blick: Abschied von Berlin


Aus meiner Zelle vor dem leeren Blatt
Im Kopf ein Drama für kein Publikum
Taub sind die Sieger die Besiegten stumm
Ein fremder Blick auf eine fremde Stadt
Graugelb die Wolken ziehn am Fenster hin
Weißgrau die Tauben scheißen auf Berlin



§


Fim dos manuscritos

Ultimamente quando quero escrever algo
Uma frase um poema um ditado
Minha mão rebela-se contra a vontade de escrever
Que minha cabeça tenta forçar sobre ela
A letra torna-se ilegível Só a máquina de escrever
Mantém-me pairando sobre o abismo do silêncio
Que é o protagonista do meu futuro


:


Ende der Handschrift

Neuerdings wenn ich etwas aufschreiben will
Einen Satz ein Gedicht eine Weisheit
Sträubt meine Hand sich gegen den Schreibzwang
Dem mein Kopf sie unterwerfen will
Die Schrift wird unlesbar Nur die Schreibmaschine
Hält mich noch aus dem Abgrund dem Schweigen
Das der Protagonist meiner Zukunft ist



§


NOTA DO TRADUTOR: Todos os poemas foram extraídos do volume Ende der Handschrift (Frankfurt: Suhrkamp, 2000)


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terça-feira, 21 de agosto de 2012

Fragmentos e notas de um ensaio que eu talvez jamais termine

Fragmentos e notas de um ensaio que eu talvez jamais termine

§

Será o papel da poesia e literatura manter viva na História a memória de um crime? Nada me dissuade, por exemplo, desta compreensão da máxima de Pound sobre a poesia ser news that stays news. A notícia que permanece notícia, mesmo em nossa sociedade insaciável por tragédias, esquecendo os mortos de ontem pelos que, mal nasce o dia, já começam a se acumular hoje. A narrativa histórica que se quer científica faz com os fatos (aqueles que compõem o mundo, segundo Wittgenstein) o que a ciência faz com o conhecimento: abstrai-os. Numera-os, classifica-os, generaliza-os. Transforma o acontecimento natural em fórmula. Já foi dito que esta é a diferença entre a ciência e a arte: se, para alguns, ambas funcionam como busca do conhecimento da verdade pelos humanos, a primeira o faz pela abstração deste conhecimento, a última por sua concreção. Talvez por isso o objeto artístico em si transforme-se em parte do mundo, em objeto, em fato, ele próprio permitindo-se entregar ao discurso científico, por exemplo, da crítica: como parte integrante do mundo.

§

Talvez haja algo disso na proposta do correlato objetivo de Eliot? De que maneira esta compreensão da Literatura está guiada por minha formação cristã, a que sempre prega o Verbo que se faz Carne? Como compreender o conceito teológico de figura nesta discussão?

Tenho-a descrito assim: "FIGURA: acontecimento histórico que se liga a outro acontecimento histórico, prefigurando-o, dois fatos distintos e temporalmente segregados prevendo um último acontecimento (a parúsia?) que revelaria seus significados, além da noção de intervenção do sagrado no profano (o verbo feito carne, a história feita mito)."

Realidade histórica, ainda, como prefiguração de um acontecimento espiritual: exemplo: a saída dos Hebreus do Egito, guiados por Moisés, como prefiguração da libertação pelo Messias de um mundo materialista.

§

Ainda falaríamos sobre Gulags, ou falaríamos da mesma forma, sem a prosa de Soljenítsin, sem os versos de Akhmátova? Dos KZ, sem Celan, Jabès e Pagis?

Pensar em como a Era Vargas se nos torna muito mais concreta através da poesia de Carlos Drummond de Andrade e da prosa de Graciliano Ramos.

§

O que sabemos, em concreção, da Era Collor? Algo através da Geração 90?

§

Não se trata, é claro, apenas do trabalho de salvaguardar uma narrativa sobre nossos destinos coletivos, as valas comuns onde terminamos de bruços. Se Soljenítsin mostrou-nos o destino de milhares no Gulag através de um único homem fictício chamado Ivan Denisovich Shukov, devemos a poetas líricos como Tsvetáieva e Mandelshtam a possibilidade de conhecer as agruras e tragédias pessoais de homens e mulheres sob regimes totalitaristas. Pois ao fingirem as dores que deveras sentiam, revertendo-as em textualidade nos seus poemas, ficcionalizavam-se para que pudéssemos nos identificar com suas cicatrizes, e, identificando-nos com suas cicatrizes, reconhecermos nossas gangrenas.





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domingo, 19 de agosto de 2012

Poema inédito na revista alemã "Belletristik", número 12



Ontem à noite ocorreu, aqui em Berlim, o lançamento do novo número da revista Belletristik: Zeitschrift für Literatur und Illustration (Verlagshaus J. Frank, 2012). Como se trata de uma revista dedicada à literatura e à ilustração, neste número os editores tiveram a ideia de uma corrente: uma iniciada por uma ilustração, para a qual um poeta escreveu um texto, que por sua vez foi entregue a outro ilustrador e assim por diante. Na segunda corrente, começou-se com um texto. A revista ficou muito bonita. Ontem, na galeria Serendipity, vários dos poetas fizeram uma leitura coletiva, com projeções das ilustrações. A violoncelista Ehrengard von Gemmingen tocou, a intervalos, peças de Bach. Foi uma noite bonita. As leituras de Shane Anderson (o único outro estrangeiro comigo na revista) e da poeta (e minha tradutora) Odile Kennel foram muito boas. Na revista, chamou-me ainda a atenção o poema de Max Czollek, meu companheiro de editora aqui na Alemanha. Abaixo, a ilustração de Annemarie Otten que catapultou meu poema, meu poema, e a ilustração de Asuka Grün que ele catapultou. 


 Ilustração de Annemarie Otten



:


                                                           Poema de Ricardo Domeneck


                                                      Voltar à casa, para quê?
                                                      Aproveita a viagem,
                                                      Odisseu. Ninguém
                                                      sabe o que se passou em Ítaca
                                                      durante a tua ausência.
                                                      Por ora,
                                                      tu tens a atenção de deuses,
                                                      cíclopes, sereias. É provável,
                                                      conhecendo o mundo
                                                      como é o mundo sedento
                                                      de novidades, que chegando
                                                      à casa, homem
                                                      muitíssimo inferior
                                                      a ti seja
                                                      agora rei, que Penélope
                                                      esteja no quinto marido,
                                                      teu cão morto,
                                                      e que tuas pelancas
                                                      envelhecidas tenham já
                                                      tornado irreconhecível
                                                      a cicatriz. Casa? Sempre
                                                      foi tolice investir
                                                      no setor imobiliário.
                                                      Retornar dá trabalho.
                                                      Permanece à deriva.


 : 


 Ilustração de Asuka Grün

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Arquivo da edição revista do meu primeiro livro, "Carta aos anfíbios" (2005), para download gratuito



Como prometido há algumas semanas, segue o link para download da edição revista do meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (2005). Nova diagramação: Marília Garcia. Foto da capa: Heinz Peter Knes. Segue meu apoio ao Livros de Humanas. 

Esta é a nota que se encontra ao fim do volume: 

NOTA DO AUTOR 

Carta aos anfíbios foi publicado originalmente em 2005, pela editora carioca Bem-Te-Vi, meu livro de estreia. Nesta reedição, corrigi e revisei alguns dos poemas, incluindo ainda, ao volume, o inédito “Articulações”, que ficara esquecido em um manuscrito à época em que preparava o livro. Meu agradecimento e respeito à poeta e crítica de arte Lélia Coelho Frota (in memoriam), minha primeira editora, pela generosidade com que sempre tratou meu trabalho. Agradeço ainda a Marília Garcia pela bela diagramação nova do volume, e a Heinz Peter Knes pela linda foto de capa. Que sejamos leves sobre a terra e, mais tarde, leve a terra sobre nós. 

 Ricardo Domeneck, 21 de junho de 2012. 

Dramático, como sempre.

Por fim, quem segue meu trabalho sabe que sou dos imponderados e imprudentes que enxertam, não extirpam.




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domingo, 12 de agosto de 2012

"Anáfora insone" ou "A vizinha de baixo"




A vizinha de baixo grita.
A vizinha de baixo grita a plenos pulmões.
A vizinha de baixo grita há meses.
A vizinha de baixo grita especialmente às 3 da manhã.
A vizinha de baixo grita especialmente às 3 da manhã há meses.
A vizinha de baixo tem um fôlego invejável.
A vizinha de baixo não tem permissão para dormir ali onde alugara um espaço
                 [como estabelecimento comercial.
A vizinha de baixo não dorme.
A vizinha de baixo não me dá permissão para dormir aqui onde vivo de favor.
A vizinha de baixo tecnicamente não teria permissão para gritar às 3 manhã.
A vizinha de baixo não contava com a falta de astúcia da engenharia civil.
A vizinha de baixo não é Marina Abramović.
A vizinha de baixo tem problemas.
A vizinha de baixo talvez seja louca ainda que eu próprio com frequência
                 [tenha vontade de gritar a plenos pulmões às 3 da manhã e seja menor o número
                 [dos que me chamam de louco só porque não cedo à tentação de gritar
                 [a plenos pulmões às 3 da manhã.
A vizinha de baixo é conhecida como louca e como artista fracassada.
A vizinha de baixo lê muito.
A vizinha de baixo certamente não me lê.
A vizinha de baixo vive debaixo da minha cama.
A vizinha de baixo mora dentro dos meus tímpanos.
A vizinha de baixo não escuta o som da campainha.
A vizinha de baixo é a campainha que me traz de volta dos braços de Morfeu.
A vizinha de baixo é a relação mais íntima que tenho no momento em minha vida.
A vizinha de baixo
A vizinha de baixo
A vizinha de baixo
A vizinha de baixo
A vizinha de baixo



Ricardo Domeneck, por volta das 4 da manhã, após nova performance em Primal Scream da vizinha de baixo.

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sábado, 11 de agosto de 2012

Vilém Flusser: aranha, aranhismo, aranhanização. E a mosca.



"Detenhamo-nos, mais um instante, na aranha. O que acontece nos fios da teia? Acontecem moscas, outras aranhas, as catástrofes que rasgam os fios. E, no centro da teia, acontecimento inalcançável teicamente, acontece a própria aranha secretadora da teia e dona da teia, livre de deslocar-se ao longo dos fios para devorar moscas, copular com outras aranhas, combater outras aranhas e consertar estragos introduzidos na teia por catástrofes. Podemos, então, distinguir, basicamente, as seguintes modalidades ontológicas, as seguintes formas do Ser: mosca, outra aranha, catástrofe destruidora, e, com toda a sua problemática teica, a própria aranha. A aranha civilizada, no sentido ocidental do termo, tenderá a menosprezar a diferença entre mosca e outra aranha, considerando a outra aranha como uma espécie de mosca; ela tenderá a explicar as catástrofes destruidoras da teia como sendo supermoscas que não podem ser suportadas pela teia (provisoriamente, já que a teia cresce e se fortifica e acabará suportando moscas de todo tamanho); enfim, tenderá a considerar o mundo metateico como um reservatório, um vir-a-ser de moscas. A aranha materialista ensinará que a mosca é a tese e a própria aranha a antítese do processo dialético que se desenvolve nos fios da teia, tendo sido alcançada a última síntese quando a própria aranha tiver devorado todas as moscas. A aranha hegeliana afirmará que a aranha pressupõe a mosca e que o processo dialético é uma progressiva aranhanização do mundo-mosca, portanto fenomenal, e que, consequentemente, o devorar da mosca equivale à realização da mosca. A mosca devorada como mosca realizada: eis a última síntese, a total realização, por aranhanização, das moscas. A aranha heideggeriana considerará a mosca a ser devorada como a condição (Bedingung) da situação aranhal, e o cadáver da mosca já chupada como testemunha (Zeug) da passagem da aranha pelo mundo mosca!… Estes três tipos de especulação ocidental, e outros semelhantes, são caracterizados por um aranhismo extremo, já que aceitam a teia como fundamento da realidade sem discutir a própria teia. O aranhismo é inevitável para as aranhas, mas a discussão da teia é aranhamente possível. Essa discussão torna viável uma visão mais apropriada não somente da mosca, mas da própria aranha." 

Vilém Flusser, A Dúvida


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sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Artigo sobre a recepção alemã da obra de Jorge Amado, no centenário de seu nascimento


A pedido da Deutsche Welle, preparei uma reportagem sobre a recepção da obra de Jorge Amado na Alemanha. Leia abaixo.




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quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Poema dedicado a Nadezhda Tolokonnikova, Yekaterina Samutsevich & Maria Alyokhina


Nadezhda Tolokonnikova, Yekaterina Samutsevich & Maria Alyokhina, 
da banda Pussy Riot




O anjo agachado 

             a Nadezhda Tolokonnikova, Yekaterina Samutsevich & Maria Alyokhina

Sobre uma desgraça, outra.
Eterno retorno e catástrofe,
já não há espaço entre teto 
e monturo para aquele Anjo 
Novo. Ele, torcicolo, manco 
há muitos séculos. Exemplo:
os russos. Estes enxergam 
no escuro, pois só o escuro 
os olha. Ao fim das células
-cone, a luz adiante no túnel 
é um trem. Rasputin, Stálin,
de certo Nicolau II a Putin.
Quiçá piore tudo um putsch.

Que importa, se pode
seguir lendo Tchecov.
A isso nós chamamos
democracia pós-Muro.
Se uma rebelião-pussy
contra os machos-alfa
vier, que ela nos traga
à "Origem do Mundo".
Mas os falos que falam
nos mantêm mudos.
"Que globo, meu Deus!",
disse eu, feito um rato,
e voltei a roer as unhas.


Ricardo Domeneck, Berlim, 9 de agosto, 2012.


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sábado, 4 de agosto de 2012

Sobre minha leitura ontem em Berlim e algumas notícias de colegas e amigos

 Lendo com Alexander Gumz no Z Bar, Berlim. Foto de Andrea Schmidt.

Fiz uma leitura ontem em Berlim, no Z Bar, ao lado do poeta alemão Alexander Gumz (Berlim, 1974). É uma nova série de minha editora alemã, a Verlagshaus J. Frank, em que poetas "da casa" convidam poetas de outras editoras para uma leitura e uma conversa. Li uma seleção de poemas que entrarão em meu livro alemão: "Vida longa à poesia pura", "Corpo", "X + Y: uma ode", "Texto em que o poeta celebra o amante de vinte e cinco anos", "Carta a Antínoo", "Seis canções óbvias" e "Cantiga de ninar para amante surdo". Alexander Gumz leu poemas de seu livro de estreia, e único até o momento, intitulado ausrücken mit modellen (Berlin: KOOKbooks, 2011), pelo qual recebeu o prêmio Clemens Brentano deste ano. Foi muito bom testar as traduções ("X + Y: uma ode" funcionou muito bem com a plateia alemã), conversar com Gumz sobre narratividade, indeterminação, política na poesia, etc. Tentarei traduzir um dos poemas de Gumz em breve. No momento, estou mergulhado num artigo sobre a recepção alemã de Jorge Amado para a Deutsche Welle, por ocasião de seu centenário este mês. Deixo vocês com um original alemão do poeta.  

Später Besuch
Alexander Gumz

er dreht die lider runter wenn er lacht: windet sich
auf seiner sprache (das nennen wir mal alkoholproblem)

wie er ins waschbecken kotzt (seebäder drübermalt)
hat schon was von keine ansichtssache
eher: sauberwerden mit den farben

oder kurz nochmal die hände heben (in eine flasche beten
wie in eine mutter) um später zu entdecken
er hat den humor einer stadt von sehr weit oben

etwas schneidet sich durch seine falten: mehr zu sein
als der ekel davor in einem bett aus bier zu schlafen

sein gesicht zu legen auf etwas das nicht bleibt

§

Discoteco hoje à noite no Honecker Lounge do Kino International ao lado de meu amigo Uli Buder, produtor alemão mais conhecido como Akia, sobre o qual falo com frequência aqui. Ouça abaixo uma gravação de sua última apresentação ao vivo.


AKIA - LIVESET LOOPACUT - Snipit by Akia


§

Foi muito bom ter a poeta, romancista e minha querida tradutora Odile Kennel (n 1967) ontem na plateia. O trabalho com ela tem sido maravilhoso. Odile lançou o romance Was Ida sagt no ano passado, pela importante editora alemã Deutscher Taschenbuch Verlag - dtv. Abaixo, um vídeo em que lê um trecho do romance.




A mesma editora lança seu primeiro livro de poemas no ano que vem. Traduzi alguns para a Modo de Usar & Co. 

Por sorte a névoa chegou

tarde. Mais abaixo, eu sei
com certeza, nadavam girinos
num tanque de pedra, as vacas
traçavam com patas cautelosas
veias na montanha, visíveis. Sobre
nós circulava um busardo. Não

é um busardo, você disse, mas
nos faltavam binóculos e dicionário
de inglês. E havia o ruído
dos planadores. Eles abocanhavam o ar
em goles ávidos. Riscavam verticais acima

e abaixo cambaleavam nossos
olhos uns nos outros, mergulho cauteloso
das palavras vale abaixo, cartografado
de montanha a montanha.

Por sorte a névoa chegou tarde
para que pudéssemos
admirar na capela o
Senhor Jesus transsexual, suas unhas
pintadas. Para que nossos olhos
patas cautelosas sob
círculos intraduzíveis, para que nossos
olhos tais como girinos
no tanque de pedra nadassem
uns pelos outros se medissem uns nos outros
mergulhassem por sorte

a névoa chegou tarde.

(tradução de Ricardo Domeneck)

:

Zum Glück kam der Nebel
Odile Kennel

verspätet. Weiter unten, ich weiß es
genau, schwammen Kaulquappen
in einem Steintrog, Kühe legten
mit bedächtigen Hufen die Adern
des Berges bloß. Über uns kreiste
ein Bussards. Das ist kein

Bussard, sagtest du, aber wir hatten
kein Fernglas und kein englisches
Wörterbuch. Und das Geräusch kam
von den Segelfliegern. Sie rissen die Luft
an sich in gierigen Zügen. Rissen sie aufwärts und

abwärts taumelten unsere Augen
ineinander, bedächtiges Tauchen
der Wörter ins Tal hinab
geschwungen, ausgelotet
von Berg zu Berg.

Zum Glück kam der Nebel verspätet
so dass wir in der Kapelle den
transsexuellen Herrn Jesus
bewundern konnten, lackiert
seine Nägel. So dass unsere Augen
bedächtige Hufe unter unübersetzbaren
Kreisen, so dass unsere
Augen Kaulquappen gleich
im Steintrog schwammen
sich aneinander maßen ineinander
tauchten zum Glück

kam der Nebel verspätet.


.

Pensar sálvia e você

Eu penso sálvia quando eu
vejo sálvia penso folhas de veludo
verde-cinza pareadas opostas ou
labiadas ou temperadas e amargas
ou eu penso em nada nem sálvia nem
planta nem cheiro pois por tanto
pensar a sálvia se encontra
à janela se desencontra na mente
pois ela para mim não existe mas
existe para si nada sabe de
seu nome nada sabe de seu
existir presume-se que nonada sabe.

Eu penso você quando eu não
penso sálvia quando não penso que
os andorinhões cochilam nas altas
camadas do ar e nós deitadas
despertas à janela eu penso
você e o cheiro amargo
e temperado infiltra-se no seu
no meu existir de que nada sabe
e assim origina-se um desequilíbrio
existencial na luz pós-meridiana
pois sabemos sabemos muito bem
que todo tempo é uma xícara a
despenhar-se aos céus ou óleo etéreo
ou a maquinaria da solidão, presume-se.

(tradução de Ricardo Domeneck)


(Odile Kennel lê em Berlim, a 19 de agosto de 2008, em evento que contou ainda
 com leituras do belga Damien Spleeters, da espanhola Sandra Santana e minha)

:

Salbei denken und Du
Odile Kennel

Ich denke Salbei wenn ich Salbei
sehe denke grüngraue samtene
Blätter paarweise gegenständig oder
Lippenblütler oder bitter und würzig
oder ich denke nichts nicht Salbei nicht
Pflanze nicht Duft weil vor lauter
Denken der Salbei wohl vorkommt
am Fenster doch verkommt im Kopf er also
für mich nicht existiert er aber
für sich existiert und nicht weiß wie er
heißt und nichts weiß von seiner
Existenz vermutlich gar nichts weiß.

Ich denke Du wenn ich nicht
Salbei denke nicht denke dass
die Mauersegler dösen in den höheren
Schichten der Luft während wir wach
liegen am Fenster ich denke
Du während der bittere und
würzige Duft in deine und meine
Existenz dringt von der er nichts weiß
und so entsteht ein existenzielles
Ungleichgewicht im Nachmittagslicht
denn wir wissen wir wissen sehr genau
dass alle Zeit nur eine himmelwärts stürzende
Tasse ist oder ätherisches Öl oder eine
Apparatur der Einsamkeit, vermutlich.


(Zitat: Ulrike Draesner)

§

Também foi bom ver na plateia minha querida amiga Sabine Scho, a poeta alemã que divide seu tempo entre Berlim e São Paulo. É uma pena que a cena poética paulistana não a tenha ainda descoberto. Scho está na Alemanha, onde recebe este mês o prêmio de poesia Anke Bennholdt-Thomsen do Instituto Schiller. Um poema traduzido:

green

alguém quer que eu diga
erva e uma toalha es-
tenda, erva da boa, a pura
opulência dos ruminantes
não é nada, dou voluntaria-
mente a entender, nada mais que
vento nos salgueiros, aptidão
para Marte, macacão azul
lavado a seco, de preferência
fotossíntese, campos de
estromatólitos, quedas de
temperatura em florescência
desértica, paisagem incrustada,
gravura grátis a laser, nem nada
de nada de precipitações

(tradução de Ricardo Domeneck)

:

green
Sabine Scho

jemand will, dass ich gras
sage und eine decke aus-
breite, gutes gras, die reine
üppigkeit der wiederkäuer
es ist nichts, gebe ich bereit-
willig zu verstehen, nichts als
wind in den weiden, marstaug-
lichkeit, ein blaumann aus der
schnellreinigung, vorzugsweise
photosynthese, stromatolithen-
felder, temperaturstürze in wüster
blüte, verkrustete aussicht, kosten-
lose lasergravur, nichts und kein
bisschen niederschlag


§

Outra amiga na plateia foi a fotógrafa Adelaide Ivánova, que está preparando sua exposição na França em setembro, com um título lindamente longo e inspirado em um dos meus poemas favoritos, de Wislawa Szymborska. O nome da exposição é "Autotomy is the ability some animals have to change or mutilate their bodies in order to look like something else and protect themselves from the world and I was amazed to notice that we all do it and not just sea cucumbers." Deixo vocês com uma foto de Ivánova, que não está na exposição mas é uma de minhas favoritas (logo verão o porquê). Neste aniversário, ganhei dela uma versão enorme da foto (o modelo é seu namorado), que doravante estará na parede do meu quarto. A segunda é outra foto linda de seu namorado (às vezes penso que Ivánova e eu somos as versões fotógrafa e poeta de uma pessoa muito parecida), e a última é um dos últimos retratos que fez de minha imponderada pessoa.


Foto de Adelaide Ivánova (2012)

Foto de Adelaide Ivánova (2012)

 Foto de Adelaide Ivánova (2012)


§

Encerro com o poema de Wislawa Szymborska.

autotomia
Wislawa Szymborska (tradução coletiva da Inimigo Rumor n. 10)

 

diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

no centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
aqui o desespero, ali a coragem.

se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
se há justiça, ei-la aqui.

morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

nós também sabemos nos dividir, é verdade.
mas apenas em corpo e sussurros partidos.
em corpo e poesia.

aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.

o abismo não nos divide.
o abismo nos cerca.



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