Heiner Müller nasceu na cidade alemã de Eppendorf, na Saxônia, estado que tem sua capital em Dresden e que, durante a divisão do país, ficaria na Alemanha Oriental, da qual o autor viria a se tornar um dos intelectuais e artistas mais influentes e famosos. Heiner Müller pertence a uma geração de poetas e escritores que, apesar de muito jovem, veria de perto e viveria ainda as experiências horrendas da Segunda Guerra.
No Brasil, da mesma geração (em termos estritamente cronológicos) sairiam os poetas que formaram os grupos experimentais do pós-guerra, como Haroldo de Campos, Ferreira Gullar, Augusto de Campos, Décio Pignatari, Mário Chamie e Affonso Ávila, entre outros. Dentro da poesia germânica, Heiner Müller foi também contemporâneo de vários poetas experimentais que retomaram as estratégias das vanguardas, como os poetas que formaram o Grupo de Viena (H.C. Artmann, Gerhard Rühm, Konrad Bayer, Oswald Wiener ou Friedrich Achleitner), o suíço Eugen Gomringer, ou o seu conterrâneo Helmut Heissenbüttel. A formação de Müller, no entanto, como dramaturgo e tradutor/renovador das tragédias gregas, parece ligá-lo a uma tradição clássica que remontaria pelo menos até poetas helênicos como Calímaco (310 a.C. e 240 a.C.).
Em 1955, Heiner Müller se casou com a escritora Ingeborg Schwenkner, que passaria a assinar e ficaria conhecida como Inge Müller. Com ela, escreveu algumas de suas primeiras peças a quatro mãos. A relação dos dois foi tumultuosa e eles se separaram na década de 60. Inge Müller viria a cometer suicídio em junho de 1966. Uma ótima poeta lírica, de textos delicadíssimos, apenas nos últimos anos sua escrita tem encontrado a acolhida que merece e saído da sombra da obra de Heiner Müller, especialmente após a publicação do volume Inge Müller: Gesammelte Texte (Inge Müller: Textos Reunidos), em 2002.
Na década de 60 Heiner Müller começaria a ter seus primeiros problemas com as autoridades comunistas da Alemanha Oriental. Em 1961, sua peça Die Umsiedlerin oder Das Leben auf dem Lande é proibida após sua estreia. Seus textos, críticos não apenas contra o Regime de Hitler mas também contra a sua sociedade contemporânea, começam a ser encenados no Oeste, o que torna ainda mais abrasiva sua relação com o governo da Alemanha Oriental. Seus trabalhos mais importantes incluem Mauser (1970), Germania Tod in Berlin (1971), Die Hamletmaschine (1977) e as maravilhosas Der Auftrag (A Missão), de 1979, e Medeamaterial (1982).
Muito mais conhecido como dramaturgo, com publicações apenas esparsas de poemas, o Heiner Müller poeta teria este lado de sua produção textual divulgado apenas com a publicação póstuma de suas Obras Completas em 1998, das quais o primeiro volume contém seus poemas. Em alguns textos não há, porém, grande quebra estilística ou distinções textuais entre os "poemas", como o longo "Ajax zum Beispiel" (Ajax por exemplo), e certas "peças" como Die Hamletmaschine (1977) ou Medeamaterial (1982). É que Heiner Müller era um mestre do monólogo dramático em verso, tradição que ainda une poesia e teatro, mesmo nos dias de hoje.
No entanto, na maior parte dos casos, pode-se dizer que Heiner Müller integra com seus poemas a tradição lírica alemã, mas aquela que encontramos nas Lieder (canções) de Heinrich Heine, de certa forma talvez também a de Christian Morgenstern (1871 – 1914), tradição que teria em Bertolt Brecht (1898 - 1956) um continuador e mestre, e, por exemplo, em um poeta mais jovem como Thomas Brasch (1945 - 2000), sobre o qual já escrevi aqui, um renovador. Trata-se de uma parte da tradição poética germânica, incrivelmente telúrica, sempre muito pouco divulgada no Brasil, onde se traduz com mais frequência a ala órfica desta poesia, a de Novalis, Hölderlin, Rilke e Trakl, até chegar, no pós-guerra, a poetas como Paul Celan e Ingeborg Bachmann.
O trabalho textual de Heiner Müller, tanto aquele destinado ao palco como os seus poemas, poderia ter uma acolhida interessante no debate poético contemporâneo brasileiro, especialmente com o que me parece ser uma insistência quase intransigente sua em ver o escritor, seja ele poeta ou dramaturgo, como um artesão interventor, intelectual presente nos debates de sua República. Ele está certamente fincado na tradição clássica, mesmo nestes aspectos. Sua erudição jamais é postiça - é usada de forma pontual, criando analogias com o seu próprio tempo, sempre para intervir em seus debates. É o uso que fizeram de sua erudição clássica outros grandes poetas, como o polonês Zbigniew Herbert (1924 - 1998), contemporâneo praticamente exato de Heiner Müller, ou o russo mais jovem Joseph Brodsky (1940 - 1996). Imagino o que Müller pensaria das veleidades "trans-históricas" de certos poetas contemporâneos no Brasil.
Eu traduzi o poema "Klage des Geschichtsschreibers" (Lamento do historiador) há dois anos, e a tradução foi publicada no segundo número impresso da Modo de Usar & Co. (Rio de Janeiro: Berinjela, 2009). Nestes últimos dias, com todos os acontecimentos que parecem encavalar-se em nossa visão e audição, revoluções, maremotos e assassinatos políticos, vi-me pensando neste texto de Heiner Müller.
Lamento do historiador
No quarto livro dos
ANNALES Tácito queixa-se
Pela duração do tempo de paz, mal interrompido
Por disputas fronteiriças pueris, com a descrição
Das quais precisa contentar-se, cheio
De inveja de seus predecessores
Que tiveram à disposição guerras mamute
Com imperadores à frente, exigindo uma Roma
Sempre maior, povos subjugados, reis cativos
Revoltas e crises de estado: material dos bons.
E Tácito desculpa-se junto a seus leitores.
Eu, por minha vez, dois mil anos depois dele,
Não preciso desculpar-me e não posso
Queixar-me da falta de bom material.
(tradução de Ricardo Domeneck)
Klage des Geschichtsschreibers: Im vierten Buch der ANNALEN beklagt sich Tacitus / Über die Dauer der Friedenszeit, kaum unterbrochen / Von läppischen Grenzkriegen, mit deren Beschreibung er / Auskommen muss, voll Neid / Auf die Geschichtsschreiber vor ihm / Denen Mammutkriege zur Verfügung standen / Geführt von Kaisern, denen Rom nicht gross genug war / Unterworfene Völker, gefangene Könige / Aufstände und Staatskrisen: guter Stoff. / Und Tacitus entschuldigt sich bei seinen Lesern. / Ich meinerseits, zweitausend Jahre nach ihm / Brauche mich nicht zu entschuldigen und kann mich / Nicht beklagen über Mangel an gutem Stoff.
O texto, escrito em agosto de 1992, é de uma ironia mordaz e dolorida, como em tantos de Heiner Müller. O poeta morreu em 1995. Nós estamos (ao que parece) vivos, também cheios de material, do qual não sabemos, no entanto, se Tácito reclamaria.
Seguem abaixo algumas traduções recentes e inéditas de poemas do alemão.
--- Ricardo Domeneck
publicado originalmente na
Modo de Usar & Co. a 4 de maio de 2011.
§
(Excerto do filme I was Hamlet, de Dominik Barbier. Filmado no Cemitério Judaico de Weissensee, arredores de Berlim.)
POEMAS DE HEINER MÜLLER
Traduções de Ricardo Domeneck
Tristão 1993
Ontem vi em meu filho um olhar estranho
Que durou uma notícia trágica um comercial
Eu li nos olhos do meu filho
Que já viram coisas demais a pergunta
Se o mundo ainda vale o esforço que é a vida
Pelo instante que durou uma notícia trágica
Um comercial eu fiquei em dúvida
Se desejava a ele uma vida longa
Ou por amor uma morte prematura.
:
Tristan 1993
Gestern hatte mein Kind einen fremden Blick
Eine Schreckensnachricht einen Werbespot lang
In den Augen meines Kindes las ich
Der zu viel gesehen hat die Frage
Ob die Welt die Mühe des Lebens noch aufwiegt
Einen Augenblick eine Schreckensnachricht
Einen Werbespot lang war ich im Zweifel
Soll ich ihm ein langes Leben wünschen
Oder aus Liebe einen frühen Tod
§
O pai
I.
Um pai morto teria sido talvez
Melhor pai. Ainda melhor
é um pai nado-morto.
Sempre nova cresce a grama sobre a fronteira.
A grama tem que ser arrancada
De novo e de novo que sobre a fronteira cresce.
II.
Eu queria que meu pai tivesse sido um tubarão
Que estraçalhara quarenta baleeiros
(E eu aprendido a nadar neste sangue)
Minha mãe uma baleia-azul meu nome Lautréamont
Morto em Paris
Em 1871 desconhecido
:
Der Vater
I.
Ein toter Vater wäre vielleicht
Ein besserer Vater gewesen. Am besten
Ist ein totgeborener Vater.
Immer neu wächst Gras über die Grenze.
Das Gras muß ausgerissen werden
Wieder und wieder das über die Grenze wächst.
II.
Ich wünschte mein Vater wäre ein Hai gewesen
Der vierzig Walfänger zerrissen hätte
(Und ich hätte schwimmen gelernt in ihrem Blut)
Meine Mutter ein Blauwal mein Name Lautréamont
Gestorben in Paris
1871 unbekannt
§
A SÓS COM ESTES CORPOS
Governos utopias
Cresce a grama
Entre os trilhos
As palavras apodrecem
No papel
Os olhos das mulheres
Ficam frios
Adeus amanhã
STATUS QUO
:
ALLEIN MIT DIESEN LEIBERN
Staaten Utopien
Gras wächst
Auf den Gleisen
Die Wörter verfaulen
Auf den Papier
Die Augen der Frauen
Werden kälter
Abschied von morgen
STATUS QUO
§
Olhar estranho: despedida de Berlim
De minha cela perante a folha em branco
Na cabeça um drama para plateia nenhuma
Surdos os vencedores os vencidos mudos
Sobre a cidade estranha um olhar estranho
Cinza-amarelas passam as nuvens sobre mim
Branco-cinza cagam as pombas sobre Berlim
:
Fremder Blick: Abschied von Berlin
Aus meiner Zelle vor dem leeren Blatt
Im Kopf ein Drama für kein Publikum
Taub sind die Sieger die Besiegten stumm
Ein fremder Blick auf eine fremde Stadt
Graugelb die Wolken ziehn am Fenster hin
Weißgrau die Tauben scheißen auf Berlin
§
Fim dos manuscritos
Ultimamente quando quero escrever algo
Uma frase um poema um ditado
Minha mão rebela-se contra a vontade de escrever
Que minha cabeça tenta forçar sobre ela
A letra torna-se ilegível Só a máquina de escrever
Mantém-me pairando sobre o abismo do silêncio
Que é o protagonista do meu futuro
:
Ende der Handschrift
Neuerdings wenn ich etwas aufschreiben will
Einen Satz ein Gedicht eine Weisheit
Sträubt meine Hand sich gegen den Schreibzwang
Dem mein Kopf sie unterwerfen will
Die Schrift wird unlesbar Nur die Schreibmaschine
Hält mich noch aus dem Abgrund dem Schweigen
Das der Protagonist meiner Zukunft ist
§
NOTA DO TRADUTOR: Todos os poemas foram extraídos do volume
Ende der Handschrift (Frankfurt: Suhrkamp, 2000)
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