quarta-feira, 30 de março de 2011

Pequeno diário madrilenho, com notas sobre Córdova e Berlim, povoadas de poetas e poemas.

§ - CÓRDOVA, ainda.

Antes de partir para Madri, depois das apresentações no festival, passei o dia perambulando por Córdova, lendo, escrevendo. A grande experiência, no entanto, ocorreu indoors, ou throughdoors talvez devesse dizer, dentro da Mesquita-Catedral. Em poucos prédios tive tal susto maravilhado, esta espécie de soco est-É-tico.





Posso mencionar dois outros prédios onde tive esta experiência, no sentido mais preciso da palavra "experiência", este soco est-é-tico, cada um à sua maneira distinta: a Igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto, aquela igreja-útero de Antônio Francisco Lisboa, e o Judisches Museum (Museu Judaico) aqui em Berlim, aquele "vazio espaçoso" de Daniel Libeskind.

Ali na Mesquita-Catedral seria possível e o mais apropriado dos locais para discutirmos a historicidade da arte, a historicidade flexível da criação artística. É um local onde me parece tomar forma o casamento intrínseco e inseparável, que uns veem como dualidade, de transcendência e imanência. Não sei explicar de outra maneira.

Ali se entende como era ético o minimalismo de João Cabral de Melo Neto quando este diz no famoso "A Palo Seco", de Quaderna (1960):


A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,

as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.



Murilo Mendes, por sua vez, escreveria em "Córdova", do livro Tempo espanhol (1959):


Toda nervo e osso, contida
Em labirintos de cal
E em pátios de vida secreta,

Córdova áspera e clássica
Alimentada de África.



Fora da mesquita-catedral, caminhei um pouco, sentei-me diante das Muralhas dos Reis Cristãos (Murallas de los Reyes Cristianos) e comecei um poema, tentando dar conta daquele soco. Não consegui, mas quero seguir trabalhando nele.


§


MADRI, então.


Cheguei a Madri com tudo isso na cabeça. Fiquei hospedado na casa da poeta espanhola Ajo, minha querida, que pratica um minimalismo-soco todo ético e prático à sua própria maneira, ainda que muito diferente do de Cabral. Veja abaixo um dos poemas de Ajo em tradução minha e no original:


Fechaduras de cinzas,
cicatrizes com zíper
e lágrimas de alumínio,
embrulhado em algodão
carrego o que me falta.


Cerrojos de ceniza,
cicatrizes con cremallera
y lágrimas de hojalata,
envuelto en algodones
llevo lo que me falta.



Visitei algumas livrarias e fiquei namorando milhares de livros que queria muuuuito poder trazer da Espanha para a Alemanha, mas não podia comprar muita coisa. Além de algumas antologias de poesia medieval espanhola (os estupendos poetas árabes, judeus e occitanos da península), queria encontrar o romance Tadeys, do argentino Osvaldo Lamborghini (1940 - 1985), mas não consegui encontrá-lo em qualquer livraria. Como estava na Espanha, achei por bem ler um espanhol e acabei comprando um romance do Enrique Vila-Matas, a quem ainda não tinha lido. Não sabia qual, e acabei optando por Bartleby Y Compañía (2001), pois (sendo bem sincero) era curto e eu sabia que mesmo que acabasse não gostando do trabalho ou estilo de Vila-Matas, o livro seria ao menos entertaining. É que confesso que as resenhas e artigos que tinha visto pela imprensa e blogosfera brasileiras nos últimos tempos me tinham dado uma certa canseira. Mas, ora, sabemos que nós escritores e poetas a-do-ra-mos ler historinhas de vida sobre outros escritores e poetas, não é mesmo? Já comecei a ler e estou curtindo. Há passagens realmente memoráveis e muito bem-escritas, como quando ele relata sobre a escritora que acabara paralisada por culpa de Robbe-Grillet e Barthes. É muito elegante e divertidíssimo. Escrevo mais quando terminar.

Passei a tarde no Museu Rainha Sofia (Museo Reina Sofía), pois da última vez que estive em Madri, apresentando-me justamente no próprio Reina Sofía, não tive tempo de visitar as exposições, ocupado com passagens de som e preparativos para a performance. Havia uma exposição muito boa com curadoria de Georges Didi-Huberman chamada Atlas. ¿Como llevar el mundo a cuestas?, partindo da biblioteca-conceito de Aby Warburg para criar uma coleção de trabalhos entregues ao trabalho atlético de catalogar o mundo, uma ânsia taxinômica e taxidérmica, nominalista, não sei. Era bem boa.





Vi também uma pequena exposição do argentino Roberto Jacoby que me interessou muito. Não conhecia seu trabalho.





Vi ainda, é claro, as salas permanentes com Picasso e Dalí, os velhotes datados. Estas não me interessaram muito. Encontrei-me então com Ajo e fomos gravar minha entrevista para seu programa de rádio semanal, para o qual convida poetas, artistas e músicos para apresentarem suas canções favoritas e, é claro, dar uma canjinha do próprio trabalho. Li meu poema "Texto em que o poeta celebra o amante de vinte e cinco anos" na tradução de Cristian De Nápoli para o castelhano, e comentei as seguintes canções divescas:


"Sat in the lap", Kate Bush.
"Gloria", Patti Smith.
"Iceblink Luck", Cocteau Twins.
"Amor, meu grande amor", Ângela Ro Ro.
"Is this desire", PJ Harvey.
"Cowboys", Portishead, na voz da magnífica Beth Gibbons.


Ajo gravou também, na mesma ocasião, o programa que irá ao ar uma semana antes do meu, com o cantautor dominicano Alex Ferreira, muito simpático.





Saímos da gravação e fomos para a Libreria Buena Vida, onde ocorria a apresentação do primeiro romance do poeta Carlos Pardo, que conhecera em Berlim no ano passado, em um evento do Instituto Cervantes. Carlos Pardo, que nasceu em 1975, é um dos poetas mais respeitados de sua geração, também editor, crítico literário e organizador de eventos na capital espanhola. Já escrevi sobre ele aqui.


El retrato español
Carlos Pardo

Son periferia,
no vienen de muy lejos.
Abre el grupo
una mujer, terrosa
la barbilla
por una quemadura
-chándal,
cazadora de cuero-
con un surco de carne
enroscado a la oreja.
Esperan la apertura
del museo.
Vienen a reconocerse.

Los que son como yo
o son yo sobrellevan
cada uno
la carga del más próximo.
Nos deprimimos juntos.
Celebramos
el anhelo aplazado,
y si nuestro retrato suma invariablemente cero
y la lluvia de fondo natal nos anonada,
no querremos cumplirlo.

En el origen
una mesa ridícula.
Paredes amarillas
con recortes de prensa.
Al ritmo episcopal de los equinos
del paseo, un hombre inútil mezcla
amor e ideología.

Nosotros no
tenemos hogar.
Hacemos cola
bajo el apóstol pintor.
-Otro con tentaciones.
-Es el mismo.




Pardo estreia agora como prosador. A discussão foi interessante. Depois, reunido em roda com Pardo, a poeta madrilenha Sandra Santana e com o poeta e tradutor peruano Martín Rodríguez-Gaona, o romancista Andrés Barba, que conheci ali, virou para mim e começou a perguntar sobre uma "importante escritora brasileira" que havia ficado famosa apenas com seu diário. É que o romance de Carlos Pardo usa muitos elementos da literatura memorialística, e a conversa rodava por "autobiografia como gênero literário". Não conseguia pensar a quem ele se referia. Disse eu que os escritores brasileiros mais famosos por sua memorialística eram Joaquim Nabuco e Pedro Nava. Só fui perceber de quem ele falava quando ele mencionou que a autora havia sido traduzida por Elizabeth Bishop para o inglês: só podia se tratar de Helena Morley e seu Minha Vida de Menina (1942). Fiquei muito impressionado que esta escritora brasileira pipocasse em uma conversa na Espanha. Confessei não haver lido o livro, recomendei a eles Nabuco e Nava, e, como a discussão naquele momento havia guinado para autobiografismo fictício e ciladas da memória, que lessem Dom Casmurro, o que, de qualquer maneira, já deveriam ter feito.

Havia marcado de me encontrar ali com minha amiga, a já mencionada Sandra Santana, excelente poeta, historiadora literária, crítica e tradutora. Já traduzi poemas dela para a Modo de Usar & Co.. Sandra tem-se firmado como uma das personalidades poéticas e críticas mais importantes de sua geração, especialmente em Madri. A prestigiosa editora Acantilado acaba de lançar, numa bela edição, seu importante estudo crítico e histórico El laberinto de la palabra: Karl Kraus en la Viena de fin de siglo (Barcelona: Acantilado, 2011).





Ela me presenteou com um exemplar, quero muito lê-lo. Sandra já lidara com Karl Kraus antes, traduzindo e publicando em 2005 uma antologia de poemas do austríaco. No ano passado, Sandra ganhou um importante prêmio literário espanhol por sua tradução ao espanhol da obra poética completa do também austríaco Peter Handke. Nós dois compartilhamos o interesse e paixão pela poesia de outra austríaca, a maravilhosa Friederike Mayröcker.

A própria Sandra Santana é dona de uma das mais sutis e inteligentes vozes poéticas contemporâneas dentre as que tenho a sorte de conhecer. Leia abaixo um exemplo, em minha tradução e no original, texto de que gosto muitíssimo:



Rupturas dissimuladas sob uma carinha sorridente

Sempre detecto um gesto
de incredulidade
quando conversamos sobre os frágeis mecanismos
ocultos sob uma aparência infantil.

Como você não crê neles, derrubou-o
e me encarou triunfante
ao ver a superfície intacta apesar do impacto.

Imagine o que senti ao erguê-lo
e escutar esta peça solta em seu interior.


:


Rupturas disimuladas tras una carita sonriente
Sandra Santana

Siempre detecto un gesto
de incredulidad
cuando te hablo acerca de los frágiles mecanismos
ocultos tras una apariencia infantil.

Como no crees en ellos, lo dejaste
caer y me miraste victorioso
al ver su superficie intacta a pesar del impacto.

Imagina lo que sentí al recogerlo
y escuchar esa pieza suelta en su interior.




No dia seguinte, tomei café com meu amigo Alexander Ossia, revi Sandra Santana e visitei uma ótima exposição de vídeoarte na Caixa Forum, com trabalhos (muito, muito, muito bons) de Julian Rosefeldt ("Lonely Planet", 2006); Isaac Julien ("Fantôme Créole", 2005); Runa Islam ("Tuin", 1998); Kerry Tribe ("Double", 2001); Paul Chan ("1st Light", 2005); Omer Fast (Godville, 2005); Mungo Thomson ("New York, New York, New York, New York", 2004); e Ian Charlesworth ("John", 2005).





§ - BERLIM, agora.


Voltei a Berlim. Está friíssimo. Mas hoje é quarta-feira e pretendo me acabar de dançar (e beber para comemorar que tudo fora bem na Espanha) na nossa SHADE inc enquanto escuto o meu amigo (e homem lindo) Uli Buder, mais conhecido como Akia, discotecando.





Uli Buder é um dos músicos mais talentosos que tenho a sorte de conhecer, principalmente porque posso abusar do seu talento e colaborar com ele. Para a peça vídeo-textual que criei para a performance em Córdova, Uli foi responsável pela parte sonora. Acima, você pôde ver um vídeo da primeira vez que ele tocou ao vivo no meu evento das quartas-feiras, em 2009.





Quanto à peça para as Soledades, acho que só na semana que vem. É bom estar em casa, com as baterias recarregadas.


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domingo, 27 de março de 2011

Minúsculo relatório de poesia cordovesa


Minha performance ontem correu bem, apresentei minha peça baseada nas Soledades e tive o prazer de dividir o palco pela segunda vez com a espanhola Miriam Reyes e com o mexicano Eugenio Tisselli. A performance foi gravada, assim que for possível devo subir o vídeo para a Rede. Falarei mais a respeito da minha peça quando voltar a Berlim.

Por ora, enquanto descanso um pouco das caminhadas de hoje por Córdova no pátio da pensão charmosinha onde estou hospedado, penso um pouco sobre a cidade e sigo lendo os poetas cordoveses que têm acompanhado minha viagem. Este último mês estive mergulhado nas Soledades (1613) para compor minha performance vídeo-textual. Esta semana, antes de vir à cidade e agora durante minha estada, passei a conviver com a poesia de outros cordoveses, alguns descobertos aqui, outros já companheiros de minha viagem biopoética, como a princesa Wallâda bint al-Mustakfî (994-1091):


Quando anoitecer espera pela minha visita
pois a noite é quem mais guarda segredo.
O que sinto por ti é tal que se fosse o Sol, não nascia,
e a lua cheia não se erguia e as estrelas deixavam de girar.



ترقّب إذا جنّ الظلم زيارتـــــــــــــي __ فإنّي رأيت الليل أكتم للســـــــرّ
وَب منك ما لو كانَ بالشمسِ ل تلح __ وبالبدر ل يطلع وَبالنجم ل يسر


(Wallâda bint al-Mustakfî, tradução de Nádia Bentahar e André Simões, publicada originalmente na Revista Ítaca número 2)


A princesa Wallâda nasceu, viveu e compôs seus poemas em Córdova, na época em que a cidade foi provavelmente o maior centro cultural da Europa, capital do al-Ândalus. A princesa escandalizou a época ao manter uma relação amorosa com o jovem poeta Ibn Zaidûn (1003 - 1071), uma década mais jovem. Ele se tornaria um dos maiores poetas do al-Ândalus. Ibn Zaidûn por sua vez imortalizou Wallâda em seus versos, e a relação entre os dois poetas se tornaria matéria lendária para outros poetas. O fim do amor, como sempre, não foi dos melhores. Zaidún alcançou o posto de vizir, mas sua relação com Wallâda não era vista com bons olhos e o poeta caiu em desgraça. Talvez mostrando que relações amorosas não mudam tanto, os poemas de amor entre ambos se transformariam em sátiras ferozes. Ao ser substituído por outro homem na cama da princesa-poeta, Ibn Zaidún escreveu os versos abaixo, que mostro em versão minha a partir da tradução castelhana:


Me censurais que ele me substitua
nos afetos daquela a quem amo;
mas não há nisso desonra alguma:
ela era um manjar delicioso
e sua melhor parte a mim coube,
o resto deixei para este rato.



(Ibn Zaidún, versão livre de Ricardo Domeneck a partir de uma tradução castelhana de Manuel Francisco Reina, Antología de la poesía andalusí).


Após passar o tempo que passei imerso no labirinto de signos peregrinos nas veredas tortuosas de hipérbatos das Soledades, enquanto caminhava pelas ruas de Córdova e pausava para ler seus poetas, os textos amorosos e então rancorosos de Wallâda e Zaidún, pareceu-me apropriado este alerta de Luís de Gôngara em um de meus sonetos favoritos:


La dulce boca que a gustar convida
un humor entre perlas distilado,
y a no invidiar aquel licor sagrado
que a Júpiter ministra el garzón de Ida,

amantes, no toquéis si queréis vida,
porque entre un labio y otro colorado
Amor está, de su veneno armado,
cual entre flor y flor sierpe escondida.

No os engañen las rosas, que a la Aurora
diréis que, aljofaradas y olorosas,
se le cayeron del purpúreo seno;

manzanas son de Tántalo y no rosas,
que después huyen del que incitan ahora,
y sólo del Amor queda el veneno.



(Luís de Gôngora, 1584)


Conversei muito sobre poesia com os curadores da exposição "Soledades 2.0", os amáveis Antonio Jesús Luna e José García Obrero. Perguntei a eles quem seria o mais respeitado poeta cordovês contemporâneo ainda vivo. Falaram-me então de Pablo García Baena (n. 1923), um dos últimos membros vivos do chamado Grupo Cántico dos anos 40. Os poetas do grupo esposaram uma poética de lírica pura, de linhagem mística, talvez ligada (aos meus olhos) ao trabalho de Juan Ramón Jiménez (1881 – 1958). Leia abaixo o poema "Todoslossantos", de Pablo García Baena, incluído em seu livro Antes que el tiempo acabe (1978):


Todoslossantos

Suena la noche, suena el cautiverio
tenebroso, cadenas arrastradas
por el mármol. Inician las maderas
y el metal la batalla de la orquesta,
la nublada obertura crece suave,
gotea la cera sobre el paño negro.
Si pudieras dormir. Agazapado
el volatín de los timbales salta,
ríe, te trae desnudo hasta la cama,
bufón de cresta roja, cascabeles.
Ya no puedes dormir. Estás conmigo,
ah, vana sombra, aparta tu ternura,
tu torrente de lágrimas: la grave
camelia del oboe se desangra.
Ahí está la mancha. Leve, asciende,
voces humanas, órgano, los tubos
plateados del álamo en el bosque
tienen tu voz. Apaga los blandones,
retira antifonarios. Barbitúricos,
dosis letal de fiebre y laberinto,
tu cabellera flota todavía
por amargos violines del insomnio.
Sube el fagot, el panteón cerrado
ilumina la ojiva de las arpas,
pabilos crujen junto al hueco oscuro.
Humo es el sauce y su atabal ceniza.
Bebe en mi corazón. Cómo estremecen
las lilas, las violas, las sonoras
cajas el ritmo marcan de latidos.
Vuélvete a la pared. Están los sueños
exhumando el espectro. Rosas abren
por las trompas. Estallan las carcasas
de primavera, besos, huellas fulgen.
Duerme. El velorio sigue de las flautas,
pavanas para un tiempo ya difunto,
barraganía inútil del recuerdo.




Trata-se de poesia lírica sofisticada e culta, como a de outros poetas do grupo, mas a muitos na Espanha (pelo que pude entender em certos artigos) o trabalho pareceria historicamente demasiado absenteísta – o país emergia da sangrenta Guerra Civil, que deixara mortos milhares (entre eles vários poetas importantes da década de 20), exilando tantos outros. Como não somos espanhóis, talvez possamos nos abster por completo desta polêmica. Pessoalmente, não por questão política mas por ter, ousaria dizer, apenas uma sensibilidade mais telúrica, confesso apreciar mais um poeta como o basco Gabriel Celaya (1911 – 1991), contemporâneo dos poetas ligados ao Grupo Cántico. Recomendo muitíssimo o trabalho de Celaya. Mas vários poemas de Baena dentre os que li nos últimos dias me pareceram mesmo muito bonitos. Pablo García Baena estava entre os mais jovens do grupo, que fora fundado por Ricardo Molina (1917 - 1968) e Juan Bernier (1911 - 1989). Outro deles, dentre os que pude ler nos últimos três dias, parece ser um pouco mais da minha laia: trata-se de Vicente Núñez (1926 - 2002). Gostei muito deste poema:


Puesta del sol

En tanto que de rosas
hacemos una piña...
San Juan de la Cruz


La cueva sin nadie que conocía el agua
y las espátulas de pizarra del mar contra las rocas
no eran una música más arriba,
o que provocasen siquiera frente a barcas de palo.
El frío del Altísimo,
tras la solar hoguera de los montes,
un silbido espeso derramó y palpitábamos.
«Ángeles son, y no contadas naves».
Y cuando lo decías,
sin ese esfuerzo que inutiliza el recuerdo,
un pecho tierno me brotó de repente:
ángeles son, dejados a su avío;
en tanto que de gozo se me apiñó la dicha.


(Vicente Núñez, do livro Poemas ancestrales, 1980)


Mas agora chego ao que me deixa mais feliz: descobrir um poeta contemporâneo cordovês de qualidade que é alguém praticamente de minha idade e que está escrevendo uma lírica amorosa com inteligência e sensibilidade, sagacidade e ironia que me parecem ligá-lo a um poeta como Ibn Zaidún: refiro-me a Pablo García Casado, que participou de uma mesa redonda durante o evento em que apresentei minha performance. Não conversamos. Mas os curadores da exposição e ciclo de performances me disseram: "se você quiser ler um cordovês contemporâneo, leia Pablo García Casado."

Eu o fiz e não me arrependi. Pablo García Casado nasceu em Córdova em 1972. Estreou em 1997 com o volume Las afueras, publicando depois El mapa de América (2001) e Dinero (2007). É do seu livro de estreia que saíram os poemas abaixo. Poemas de Pablo García Casado, extraídos de Las afueras (1997):


Las afueras

por más que se extiendan las ciudades hasta juntarse
unas con otras por más desengaños que el sexo la muerte
o las oposiciones nos deparen quedarán siempre las afueras

la oscuridad de los polígonos industriales la ineficacia
el ministerio de obras públicas por más que se empeñen
colectivos ciudadanos asociaciones de vecinos seguirán

amaneciendo los restos del amor en las afueras



§


Número seis

me besa me desnuda hace de mí lo que quiere
estoy borracha todo me da vueltas tengo que ir
al baño dos veces para no vomitarle encima

se marcha temprano a toda prisa no hay despedida
nota justificativa o teléfono de contacto sólo dudas
todos los hombres son príncipes a las cinco de la mañana

todas las putas son tú cuando despiertas y no hay nadie



§


parís, texas


por qué travis qué hay de esa oscura pregunta
por qué la casa en ruinas por qué él por qué ella
por qué el verano de mil novecientos setenta y uno

qué tuvo que pasar qué clase de química por qué
la huelga en el sector metalúrgico por qué el atasco
por qué llegaron rendidos y aún así se besaron

como si mi vida les fuera en ello



§


Dixán

por qué se secará tan lenta la ropa por qué persisten
las manchas de grasa de fruta y de tus labios
si dixán borra las manchas de una vez por todas

por qué la aspereza de las prendas la sequedad de su tacto
si pienso en tus manos en tu modo de mirarme de decirme
que por culpa del amor habrá que lavar las sábanas de nuevo

preguntas tristes tristes como todos los anuncios de detergente
y es que no encuentro mejor suavizante que tus manos
en esos bares supermercados desnudos de la noche



§


Ford

como un oso que despierta del letargo
nuestro ford va derritiendo la nieve del parabrisas
pongo las maletas en el asiento trasero repaso el mapa de carreteras

ahora llegas tú medio dormida
sin pintar sin arreglar rota por la noche pasada
una noche de preguntas de miedo de ropa que entra

y sale de los armarios una noche de nevera desconectada
pero hoy es distinto y te sientas a mi lado como antes cuando viajábamos sin prisa
a través de bosques y maizales en esas noches
de faros encendidos en busca del océano

el ford asciende lento por la colina
quiero viajar al sur al sur de todos los proyectos



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sábado, 26 de março de 2011

Em Córdova, terra de Gôngora, participando do festival "Cosmopoética: Poetas del Mundo en Córdoba - 450 Años de Góngora"

Cheguei ontem a Córdova, terceira maior cidade da Andaluzia, cidade natal do grande poeta al-andalus Ibn Zaidun (1003-1071) e da princesa-poeta Wallâda (994-1091), terra natal de Averróis (1126 — 1198) e Maimônides (1135 — 1204), e, é claro, de Don Luís de Góngora y Argote (1561 – 1627).

Estou na cidade a convite do festival Cosmopoética - Poetas del Mundo en Córdoba para um evento paralelo em comemoração dos 450 anos do nascimento do poeta barroco, que se chama Soledades 2.0 - Poesía digital en el año Góngora. Fui convidado, com a poeta espanhola Miriam Reyes e o mexicano Eugenio Tisselli, a criarmos performances dentro da linha de nossos trabalhos que tivessem como base as Soledades (1613). Há ainda uma exposição de peças poéticas digitais, para a qual criaram trabalhos especialmente para a ocasião os espanhóis Javier Fernández Sánchez, Iñigo Orduña e James Nelson, assim como os argentinos Belén Gache e Claudio Molinari.

A exposição traz também peças de poetas experimentais como os brasileiros Augusto de Campos e André Vallias, e ainda Billy Collins, Nicolas Clauss, Jörg Piringer, Alison Clifford, Ana María Uribe, Dorothee Lang, Zahra Safavian, Allan Bigelow, Isaías Herrero e Ainize Txopitea.


Vocês podem encontrar informações sobre o festival e sobre todos os convidados AAQQUUII.


Sobre a peça que preparei, com vídeo, texto e peça sonora, escreverei quando voltar a Berlim. Subirei esta noite ao palco e começarei minha apresentação com:


"Eia, Gôngora! A língua de Gregório de Matos te saúda."

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quarta-feira, 23 de março de 2011

"Elegia para a Rainha dos Epitalâmios" ou "The Day Liz Died"



Elegia para a Rainha dos Epitalâmios
ou The Day Liz Died

E era o primeiro dia do ano
em que eu saía de casa
sem cachecol e capuz.
Não era exatamente o nirvana,
mas era um começo.
Tudo o que eu queria era
um café como eu
me sentia, forte e barato,
e na calçada meus passos
tinham aqueles ares
de segurança pública,
como entre pagar o seguro
de saúde e comprar a revista
preferida de música,
não havia motivos
para hesitações: consistimos
em uma série de prioridades
conflituosas, coexistentes.
Sabia dos mortos no Japão
e na Líbia
mas, com certa lábia,
tinha certeza e convicção
de que me convenceria
de merecer uma xícara
de café num mundo
em que Tânatos
estaria de férias
há anos.
Aí soube de Liz Taylor
e do Grim Reaper.
Filmes há décadas ilustram a morte
como o instante em que a vida passa
diante dos nossos olhos
– “como num filme” –
diz-se. Talvez instância
de autopromoção da sétima
arte. Mas em teu caso, criatura
de Deus, quando a existência
foi toda gasta em estúdios,
cenários de fundo falso e filmes,
será que ficaste presa no limbo
de um disco
riscado, um eterno retorno
a la Nietzsche
como se perante um espelho
pusessem uma série
de espelhos, ou quem sabe
como os cineastas recentes
que abusam do tropo e truque
do filme dentro do filme?
De todos os teus óvulos ejetados
e quilos de maquiagem borrada
por lágrimas restará hoje
em alguma tela de TV um Best Of
de tuas brigas
ou a contagem regressiva
dos husbands.
É assim nossa ânsia
de consumir,
ânsia que não se consuma.
Ela não te era estranha.
E nesta manhã,
quando a Cadela Inimiga
adentrou teu quarto,
não havia nem uma Lassie
que ladrasse,
não havia um corcel alazão
que fugisse a galope,
não havia Richard Burton
nem Marcus Antonius
a proteger-te com músculos
e tropas.
Só, tu e tuas trompas
de falópio.
Tantas coisas me ensinaste,
Rainha dos Epitalâmios,
sobre a vida com gônadas
e hormônios,
sobre homens e uísque,
ensina-me agora
como se morre. Finjo
então que, já do meio
do Aqueronte,
deixando trêmulo
o próprio Caronte,
ouço a sua voz
dizer: “Ricardo, a morte
não é épico histórico,
nem filme com 65 trocas
de roupas,
não é produzida pela Disney,
nem baseia-se em peça
indicada ao Pulitzer;
a morte é sempre Off-Broadway,
ocorre, desde as tragédias gregas,
fora de cena,
estreia-se nela sempre como amador
e ela mal emula filmes B de terror
em produções televisivas.
Quanto à minha vida,
tudo o que digo é: I stood
warned
”. Soube então como
que por instinto
que a morte decerto
nem tivera o senso
de humor de metamorfosear-se
em áspide
e esconder-se num cesto
para buscar-te.
Deve ter sido
lacônica e ríspida.
Indignado, com a xícara
a meio caminho da boca,
penso em como a morte
não poupara Afrodite
nem sua reencarnação
como Vênus; levara
Cleópatra
e também Nefertiti.
E que Liz Taylor agora
era como elas todas
abstrata, icônica
– como uma lápide.
Soube aí que o mundo
não passa de um vale
de reprises sem sequels
e com nossas próprias mãos
carregamos nossas sequelas
ainda que as escondamos
sob diamantes de 68 quilates.



Berlim, 23 de março de 2011.


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Hoje à noite na SHADE inc: performance da francesa ButterClock e discotecagens dos alemães Marius Funk e Armin von Milch



Voltarei amanhã, se tudo correr bem, à discussão sobre a historicidade do fazer poético e a conversa sobre o poeta no seu tempo e local. Estou na correria para terminar a nova peça que apresento em Córdoba, Espanha neste sábado (falarei sobre isso na sexta) e fazendo os últimos preparativos para o evento desta noite em nossa SHADE inc, o evento semanal que co-organizo no clube Neue Berliner Initiative. O programa de hoje:



§ - performance da francesa Laura Clock, que se apresenta como Butterclock:


"Alaska", ButterClock.


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§- Discotecagem do alemão Marius Funk. Ouça seu último mix, muito bom.



Mix de Marius Funk


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§- Discotecagem de Armin von Milch, mais conhecido como Milch. Produziu alguns dos artistas pop alemães mais conhecidos dos últimos anos, como Stereo Total e Jens Friebe. Abaixo, um dos seus sets mais recentes, no clube berlinense Picknick:


MILCH at Picknick, Berlin 2011 by MILCH
Set do produtor alemão Milch no clube Picknick, 2011.

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sábado, 19 de março de 2011

A tristeza de perceber que à frente de seu tempo talvez apenas os poetas e artistas pré-distópicos.



Em um de seus mais importantes textos críticos, a palestra Composition as explanation que proferiu em 1926 em Cambridge e Oxford, Gertrude Stein declara que "No one is ahead of his time, it is only that the particular variety of creating his time is the one that his contemporaries who also are creating their own time refuse to accept."

No segundo número impresso da Modo de Usar & Co. nós publicamos a tradução de Andrea Matheus para este que me parece um dos textos críticos modernistas mais necessários para o debate poético e est-É-tico contemporâneo no Brasil. Na versão de Andrea Matheus lemos "Ninguém está à frente de seu tempo, é só que a variedade particular de criar o seu tempo é aquela que seus contemporâneos que também estão criando seu próprio tempo se recusam a aceitar."

A declaração de Gertrude Stein sempre me pareceu muito saudável como contrapartida a certa crítica de tom farsesco que insiste por vezes no discurso sobre o artista que estava à frente do seu tempo, mas usado para exonerar a era em particular pela incompreensão gigantesca com que o trabalho do artista foi recebido por seus contemporâneos. Basicamente, Gertrude Stein tentava fazer sua apaixonada defesa do poeta e artista contemporâneos em uma sociedade preguiçosa e dependente de juízos críticos já estabelecidos, seguindo à declaração tão bonita na palestra de que "é tão mais excitante e satisfatório para todo mundo se se pode ter contemporâneos, se todos os seus contemporâneos pudessem ser seus contemporâneos."

Ao mesmo tempo, quando penso nesta declaração de Stein, lembro-me de Ezra Pound em seu The ABC of Reading (1934), quando fala sobre o artista como a "antena da raça". Nossa sensibilidade política hoje se incomoda com o uso da palavra "raça", especialmente vindo de Pound, mas não deveríamos deixar que isso apague a proposição principal aqui, e ela está contida no vocábulo "antena". Aqueles que citam a passagem sem conhecerem o livro na íntegra deixam-se levar por deturpações ou mesmo preocupações legítimas que já se solidificaram em torno de Pound, que no entanto explica esta proposição de forma bem-humorada e elíptica, como era de seu costume, mas mesmo assim clara: "Uma nação que ignora as percepções de seus artistas entra em decadência. Depois de um tempo ela deixa de agir, e apenas sobrevive."

Não creio que haja qualquer contradição entre Gertrude Stein em suas citações acima e Ezra Pound quando este escreve: "Artistas e poetas sem dúvida entusiasmam-se ou excitam-se com coisas muito tempo antes do público em geral. Antes de decidir se um homem é um tolo ou um bom artista, faria bem perguntar não apenas se `ele entusiasma-se sem motivo´, mas `será que ele está vendo algo que nós não vemos?´. Seu comportamento esquisito será fruto de sua percepção de um terremoto iminente, ou por sentir o cheiro da fumaça de um incêndio que nós ainda não vemos ou sentimos?"

É difícil discutir isso num país onde tantos acreditam que, para proteger a independência do poeta e artista, é necessário recorrer a conceitos equivocados como "trans-historicidade", que tem sido transformado em sinônimo de sincrônico (o que me parece absurdo ou, no mínimo, questionável), e que acaba por sua vez ainda confundindo-se com "pós-utópico", outro conceito questionável e elaborado em um discurso que tende justamente ao diacrônico (na fórmula: "a poesia - obviamente no singular - antes era assim, agora é assado") - naquela que talvez seja a maior contradição do ensaio de Haroldo de Campos de meados dos anos 80 ("Da morte da arte à constelação: o poema pós-utópico").

Os últimos acontecimentos no Japão têm tido um impacto muito grande sobre as minhas sensibilidades e psicoses, trouxeram novamente ao teste e à testa de minha mente uma de minhas preocupações est-É-ticas obsessivas, tornaram ainda mais forte em mim a percepção de que uma arte e poesia pré-distópicas seguem sendo incrivelmente necessárias. Há tempos defendo que algumas das vanguardas históricas mais importantes do entreguerras e do pós-guerra eram muito mais alertas contra a distopia do que propagandas por qualquer utopia. Os poetas e artistas do Cabaret Voltaire e da revista DADA agiam em meio à destruição da Grande Guerra, e a Internacional Situacionista buscava muito mais resistir a uma realidade presente, acachapante e destrutiva, que propor um mundo futuro ou não-lugar de forma ingênua. Um não-lugar e um não-tempo parecem ser justamente o que temos na proposta de uma poesia e arte trans-históricas.

Eu sempre concordei com Gertrude Stein e ainda concordo: não há homens ou mulheres à frente de seu tempo. Alguns homens e mulheres por vezes nos mostram que os limites do nosso tempo talvez estejam além do que imaginávamos. Mostram-nos talvez que o tempo por vezes nos supera em nossa percepção dele.

Mas será que os autores de ficção científica distópica, por exemplo, são homens e mulheres vendo incêndios logo adiante, dos quais deveríamos nos precaver? É este um dos significados do poeta como "antena da raça"? Os alertas contra a coisificação em poetas líricos como Bertolt Brecht, Carlos Drummond de Andrade e George Oppen mostram-nos que seus sismógrafos talvez notassem terremotos e maremotos gigantescos que ainda estão por vir? Será que engavetamos rápido demais artistas e poetas que eram necessários para que nossa sociedade evite catástrofes, políticas ou não? Estará diminuindo no mundo o número de artistas e poetas-antena por causa dos traumas políticos dos sobreviventes de regimes totalitários, seja o regime sob Joseph Stálin, sob Adolf Hitler ou sob as redes de assassinos comandados por homens como Emílio Garrastazu Médici, Augusto Pinochet e Jorge Rafael Videla?

Independência do artista quanto à política? Eu quero! Mas só se for a que Pier Paolo Pasolini defendia e possuía. O que era bom para Pasolini me serve.

Eu vou voltar a este assunto nos próximos dias. Gostaria de encerrar este artigo com um exemplo de arte que busca alertar-nos contra a distopia, Das Duracellband (1980), de Klaus vom Bruch, um artista conceitual alemão que foi pioneiro no uso do vídeo. São cerca de 10 minutos. Raras vezes a expressão "vale a pena" me pareceu tão apropriada.





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sexta-feira, 18 de março de 2011

Ao contemplar as franjas de Louise Brooks



Quando vejo filmes ou fotos com as estrelas do cinema na década de 20 e 30, hoje quase completamente esquecidas, tenho sempre esta sensação que talvez tenha sido melhor descrita por Gregório de Matos ao escrever:


Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.



É um dos temas mais antigos no mundo, desde que poeta é poeta. É Robert Frost escrevendo o famoso:


Nature's first green is gold,
Her hardest hue to hold.
Her early leaf's a flower;
But only so an hour.
Then leaf subsides to leaf.
So Eden sank to grief,
So dawn goes down to day.
Nothing gold can stay.



Foi com isso em mente que comecei um poema com os versos: "Oblivion não / me assusta, / Claudette Colbert." Penso também no pequeno poema de Rose Ausländer, aqui em minha tradução:

Ainda estás aqui

Lança teu medo
aos ares

Em breve
acaba teu tempo
em breve
cresce o céu
sob a grama
despencam teus sonhos
nenhures

Ainda
cheira o cravo
canta o melro
ainda tens um amante
e palavras para doar
ainda estás aqui

Sê o que és
Dá o que tens



Andei com Louise Brooks na cabeça esta semana, uma mulher que, oitenta anos depois de seu sucesso em Hollywood, ainda me parece um dos seres mais modernos e fascinantes desde então. Certamente, Liza Minelli tinha Brooks em mente ao criar sua atuação para a personagem de Christopher Isherwood, Sally Bowles, no musical de Bob Fosse, Cabaret (1978).





Louise Brooks no entanto ficará na tela de nossa mente a partir dos filmes de Howard Hawks e G. W. Pabst, após ser boicotada por Hollywood. Muitos não sabem, mas a "lenda" das atrizes do cinema mudo que não tinham voz para atuar no cinema falado foi em muitos casos usada para destruir a carreira de atrizes que haviam se tornado poderosas ou influentes demais, como no caso de Louise Brooks, que se recusou a dobrar-se aos caprichos de do estúdio Paramount e tornou-se persona non grata, tendo sua carreira aos poucos destruída. E nós fomos roubados de mais trabalhos de uma das criaturas mais incríveis do século passado, que poderia ter feito tantos outros filmes mais. Mas é isso, Louise Brooks, você hoje é ícone, algumas de suas colegas tiveram fins mais tristes, como Clara Bow por exemplo.

Estou doido para encontrar o documentário Memories of Berlin: The Twilight of Weimar Culture (1976), que traz entrevistas com Louise Brooks e ainda Christopher Isherwood. Abaixo, você pode assistir na íntegra aos filmes Diary of a lost girl (1929) e Pandora´s Box (1929), ambos de G. W. Pabst, filmados em Berlim.



Primeira parte do filme Pandora´s Box (1929), de G. W. Pabst, com Louise Brooks.


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Primeira parte do filme Diary of a lost girl (1929), de G. W. Pabst, com Louise Brooks.

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quinta-feira, 17 de março de 2011

É inaugurada hoje à noite em Belo Horizonte a mostra de poesia sonora e visual "ZIP: Zona de Invenção Poesia &"


É inaugurada hoje à noite em Belo Horizonte a impressionante mostra de poesia sonora e visual "ZIP: Zona de Invenção Poesia &", na Grande Galeria do Centro Cultural da Universidade Federal de Minas Gerais, com curadoria de Ricardo Aleixo, Chico de Paula e Bruno Brum. Compareço com o poema videovocotextual "The poor poet (after Carl Spitzweg)" e o poema vocal em colaboração com o TETINE, nossa viajada "Mula".

A lista de pessoas interessantes que Aleixo, Paula e Brum reuniram me faz querer muito que eu estivesse em Belo Horizonte nos próximos dias. A exposição traz aquilo que Aleixo vem chamando de "poesia expandida". Dê uma olhada na lista de poetas incluídos na mostra:


Instalação audiovisual:

Aggeo Simões + Marcus Nascimento & Amir Brito Cadôr & André Amparo + Ana Cristina Murta & André Vallias & Bruno Brum & Chico de Paula & Cris Ventura + Mariana Campos & Fábio Carvalho & Gabriela Marcondes & Grupo Aquífero Poético (Álvaro Andrade Garcia + Marcelo Dolabela + Sônia Queiroz + Francine Canto + Ilka Boaventura Leite + Jair Tadeu + Luciana Tonelli + Marcelo Dolabela + Silvana Leal) & Grupo TEXTA (Gláucia Machado + Susana Souto + Marcelo Marques + Tazio Zambi) & Joacélio Batista & Kiko Ferreira & Makely Ka & Manoel Ricardo de Lima & Marcelo Dolabela & Marcelo Kraiser & Marcelo Sahea & Maria Botelho & Ricardo Aleixo & Ricardo Corona & Ricardo Domeneck + Tetine & Sérgio Fantini & João Diniz & Tatu Guerra & Thais Guimarães & Tião Nunes & Suely Machado + Marcela Rosa &


Mostra de poemas-cartazes:

Bruno Brum & Cândido Rolim & Carlito Azevedo & Chico de Paula & Edimilson de Almeida Pereira & Fabrício Marques & Francisco Kaq & Gláucia Machado & Guilherme Mansur & Kiko Ferreira & Leo Gonçalves & Letícia Feres & Luciana Tonelli & Manoel Ricardo de Lima & Marcelo Sahea & Marcus Nascimento & Maria Esther Maciel & Mariana Botelho & Mônica de Aquino & Paulo Kauim & Pedrinho Fonseca & Renato Mazzini & Romério Rômulo & Tazio Zambi & Thais Guimarães & Vera Casa Nova & Wir Caetano & Wlademir Dias Pino &


Ciclo de performances:

Beatriz de Almeida Magalhães + Manoel Andrade & Benjamin Abras & Chico de Paula + Carmen Castro & Gil Amâncio + Tatu Guerra + Gabriela Guerra & Grupo de Pesquisas Sonoras da Fumec/GPS (Ricardo Aleixo + Chico de Paula + Daniel Mendonça + Julius César) & 1mpar & Leo Gonçalves & Letícia Castilho & Marcelo Dolabela & Marcelo Kraiser & PROJETO EULIPÔ (Antônio Barreto + Caio Junqueira Maciel + Francisco de Morais Mendes + Jeter Neves + Luís Giffoni + Maurício Meirelles + Rodrigo Leste + Sérgio Fantini) & Renato Negrão & Ricardo Aleixo + Iná Aleixo + Flora Aleixo + Gabriela Pilati & Rui Moreira & Waldemar Euzébio &


Recitais:

Bruno Brum & Kiko Ferreira & Gláucia Machado & Luciana Tonelli & Mariana Botelho & Mônica de Aquino & Thais Guimarães & Grupo Aquífero Poético & Tazio Zambi &


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Aos que não podem ir a Belo Horizonte e talvez ainda não conheçam a peça, deixo vocês com a "Mula", minha colaboração com o Tetine, aqui em vídeo do alemão Eugen Braeunig.


"Mula" - texto de Ricardo Domeneck, composição sonora e vocal do Tetine, vídeo de Eugen Braeunig.




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segunda-feira, 14 de março de 2011

"Carta do poeta no inverno berlinense a um amigo no verão paulistano"

O problema com gente da nossa laia, poetas líricos e historicizados, é não sabermos diferenciar entre ocasião e circunstância.





Carta do poeta no inverno berlinense a um amigo no verão paulistano


Ensaboo a cabeça com o PANTENE PRO-V
Restauração Profunda que você esqueceu à borda
de minha banheira e penso pelas bolhas
nos cabelos como se fossem os balões
de diálogo nalgum cartoon
sobre os tempos em que andávamos pela Rua dos Pinheiros
certos de que Nomiya Maki era a Princesa dos Ornitorrincos.

Naquele tempo parecia-nos que uma seleção de canções
no toca-fitas e um par de ALL STARS tinham força
maior para distinguir e irmanar que as obsessões
de nossos compatriotas por códigos genéticos
a circular entre a rua Oscar Freire
e os livros de Gilberto Freyre.
Nossa pátria era a língua de Maysa,
mas também a de Maki Nomiya,
e a de Björk, e a de Beth Gibbons.

Naquele tempo ainda não sabíamos
que Brigitte Bardot
era a rainha xenófoba das monstrengas
e “Tu veux ou tu veux pas” era um hino
pois nossos dilemas eram deveras inofensivos
e nos deslumbrávamos com mais facilidade,
ainda que, em nosso linguajar,
estivesse catalogado como pejorativo
o particípio passado de “deslumbrar”,
e entre a happy hour e o déjeuner malheureux
sonhássemos com o equilíbrio das noites
e dos dias, já que entre eles repartíamos
nossos pesadelos.

Naquele tempo você carregava livros
de Ana Cristina Cesar, eu os de Hilda Hilst
que eu comungava com o mundo em catequese,
mas você recusava emprestar os de sua suicida
pois estavam cheios às margens
de anotações, e me pergunto se hoje
você os distribui, quando já sabemos
que, cedo ou tarde, todas as pessoas
sonham-se divas, suicidas ou não, ainda
que suspeitem todos que poucos
saem da vida para entrar para a História.

Pergunto-me se você também se pergunta
se é ilimitado no mundo o número de atrizes,
cantoras e poetas, estes péssimos
exemplos e modelos que acumulamos
para os nossos vales da sombra do drama,
ou se uma noite qualquer em nossas cabeças
todas elas se entupirão de barbitúricos
e despertaremos pela primeira vez lúcidos,
enquanto elas têm seus corpos carregados
em macas por nossos ouvidos afora, o flash
das câmeras dos paparazzi
cegando os transeuntes dos nossos delírios.

Naquele tempo ainda estava longe o tempo
em que nos flagrariam começando frases
com “naquele tempo” e parecia-nos
que, muito mais difícil
que acompanhar as capas da Vogue
ou os rostos do Ministro da Fazenda,
era acompanhar os nomes dos namorados
de nossos companheiros de rua e de boteco.
No entanto, mais importante também.

Como é implacável a sucessão de Reveillons
do Rio de Janeiro, como retornam os carnavais
que evacuam São Paulo! O calendário
tem uma persistência admirável.
Mas nós, nós éramos inenvelhecíveis.
Quais serão as tendências da moda
nos desfiles do inverno-inverno
de 2099? Ou será que caminhamos em verdade
para um verão-verão global? Cairão bem
à Terra uns meteoros? Estaremos todos macérrimos
(adeus, Academias de fitness e footnotes)
com umas virulências a mais? Clones
de Kate Moss
marcharão pelas passarelas? O look Mad Max
será o dernier cri
ou já seremos os últimos gritos dos Moicanos
de nós mesmos?

Que diferença faz, meu amigo, a esta altura
seremos já os mais elegantes esqueletos
de algum cemitério da cidade de São Paulo
e pouco importarão que texturas ou estampas
marcam o luto dos que já estarão ocupados
com o levíssimo fardo de esquecer-nos.


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sábado, 12 de março de 2011

"Patrícia Galvão, desejosa de maremotos"

Nota introdutória

Nesta última terça-feira, publiquei na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co. um artigo sobre alguns poemas de Patrícia Galvão (1910 - 1962). A autora sempre me fascinou, desde que li, creio que em 1998, o trabalho de Augusto de Campos sobre ela, Pagu: vida-obra (São Paulo: Brasiliense, 1982). Nele pude ler pela primeira vez o poema "Natureza morta", do qual nunca esqueci. O texto, para o contextualizarmos entre os de companheiros modernistas de Patrícia Galvão, foi publicado originalmente no Suplemento Literário do Diário de São Paulo em 1948, sendo portanto contemporâneo dos que marcariam a transição de Carlos Drummond de Andrade entre A Rosa do Povo (1945) e Claro Enigma (1951), dois de seus livros mais importantes, e dos poemas que Murilo Mendes publicara no ano anterior em Poesia Liberdade (1947). Entre as mulheres mais famosas e respeitadas da poesia modernista brasileira à época, Cecília Meireles vinha da publicação de O Mar Absoluto e Outros Poemas (1945), trabalhava nos textos que viriam a formar Retrato Natural (1949); Henriqueta Lisboa publicara A Face Lívida (1945), trabalhava em Flor da Morte (1949). Marcado talvez pelas mesmas visões apocalípticas geradas pela Segunda Guerra em poemas como "Nosso tempo", de Drummond, e "Janela do caos", de Murilo, o poema "Natureza morta" transporta-nos a um ambiente de opressão tanto coletiva como individual. Passei os últimos dis pensando no destino histórico de Patrícia Galvão em nosso país de patriarcas falhos. Versos como "Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo", do poema "Natureza morta", ou "Nada mais sou que um canal" (do poema "Canal", de 1960) circulavam pela minha cabeça, acusatórios, vivos, eficientes. Na quinta-feira à noite, antes de dormir, assisti ao filme mais recente de Clint Eastwood, Hereafter (2010), que inicia com cenas extremamente realistas e bem produzidas a reencenar o maremoto que atingiu a Indonésia em 2004. Fui dormir muito perturbado, com o verso de Patrícia Galvão martelando as paredes do meu crânio: "Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?", verso que sempre mexe muito comigo por sua agressividade e desespero. Acordei ontem pela manhã com as notícias do maremoto no Japão, e o verso de Patrícia Galvão ainda a martelar. Hoje é sábado, uma usina nuclear japonesa está em chamas. O verso "Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?" gonga dentro do meu cérebro, enquanto o poema cantado de Jim Morrison, "The End", repete-se, em conjunto com o texto de Patrícia Galvão. O Moço dorme. Faço um café bem forte e tiro da estante dele uma de suas coletâneas de ficção científica, ponho-me a ler os contos "Impostor", do Philip K. Dick, e "Billennium", do J.G. Ballard. Na noite anterior, assistimos juntos ao documentário de Charles Ferguson, Inside Job, sobre a crise financeira de 2008, seus culpados riquíssimos. A primavera está chegando a Berlim, que não fica na costa e jamais seria atingida por um maremoto. O Moço dorme, eu tomo café e leio Dick e Ballard, pergunto-me se a água chegaria ao primeiro andar do prédio onde estamos, onde, neste momento, O Moço dorme, eu leio Dick, Ballard, e escrevo esta nota introdutória para um artigo sobre Patrícia Galvão. No Japão, uma usina nuclear está em chamas. Jim Morrison e Patrícia Galvão estão mortos. Você e eu estamos no entanto vivos, tememos maremotos, usinas nucleares. Nas Redes Sociais, a maioria dos meus "amigos" segue fofocando, trocando informações sobre festas, trocando fotos, trocando fodas. O Moço dorme. O Japão afunda. E eu, com uma xícara de café muito forte ao lado, textos de Dick e Ballard, numa janela do computador Morrison sussurrando "This is the end, my only friend, the end", leio e admiro o desespero controlado dos poemas de Patrícia Galvão.



"Patrícia Galvão, desejosa de maremotos",
por Ricardo Domeneck


Patrícia Galvão nasceu em São João da Boa Vista, estado de São Paulo, em 1910. Uniu-se ao Movimento Antropófago em 1928, e, em 1931, passou a editar o jornal O Homem do Povo com Oswald de Andrade, com quem estava a esta altura casada. Foi presa neste ano pela primeira vez ao participar de um comício do Partido Comunista e da organização de uma greve de estivadores em Santos. Seria a primeira mulher no Brasil a ser presa por "crimes políticos". Ao deixar a prisão, estreia em livro em 1933 com o romance Parque Industrial, saindo logo em seguida em viagem pelos EUA, Japão, Polônia, Alemanha, URSS e França, onde, em Paris, seria hospedada pelo poeta (ligado ao Grupo Surrealista) Benjamin Péret e sua esposa, a soprano brasileira Elsie Houston. Ali estudaria com os filósofos Georges Politzer e Paul Nizan, mas acabaria detida em 1935 como comunista estrangeira e deportada para o Brasil, onde seria então novamente presa pelo regime de Getúlio Vargas, passando desta vez cinco anos na prisão.

Seu segundo romance, A famosa revista, seria publicado apenas em 1945, com o fim do Estado Novo. Em 1946 deu início, com seu segundo marido, o crítico e escritor Geraldo Ferraz, ao Suplemento Literário do Diário de São Paulo, aos domingos, que duraria até 1948. No pós-guerra, passou a publicar poemas na imprensa santista e a dedicar-se ao teatro, sendo uma das descobridoras e incentivadoras do dramaturgo Plínio Marcos. A poeta e romancista morreu em 1962 na cidade de Santos em decorrência de um câncer, após sobreviver à tortura em mais de 20 encarceramentos pela polícia de Vargas e uma tentativa de suicídio.

Todos nós a conhecemos como Pagu e sabemos mais sobre sua vida pessoal que sobre o seu trabalho. Esta figura larger than life, como se diz, foi no entanto uma poeta talentosa, e os poucos poemas que deixou enquadram-na entre os autores lacônicos mas marcantes do primeiro modernismo, como foi o caso de Raul Bopp ou Luís Aranha. Um poema como "Natureza morta", que entusiasmaria Augusto de Campos em 1948 quando este o lê no Suplemento Literário do Diário de São Paulo, sem saber que sob o pseudônimo Solange Sohl escondia-se a lendária Pagu, traz-nos uma imagética sombria que lembra a poética algo onírica de Pedro Kilkerry em "É o silêncio", por exemplo.


Natureza morta
Patrícia Galvão

Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas.
Estou dependurada na parede feita um quadro.
Ninguém me segurou pelos cabelos.
Puseram um prego em meu coração para que eu não me mova
Espetaram, hein? a ave na parede
Mas conservaram os meus olhos
É verdade que eles estão parados
Como os meus dedos, na mesma frase.
Espicharam-se em coágulos azuis.
Que monótono o mar!
Os meus pés não dão mais um passo.
O meu sangue chorando
As crianças gritando,
Os homens morrendo
O tempo andando
As luzes fulgindo,
As casas subindo,
O dinheiro circulando,
O dinheiro caindo.
Os namorados passando, passeando,
O lixo aumentando,
Que monótono o mar!

Procurei acender de novo o cigarro.
Por que o poeta não morre?
Por que o coração engorda?
Por que as crianças crescem?
Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?
Por que existem telhados e avenidas?
Por que se escrevem cartas e existe o jornal?
Que monótono o mar!
Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo.
Se eu ainda tivesse unhas
Enterraria os meus dedos nesse espaço branco
Vertem os meus olhos uma fumaça salgada
Este mar, este mar não escorre por minhas faces.
Estou com tanto frio, e não tenho ninguém ...
Nem a presença dos corvos.


(publicado com o pseudônimo Solange Sohl em 1948, no Suplemento Literário do jornal Diário de São Paulo.)



Augusto de Campos, que dedicaria à poeta paulista um de seus resgates crítico-biográficos mais apaixonados, a homenagearia antes como espécie de musa misteriosa em O sol por natural (1952) e ainda em seu famoso poema de amor à esposa, "lygia fingers":



Augusto de Campos oraliza o poema "lygia fingers", que pode ser visto abaixo:




O poema "Natureza morta" apresenta-nos um ambiente opressor, e afasta-se um pouco da poética das autoras mais conhecidas do Modernismo brasileiro, como Henriqueta Lisboa e Cecília Meireles, ainda que seja criticamente frutífero ler certa poesia da paulista à luz de livros como O Mar Absoluto e Outros Poemas (1945), da carioca, ou Flor da Morte (1949), da mineira. Patrícia Galvão, em vários aspectos, adiantaria na verdade a poética de mulheres como Ana Cristina Cesar, Elisabeth Veiga, Hilda Machado e Lu Menezes. As "coisas", em seu mundo, não são geradoras daquele pavor quase psicótico e tão bem ilustrado por Fernando Pessoa no poema em que fala sobre o medo de voltar-se e descobrir as coisas tirando a máscara, ou como no famoso poema de Eugenio Montale, "Forse un mattino". Em Patrícia Galvão, o poeta está entre as coisas, é ela própria parte de uma decoração assombrada e assombrosa. Não se trata de querer equipara-la a estes que foram alguns dos maiores poetas do século XX, mas de buscar uma espécie de irmanar de preocupações políticas e metafísicas, assim como de uma teia distinta de conexões estéticas entre autores do século passado, em confluência, fora das narrativas lineares já engessadas de influências.

Os versos que abrem "Natureza morta", publicado em 1948: "Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas. / Estou dependurada na parede feita um quadro. / Ninguém me segurou pelos cabelos" parecem unir-se em arco sincrônico ao "poema de terror" que é "É o silêncio", de Kilkerry: "É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa. / Olha-me a estante em cada livro que olha. / E a luz nalgum volume sobre a mesa...", ainda que Patrícia Galvão não recorra ao animismo como Pedro Kilkerry. Como disse, os dois autores estão mais interessados em uma atmosfera de pesadelo, que a eles parece reger a realidade, do que em uma descrição objetivizante daquilo que os cerca. Ela mimetiza a objetificação de sua subjetividade. Não um coisismo, mas a coisificação. Pedro Kilkerry e Patrícia Galvão, assim como Murilo Mendes por exemplo, são poetas que tendem a borrar a fronteira que uns querem demasiado clara entre mundo externo e mundo interno, e, portanto, entre objetividade e subjetividade - são autores do que eu já chamei de uma sobjetividade. Neste aspecto, seria muito interessante discutir no mesmo contexto a poética de autores norte-americanos da década de 30 como os Objectivists (George Oppen, Louis Zukofsky, Lorine Niedecker, Charles Reznikoff, Carl Rakosi, etc), contemporâneos exatos de Patrícia Galvão e Oswald de Andrade e que compartilham com eles a preocupação política anticapitalista comum do entreguerras (basta pensar também no círculo de poetas em torno de W.H. Auden na Inglaterra): lidos ainda hoje como celebradores de um coisismo, até que ponto não foram, ao mesmo tempo e pelos mesmos meios, também os detratores de uma coisificação?

Sua escrita recorre à ironia, e quando pensamos que ela está prestes a lacrimejar, percebemos que ela está na verdade armando o bote da agressão logo a seguir. Há um inflar e desinflar do ritmo, geralmente formando-se em anticlímax. "Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo" parece-me uma das comparações mais agressivas da poesia brasileira moderna, extremamente crítica da própria entronização que ela, Patrícia Galvão, sofrera como "a musa Pagu", sem mencionar o verso (um dos meus favoritos): "Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?", e o excelente e sinestésico "Vertem os meus olhos uma fumaça salgada".

Escrito em seu leito de morte, é também difícil ler um poema como "Nothing" e não pensar na poética apocalíptica de Álvaro de Campos, como em "Lisbon revisited", ou, em clave muito distinta, em certos textos da americana Laura Riding e sua desconfiança do signo, distinta da celebração sígnica que vemos na poesia brasileira do pós-guerra.


Nothing
Patrícia Galvão

Nada nada nada
Nada mais do que nada
Porque vocês querem que exista apenas o nada
Pois existe o só nada
Um pára-brisa partido uma perna quebrada
O nada
Fisionomias massacradas
Tipóias em meus amigos
Portas arrombadas
Abertas para o nada
Um choro de criança
Uma lágrima de mulher à-toa
Que quer dizer nada
Um quarto meio escuro
Com um abajur quebrado
Meninas que dançavam
Que conversavam
Nada
Um copo de conhaque
Um teatro
Um precipício
Talvez o precipício queira dizer nada
Uma carteirinha de travel’s check
Uma partida for two nada
Trouxeram-me camélias brancas e vermelhas
Uma linda criança sorriu-me quando eu a abraçava
Um cão rosnava na minha estrada
Um papagaio falava coisas tão engraçadas
Pastorinhas entraram em meu caminho
Num samba morenamente cadenciado
Abri o meu abraço aos amigos de sempre
Poetas compareceram
Alguns escritores
Gente de teatro
Birutas no aeroporto
E nada.


(publicado n’A Tribuna, Santos/SP, em 23/09/1962)



Para nossa sensibilidade contemporânea, o uso que Patrícia Galvão faz da anáfora pode incomodar, mas é necessário perceber que sua escrita pressupõe a oralização. Tal tática foi comum entre os Beats, por exemplo, que tanto basearam seu trabalho na performance oral. Basta pensar em um poema como "Howl", fortemente baseado na anáfora.

Patrícia Galvão merece ser lembrada primordialmente como autora em e de si, permitindo que a historiografia literária brasileira registre sua contribuição pessoal à literatura moderna do País, e não apenas através do filtro daquilo que os homens do movimento escreveram sobre ela, pois foi poeta talentosa, mais do que mera personagem coadjuvante na biografia de artistas mais ilustres. E é por estes poemas e o que ainda há de vivo neles que Patrícia Galvão adentra a sintonia de nossa sincronia.


--- Ricardo Domeneck, 7 e 8 de março de 2011, na cidade de Berlim.


§


Canal
Patrícia Galvão


Nada mais sou que um canal
Seria verde se fosse o caso
Mas estão mortas todas as esperanças
Sou um canal
Sabem vocês o que é ser um canal?
Apenas um canal?

Evidentemente um canal tem as suas nervuras
As suas nebulosidades
As suas algas
Nereidazinhas verdes, às vezes amarelas
Mas por favor
Não pensem que estou pretendendo falar
Em bandeiras
Isso não

Gosto de bandeiras alastradas ao vento
Bandeiras de navio
As ruas são as mesmas.
O asfalto com os mesmos buracos,
Os inferninhos acesos,
O que está acontecendo?
É verdade que está ventando noroeste,
Há garotos nos bares
Há, não sei mais o que há.
Digamos que seja a lua nova
Que seja esta plantinha voacejando na minha frente.
Lembranças dos meus amigos que morreram
Lembranças de todas as coisas ocorridas
Há coisas no ar…
Digamos que seja a lua nova
Iluminando o canal
Seria verde se fosse o caso
Mas estão mortas todas as esperanças
Sou um canal.


(Publicado n’A Tribuna, Santos/SP, em 27-11-1960)

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quinta-feira, 10 de março de 2011

Pequenas notas sobre dois documentários vistos recentemente

§ – sobre Glenn Gould –

Genius Within: The Inner Life of Glenn Gould (2009).

Dirigido por Michèle Hozer e Peter Raymont, este documentário excelente foi lançado no Canadá em 2009, e nos Estados Unidos no ano passado. Traz muitas cenas do pianista e entrevistas com seus poucos amigos e as pessoas com quem ele trabalhou e conviveu. Talvez seja difícil de entender a revolução que ele significou para a música tendo nascido depois da revolução que ele causou. Mas é ainda impossível tirar os olhos deste homem em cada segundo que ele aparece na tela. Assisti ao filme com O Moço e depois ficamos ouvindo duas gravações de Gould, a de 1955 para as "Variações Goldberg - BWV 988" de Bach (gravação que o deixou famoso de imediato), e a de 1966 para a "Sonata Patética" de Beethoven. Recomendo muitíssimo o documentário.




Fiquei muito surpreso ao fim do filme, quando começam a rolar os créditos e percebo que um dos produtores é um amigo meu, Kelly Jenkins, que vive hoje em Toronto mas viveu por um tempo em Berlim.





Genius Within: The Inner Life of Glenn Gould tem todas as qualidades que faltam ao outro documentário que gostaria de comentar, este mais largamente.

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§ – sobre Pina Bausch –


Pina (2011).


O Moço e eu estávamos esperando com muita ansiedade pelo filme, ainda que a ideia de ter Wim Wenders dirigindo-o nos desse calafrios. Fomos ao cinema na terça-feira e nosso medo se concretizou - Wenders compôs, em nossa opinião, uma pseudo-hagiografia kitsch para esta que foi uma das artistas mais espetaculares do pós-guerra. Ele o fez com respeito e admiração, mas seu sentimentalismo não permite que toque qualquer material sem diminuí-lo, justamente por sua tentativa desnecessária de engrandecê-lo. Pina Bausch por algum motivo convida a este tipo de abordagem hagiográfica, já o presenciei em outros documentários e entrevistas. Ela impõe um tipo de respeito que infelizmente gera esta mistificação. Isso realmente não me parece positivo... é um respeito sem lucidez. Duvido que seja galanteador receber este tipo de atenção. Talvez não seja impossível argumentar que o filme não é ruim, mas o que há realmente de bom no filme eu ousaria dizer que não se deve à direção de Wenders, mas à força do trabalho de Bausch e o talento de seus dançarinos.






Não tenho problemas com o sentimentalismo de Wim Wenders. Eu próprio tenho um lado cafona muito forte. Lembro-me de um lindo documentário sobre Julio Cortázar, com cenas de uma entrevista em que ele confessava ser muito sentimental e cafona, do tipo "que gosta de chorar em cinemas e sair dissimulando a cara". Eu sou do mesmo tipo. TODOS os meus amigos alemães consideram o filme Der Himmer über Berlin {Asas do desejo}, de 1987, uma coisa absurdamente kitsch e sentimentalóide. EU ADORO aquele filme. Sempre gostei, e já o vi muitas vezes. Também considero Paris, Texas (1984) um filme lindíssimo, praticamente perfeito. Mas as coisas realmente começaram a desandar para Wenders na década de 90, e o último filme dele que vi, Don't Come Knocking (2005), foi uma das experiências mais dolorosamente horríveis que tive em um cinema em toda a minha vida. É um dos PIORES filmes desta década que acaba de acabar, uma década, diga-se de passagem, com tantos filmes fenomenais.


Poderíamos dizer que os problemas do filme estão simbolizados no título: o filme quer ser "íntimo"... é Pina, a amiga de Wim... eu preferiria ter visto um filme que tivesse Bausch por título mais apropriado. É interessante compará-lo com o documentário sobre Glenn Gould: os diretores canadenses não fazem a íntima (como se dizia na São Paulo de dez anos atrás) com seu retratado, e conseguem dar aos espectadores um retrato muito próximo e caloroso, cheio de respeito lúcido pelo pianista, sem tentar mitificar ainda mais sua existência. É biografia, não hagiografia. Já o documentário do alemão sobre a alemã, todo baseado na intimidade dos que conviveram com ela, parece manter o espectador sempre a uma braçada de distância.

Mesmo assim, Pina vale pelo que mostra do trabalho da coreógrafa. Os seus dançarinos e colaboradores fiéis reencenam vários dos clássicos da alemã, há cenas de arquivo, e é assustador ver como aquela mulher criou realmente uma linguagem que pode ser posta lado a lado com algumas das mais assombrosas criações do pós-guerra europeu, da escultura de Giacometti ao teatro de Beckett, da escrita de Jabès ao cinema de Godard, da música de Berio à obra de Beuys.

Café Müller, de 1978, entre outras peças/coreografias, ocupa um espaço tão FÍSICO em nossa imaginação quanto qualquer romance, poema, composição musical ou obra de arte visual.





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sexta-feira, 4 de março de 2011

Alguns poemas memoráveis da última década: "Miscasting", de Hilda Machado

Sigo aqui com minha série de artigos sobre poetas da década passada, a partir dos textos que me pareceram mais memoráveis dentre os que tive a sorte e alegria de ler, publicados entre 2001 e 2010. Após escrever sobre "sereia a sério", de Angélica Freitas, dedico o artigo a seguir à discussão do poema "Miscasting", de Hilda Machado (1952 - 2007), tragicamente não mais entre nós.


Alguns poemas memoráveis da última década: "Miscasting", de Hilda Machado
ou "Poesia funcional e formalmente útil para as futuras calamidades do leitor"


Dentre os luminosos conselhos e proposições estéticas de Ezra Pound, seja para seus pares contemporâneos ou para os poetas do futuro, muitas circulam hoje pelo Brasil, mas tão descontextualizadas e desfiguradas que se tornaram mais empecilhos que incentivos à produção de uma poesia que possa ter qualquer papel relevante em sua comunidade, a de seres que não só leem, mas também falam. O problema está, é claro, com alguns dos leitores de Pound e não com as proposições do americano, ou pior, na verdade com aqueles que muitas vezes as repetem sem realmente conhecerem os ensaios e o contexto histórico e estético em que surgiram.

É necessário também dizer, no entanto, que alguns deles facilitam essa falsificação por sua natureza, digamos, abstratizante, genérica, dependente demais da interpretação ideológica do usuário. Destarte, axiomas como o famoso MAKE IT NEW ou a fórmula do dichten = condensare convertem-se mui facilmente em bodes expiatórios para a mera legitimação de poéticas pessoais que, não raras vezes, são até mesmo contrárias ao que Pound em verdade praticou. Assim, o MAKE IT NEW com frequência torna-se a desculpa dos que preconizam certo vanguardismo sem sequer compreenderem as implicações militaristas da expressão, assim como para justificarem por vezes uma insistência surpreendente em desprezar ou mesmo ignorar o que quer que tenha sido produzido por poetas antes do século XX ou fora dos cânones mais conhecidos. Da mesma maneira, o dichten = condensare pode acabar invocado por quem acredita que basta jogar três titicas de palavras ao deus-dará de uma página em branco para que seu trabalho se constitua como "conciso". Neste contexto, torna-se quase impossível debater com clareza e discernimento sobre as diferenças entre o fragmentário/conciso e o desconjuntado/desarticulado. Se não atentarmos para tais perigos, e quero com isso dizer TODOS NÓS, o resultado poderá ser o que por vezes já vemos na poesia dos últimos 25 anos: tornarmo-nos poetas que não seriam capazes de terminar um verso com inteligência, graça e sensibilidade, com ou sem enjambement por auxílio, ainda que disso dependessem nossas vidas.

Há porém entre as proposições de Pound um conselho que me parece ainda (e especialmente) hoje uma proposta muito saudável a ter em mente durante a escrita. A proposição foi registrada em uma carta de 1915 de Pound, endereçada a Harriet Monroe, a fundadora e editora da revista Poetry, na qual Pound praticamente a forçaria a publicar poetas como H.D., T.S. Eliot e William Carlos Williams. Aqui vai a proposição, que me parece muito mais prática, clara e funcional que o MAKE IT NEW e outras que circulam desfiguradas no Brasil, em letras garrafais:


"... nothing — nothing that you couldn't, in some circumstance, in the stress of some emotion, actually say."(*)



Ou, em uma tradução possível: "nada – nada que você não possa, em alguma circunstância, sob a tensão de alguma emoção, realmente dizer."

Se muitas outras proposições de Pound podem ser desastrosas para os despreparados por serem demasiado abertas, não ignoro o perigo que esta pode significar, por ser talvez tão fechada. Não faltará quem diga que esta proposição exclui muitas práticas poéticas possíveis, mas eu creio que ela não suprima mesmo a metáfora, o neologismo ou experimentações sintáticas como o hipérbato. Ela apenas enseja uma preocupação maior com a justeza dos propósitos – e salvaria muitos poetas de hoje de uma aparentemente completa falta de senso de ridículo.

Não me parece difícil de argumentar que todos os poetas que respeitamos a observaram de alguma maneira, sem que fosse necessário um poeta como Pound torná-la explícita: de Catulo a Arnaud Daniel, de Orpingalik à princesa Wallâda, de Guido Cavalcanti a John Donne, de Taliesin a Hilda Hilst, de Rainer Maria Rilke a João Cabral de Melo Neto ela poderia ser detectada. Não estou ignorando outras experiências poéticas extremamente belas, necessárias e valiosas, como as que residem na esfera do encantatório e xamânico, chame-se o poeta Herberto Helder ou Paul Celan, assim como o eminentemente construtivo e linguístico da escrita de uma Gertrude Stein.

É por defesa dessas experiências poéticas que precisamos tomar a típica hipérbole de Pound, presente naquele NOTHING repetido ao início da proposição, com o que os americanos chamam de a grain of salt. São no entanto experiências extremas e muito especiais, pois mesmo na melhor poesia, ou digamos em grande parte da melhor poesia destes autores nós encontramos esta qualidade do dizível-sob-tensão. Tanto na "Todesfugue" e "Engführung" de Celan, na poesia de composição altamente permutacional de um livro como A Máquina Lírica, de Helder, como em "Lifting Belly" e tantos outros textos de Stein. É necessário alertar, para que os bufões de plantão não distorçam a discussão, que tal proposição está a anos-luz de distância de qualquer defesa do meramente coloquial na linguagem poética. Pois esta proposta de Pound incentiva uma poesia que evita tanto o coloquial como o livresco. Nada tem a ver com alguns dos conceitos a meu ver equivocados que apregoava Antônio Carlos de Brito (1944 — 1987) pelos idos de 1980. Mas, num momento como o presente, em que os poetas parecem tão divorciados de seu público e alguns charlatães têm se entregado a discursos para justificar uma grande falsificação do que Jakobson pretendia ao dividir a linguagem em funções, insisto que esta proposição seria saudável para os jovens poetas formando-se hoje no país.

E é a partir dela que eu começaria a discutir um poema como "Miscasting", de Hilda Machado. Como a poeta é praticamente desconhecida no país, tendo infelizmente morrido sem publicar sua poesia em livro, deixo vocês em primeiro lugar com o poema.


Miscasting


“So you think salvation lies in pretending?”
Paul Bowles



estou entregando o cargo
onde é que assino
retorno outros pertences
um pavilhão em ruínas
o glorioso crepúsculo na praia
e a personagem de mulher
mais Julieta que Justine
adeus ardor
adeus afrontas
estou entregando o cargo
onde é que assino

há 77 dias deixei na portaria
o remo de cativo nas galés de Argélia
uma garrafa de vodka vazia
cinco meses de luxúria
despido o luto
na esquina
um ovo
feliz ano novo
bem vindo outro
como é que abre esse champanhe
como se ri

mas o cavaleiro de espadas voltou a galope
armou a sua armadilha
cisco no olho da caolha
a sua vitória de Pirro
cidades fortificadas
mil torres
escaladas por memórias inimigas
eu, a amada
eu, a sábia
eu, a traída

agora finalmente estou renunciando ao pacto
rasgo o contrato
devolvo a fita
me vendeu gato por lebre
paródia por filme francês
a atriz coadjuvante é uma canastra
a cena da queda é o mesmo castelo de cartas
o herói chega dizendo ter perdido a chave
a barba de mais de três dias

vim devolver o homem
assino onde
o peito desse cavaleiro não é de aço
sua armadura é um galão de tinta inútil
similar paraguaio
fraco abusado
soufflé falhado e palavra fútil

seu peito de cavalheiro
é porta sem campainha
telefone que não responde
só tropeça em velhos recados
positivo
câmbio
não adianta insistir
onde não há ninguém em casa

os joelhos ainda esfolados
lambendo os dedos
procuro por compressas frias
oh céu brilhante do exílio
que terra
que tribo
produziu o teatrinho Troll colado à minha boca
onde é que fica essa tomada
onde desliga



Um poema não é apenas linguagem que se formula sob tensão, ele é também a textualidade que intensifica nossas emoções cotidianas, e o grito passa a não apenas expressar dor, mas a chamar a atenção do ouvinte para a existência da garganta e o talento para o grito. Eu conseguiria imaginar-me lançando muitos destes versos do poema de Hilda Machado à fuça de alguém, mesmo que fosse num momento, digamos, de embriaguez. Mas penso também que, como escreveu o crítico norte-americano Hugh Kenner ao discutir o trabalho de Williams Carlos Williams: “art lifts the saying out of the zone of things said” (Homemade World, 1975), algo como “a arte ergue e retira o dizer da zona das coisas ditas”. Seria muito interessante unir esta afirmação à de Pound e sua linguagem poética que apresenta uma textualidade que poderia ser, sob a tensão de alguma emoção, realmente dita. Ou seja, a poesia poderia ser uma espécie de tensão dentro do dizível. Qualquer coisa, menos o clichê já um tanto ridículo do dizer o indizível como parâmetro da arte poética. Com honrosas exceções, este discurso do poeta que diz o indizível é geralmente sinal claro de charlatanismo.


Como boa poeta que era, a wit e inteligência de Hilda Machado tornam-se claras já na escolha de seu título. Ela, que era pesquisadora do cinema, parte do conceito de "miscasting", ou seja, a escolha inadequada de um ator para determinado papel: neste caso, o de amante da poeta. Não é humor barato. É claro que tal poema de Hilda Machado integra-se à tradição da poesia lírica, aquela que, até poucos anos, estava em completo desprestígio por aqueles que "mimetizaram" exageradamente certas proposições de João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos, entre outros. Durante a década de 90, foi como se a primeira pessoa do singular se tornasse tabu. Com medo do sentimental, obliterou-se o lírico. Para evitar o verborrágico, praticou-se um minimalismo que raramente parecia realmente articulado. Que Hilda Machado, assim como aquela outra maravilhosa Hilda, a Hilst, tenha composto tal poesia e a mantido em segredo possa ser talvez compreendido pela hostilidade crítica com que a poesia lírica fora tratada nos últimos 25 anos. Como ela escreve, a poeta declara-se "mais Julieta que Justine", ainda que esteja agora entregando este cargo e outros pertences. Trata-se de poesia lírica impiedosa. Forma-se numa composição bastante variada em seus registros. Escrita tesa, em que o aparentemente coloquial é alternado com o marcadamente aliterativo e musical, como em "há 77 dias deixei na portaria / o remo de cativo nas galés de Argélia", em que a imagem tão cotidiana de uma portaria de prédio é justaposta ao verso tão belo, estranho e musical sobre o "remo de cativos nas galés de Argélia". Tal talento, incomum nas últimas décadas, pode ser sentido com força ainda em versos como "mas o cavaleiro de espadas voltou a galope / armou a sua armadilha / cisco no olho da caolha / a sua vitória de Pirro". O poema une o elegante e o vulgar, nem trivialmente coloquial nem tacanhamente literário, dicções justapostas, criando uma espécie de equilíbrio de expressão. Em vários momentos, uma imagética que hesita entre o paradoxismo e a ironia.

O interessante em um texto como este, especialmente contra o pano-de-fundo da poesia da década de 90, por exemplo, e à luz ainda da proposição de Pound por uma poesia dizível-sob-tensão, é que ele borra qualquer fronteira demasiadamente clara entre poesia e prosa. O que nos lega é uma textualidade em que a composição está ciente de sua construção e seus artifícios, mas tais artifícios vêm conjugados ao desejo de que o texto não esteja exilado em apenas um lado da fronteira a teoricamente separar o escrito e o oral. Ou seja, o texto funciona na voz e na página, como é o caso de quase todos os poetas que sobreviveram aos séculos de naufrágio do contexto estético em que poetaram. Nunca na literatura brasileira parece-me ter havido, como a partir da década de 90, um divórcio estético tão grande entre poetas e prosadores, os primeiros frequentemente pecando pelo livresco e os últimos pelo trivial. A situação, eu pretendo argumentar, começou a ser revertida com o surgimento dos poetas que quero discutir nesta série de artigos.

Os poemas de Hilda Machado não apresentam respostas, mas apenas mais perguntas. Não é literatura de auto-ajuda, é literatura de auto-estorvo. Não se trata do que os concretistas costumavam chamar de hedonismo. Hilda Machado assume responsabilidade total perante a sua linguagem, mas a enquadra nas primeiras pessoas do singular de seus verbos. O ser sardônico não se conta entre os hedonistas, pois já não sabe muito bem a diferença entre o prazer e o sofrimento, seja o seu ou o alheio.

"Miscasting" foi publicado na revista Inimigo Rumor. No segundo número impresso da Modo de Usar & Co. nós publicamos outros poucos poemas de Hilda Machado. Entre eles, duas outras pequenas gemas de quilates que latem a quem tem ouvidos ainda sãos após tantos anos de literatice.

Julguem, por si mesmos, eu peço, se pérola ou porca o que vem a seguir:

O cineasta do Leblon

“Aquele que escavar em sua consciência
até a camada do ritmo e flutuar nela
não perderá o juízo.”
Nina Gagen-Torn


O brilho de laranja ao sol
amendoeira rubra e pavão
oculta sobressaltos faustianos
encenam-se dramas na alma
suadas peripécias
lágrimas
mímesis
em sítios escusos está a mocinha raptada por um turco
e a nudez do missionário espancado
folheia-se uma antologia de acidentes
títulos afundam
e no lodo
personagens sem nome
e escândalos de fancaria

O comércio incessante
distrai das caudalosas sociologias do fracasso
idades do ouro perdidas
terror espetacular
recorta o esforço de colosso trágico
alçar-se acima da imensa massa de vencidos
violinos pela indesejada que fatalmente alcança e ceifa
carnaval exterior que é dublagem

Nos domingos de lua cheia
um infante sôfrego obriga a minuciosos tratados
miuçalhas
monopólio
asperezas
contrabando
e então
razias de corsário

na lua nova cruzo a cidade pra beijar a sua boca
transpor morros e encontrar a elevação
tropeça-se em pétalas de rosas
em trufas
visitas ao paraíso
as quartas-feiras são turvas
e trazem as penas do inferno
telefonemas seus
telefonemas meus
telefonemas da outra
e a ex
compomos o obrigatório conflito
repetir com honestidade a velha trama
até que ao fim do primeiro bimestre
erra-se no açúcar
escorrega-se na farsa
e mudam-se todos para a novela das 7

Homem da lua
fantasia de rudes hormônios
o bicho se coça
fervor marcial e bico de passarinho
cavalo rampante que rasga com as patas convenções de estilo
atravessa pontes queimadas
alcançou o vale feroz
terremoto maior que o de Lisboa arrasa cidadelas
afrouxa parafusos
e do colchão abala a mola-mestra

ouviu, carro?
tribos bárbaras desabam sobre a minha Europa

ouviu, montanha?
mudaram os livros que eu agora levo pra cama
antigas lendas fabulosas
uma grosseira rapsódia
cinco escritos libertinos
eu bebo como num banquete em Siracusa
e gozo como as prostitutas de Corinto
palmeira, ouviu?


Ninguém em sã consciência poderá dizer que se trata de poesia que faz concessões. O sarcasmo doloroso de Hilda Machado parece-me extremamente sofisticado, em nenhum momento cede ao facilmente sentimental. Trata-se de uma poeta que sabe, como disse Pound, que only emotion endures, mas o emocionante aqui não segue roteiro de comédia romântica, mas o roteiro de um filme de terror em que a vítima se apaixonasse pelo assassino logo antes da machadada. É uma poeta que parece estar ciente de todas as nossas desilusões pessoais e comunitárias: "O comércio incessante / distrai das caudalosas sociologias do fracasso / idades do ouro perdidas / terror espetacular / recorta o esforço de colosso trágico / alçar-se acima da imensa massa de vencidos / violinos pela indesejada que fatalmente alcança e ceifa / carnaval exterior que é dublagem". Este último verso ilustra como H. Machado não está pregando naturalismos de expressão, e que, nesta nossa sociedade, podemos no máximo entregar-nos à distração do comércio. E seguimos, por já não parecer haver muitas escolhas mais. Como escreve em uma das estrofes:

compomos o obrigatório conflito
repetir com honestidade a velha trama
até que ao fim do primeiro bimestre
erra-se no açúcar
escorrega-se na farsa
e mudam-se todos para a novela das 7



Proposições críticas fazem sentido em contextos específicos, jamais são fórmulas de sucesso imutáveis. No momento em que João Cabral de Melo Neto e o Grupo Noigandres, por exemplo, surgiram no cenário poético brasileiro das décadas de 40 e 50, muitas de suas proposições faziam sentido naquele momento específico, em que a poesia brasileira parecia depender demais de sentimentalismo e frouxidão composicional. Não podemos nos esquecer que a literatura e poesia brasileiras já contavam com excelentes medulas em meio à aparente geléia geral, com Machado de Assis, Sousândrade, Lima Barreto, Carlos Drummond de Andrade e (por que não?) o próprio Manuel Bandeira em vários poemas. Certos elementos formais que haviam se afrouxado voltaram a ser calibrados. Repetidos no contexto dos últimos 20 anos, tais práticas tornaram-se meros discursos, engendrando textos que passaram a pedir calibrações de outra natureza. A proposição de Pound citada no início deste artigo poderia trazer elementos muito saudáveis para a produção poética contemporânea, se há ainda algum interesse por parte dos poetas em ter alguma relevância cultural no mundo de hoje. Há vários mitos poético-ideológicos em voga hoje no Brasil que precisam ser questionados, como, entre outras, a leitura que se faz hoje sobre a função poética, para justificar a escrita que nada diz e nem o faz de forma nova, inteligente ou interessante. Já ajudaria muito se percebêssemos que o substantivo em questão é FUNÇÃO. Entre os guias possíveis, proponho aqui Hilda Machado, que pode, com apenas poucos poemas conhecidos, ensinar mais que a obra completa de muitos.


--- Ricardo Domeneck

§

O nariz contra a vidraça
Hilda Machado


como a paisagem era terrível
mandou se fechassem as janelas
o nariz contra a vidraça e o fla-flu comendo lá fora
genocídios, promessas, plenilúnios
O festim de Nabucodonosor, a vitória dos pó-de-arroz
as dores do pai e os gritos de amor
são agora aquarelas pitorescas

O nariz contra a vidraça
melhor ainda atrás da persiana
ela com seus preciosismos
unhas feitas entre desfiladeiros de livros
barricadas contra o sublime e o medo

Discreta voyeuse
o sofá combinando com o tom das exegeses
a polidez dos móveis, avencas, decassílabos, filmes russos
perífrases sobre paninhos de crochê
e em vez de carne poemas no congelador

Anônima, dizia sempre à manicure
e apesar das mãos que enrugam
as unhas bem curtas e o esmalte claro, por favor

Um dia, o leite derramado na cozinha, saiu
garras vermelhas, bateu à porta do vizinho


§


(*) Carta pra Harriet Monroe (London, 1915): "Objectivity and again objectivity, and expression: no hindside-before-ness, no straddled adjectives (as 'addled mosses dank'), no Tennysonianness of speech; nothing—nothing that you couldn't, in some circumstance, in the stress of some emotion, actually say." Ezra Pound.


** O autor agradece a Dirceu Villa pela ajuda em localizar a fonte exata da citação de Pound.


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