sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Com William Zeytounlian e Ondřej Buddeus em Berlim


Tive o prazer de hospedar o poeta brasileiro William Zeytounlian e o poeta tcheco Ondřej Buddeus em Berlim, no fim de semana passado. William e seu amigo Fábio Zuker passaram uma semana aqui, e pudemos ter conversas ótimas sobre literatura e afins. William é o mais novo colaborador da Modo de Usar & Co., e um poeta que respeito muito, de uma geração que já vem nos surpreendendo. Sou um admirador declarado dos autores brasileiros nascidos na década de 80, que já têm nos presenteado com romances, poemas e traduções que eu considero importantes. Basta pensarmos em Reuben da Cunha Rocha, Ismar Tirelli Neto, Victor Heringer, para mencionar apenas três que considero bençãos. E, agora, William Zeytounlian.

A soma
William Zeytounlian

trás um verso,
estranho léxico
em regresso –

inversa assim
a dúvida que
assoma a dívida
  reincidente,
  antiga,
   rediviva:

o velho dedo
que envereda
na ferida.

§

Ondřej Buddeus é um poeta que já parece ter-se firmado como uma das vozes mais importantes de sua geração na República Tcheca, bastante ativo como autor, crítico e editor. Foi muito bom poder conversar com ele sobre os debates est-É-ticos em seu país, e falamos muito sobre como encontrávamos paralelos entre o que ele falava sobre a República Tcheca e eu sobre o Brasil.

Traduzi, a partir do inglês, alguns de seus poemas para a Modo.

Estado de equilíbrio (Fazer o bem I)

ele veio para fazer
o bem, disse ele.
puxou uma cadeira.

ele sentou-se
ele disse nada
ele fez o bem.


:

Estado de equilíbrio (Fazer o bem II)


ele veio para fazer
o bem, disse ele.
puxou uma cadeira
e começou.

com o tempo
pedimos a ele
fosse fazer o bem
em outro lugar.

§


Cada vez mais acredito que a noção de uma comunidade plural de poetas, para além da ideia de grupo com programas unificados, é algo saudável e importante para nosso trabalho.

Encerro com o vídeo que gravei de William para o projeto "Empreste sua voz a um poeta morto", em que ele lê sua tradução para o poema "Doomsday", de Jorge Luis Borges.




William Zeytounlian traduz o poema "Doomsday", de Jorge Luis Borges (1899 - 1986), 
e então empresta sua voz ao poeta argentino. Gravado em Berlim a 25 de fevereiro de 2014.

Doomsday
será quando a trombeta ressoar, como escreve são joão, o teólogo.
foi em 1757, segundo o testemunho de swedenborg. 
foi em israel (quando a loba cravou na cruz a carne de cristo),
         [mas não só então.
ocorre em cada pulsação de teu sangue.
não há um instante que não possas ser a cratera do Inferno.
não há um instante que não possas ser a água do Paraíso.
não há um instante que não estejas carregado como uma arma.
em cada instante podes ser caim ou siddharta, a máscara ou o rosto.
em cada instante pode revelar-te seu amor helena de tróia.
em cada instante o galo pode ter cantado três vezes.
em cada instante a clepsidra deixa cair a última gota.

(tradução de William Zeytounlian)

:



Doomsday
Jorge Luis Borges

Será cuando la trompeta resuene, como escribe San Juan el Teólogo.
Ha sido en 1757, según el testimonio de Swedenborg.
Fue en Israel cuando la loba clavó en la cruz la carne de Cristo, 
            [pero no sólo entonces.
Ocurre en cada pulsación de tu sangre.
No hay un instante que no pueda ser el cráter del Infierno.
No hay un instante que no pueda ser el agua del Paraíso.
No hay un instante que no esté cargado como un arma.
En cada instante puedes ser Caín o Siddharta, la máscara o el rostro.
En cada instante puede revelarte su amor Helena de Troya.
En cada instante el gallo puede haber cantado tres veces.
En cada instante la clepsidra deja caer la última gota.


in Los conjurados (1985)

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terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

"A Luz Não Deve à Sombra" :::: da primeira faixa do novo álbum de Black Cracker



Desde que ouvi esta canção / poema vocal do meu parceiro Black Cracker, ele permaneceu em meu crânio como um mantra tenso, não para a pacificação, mas a ação. É difícil traduzir esse trabalho, com suas rimas ótimas, e mesmo o título. Literalmente, seria "A luz não deve à sombra" (Light don´t owe shade). Mas shade, aqui, vai além da palavra sombra, recorrendo à linguagem da comunidade queer nova-iorquina que vem desde o fim da década de 70, em que shade funciona, dentro do nosso pajubá paulistano, como podre, equê, truque.

O verso diz Light don´t owe shade shit. Literalmente, seria "a luz não deve merda à sombra". Mas, em nossa linguagem queer brasileira, seria algo como "a luz não deve merda alguma à podridão". Se eu fosse imaginar este verso, escrito por um paulistano, poderia funcionar talvez como: "A luz não dá truque na sombra", mas também "A sombra não consegue dar truque na luz", ou, quem sabe, "A luz não é podre com a sombra", para manter o jogo entre light e shade.

De qualquer forma, aqui vai o poema vocal "Light don´t owe shade", de Black Cracker, do seu novo álbum Poster Boy, que sairá pelo selo e editora que estamos fundando em Berlim, Gully Havoc. Peço o apoio de vocês, entrando no link ao lado e nos seguindo, ou espalhando o poema vocal do meu parceiro.




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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Akia & Kenny Gold - ao vivo em Berlim


Akia & Kenny Gold, ao vivo no dia 21 de fevereiro de 2014, 
no teatro berlinense Hebbel am Ufer.  




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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Stuart Hall fala sobre o livro "Policing the Crisis" (1978)


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R.I.P. Stuart Hall (1932 - 2014).

Resta seu legado, que me parece extremamente atual, e é um possível guia pelo labirinto brasileiro hoje, em especial o volume colaborativo Policing the Crisis (1978).

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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Poems

Ricardo:

They promised you poems

& allegedly gave you none.
Much smarter than this one,
they must have just known
that poems make no one
stay or eventually return,
even if you give them tons.
I delivered the poems.
I delivered the poems.
I delivered the poems.


§




Tricky :

I confide to anything
So I have to hide from everything
Everybody wants a piece of me
Reach their origin and cease to be
Sit back and let it happen,
Let us take your time away.
I don't understand you.
I don't want your time of day.
If you're gonna walk, might as well walk your way
Always walk the hallways,
Forget the punk, I pack the funk.
I'm gonna take a piece of you.
Making money for good health,
But first I learn to see myself
But first I learn to see myself
You promised me poems
You promised me poems
You promised me poems

Terry Hall :

I rue the day that I ever met you
And deeply regret you
Getting close to me.
I cannot wait
To deeply neglect you,
Deeply forget you,
Jesus believe me.
You might have been my reason for living
I gave up on giving,
gave up everything.
We were a right pair of believers
A couple of dreamers,
So how come you hate me?
You promised me poems
You promised me poems
You promised me poems
Promised me poems

Martina :

Dreamed of ringing voices,
And contemplated choices.
Taste like a real kiss,
To heighten my awareness.
With all fairness, greatness with gratitude.
And simply riled with attitude
Now do promotion on TV, and ya still can't see.
We're down the hill cascade
And keep away the masquerade,
Dreamed of ringing voices,
And you promised me poems
You promised me poems
You promised me poems
You promised me poems

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domingo, 9 de fevereiro de 2014

Carta ao pai


Não há muito mais o que dizer sobre este poema além do que ele já diz-faz. Eu o escrevi há cerca de 3 meses. Foi a primeira vez que perguntei a amigos se devia publicar algo, não por questões de qualidade, mas por outros temores. Não foi fácil escrevê-lo e não está sendo fácil publicá-lo. Mas os amigos e o editor do Suplemento PernambucoSchneider Carpeggiani, me convenceram de que, diante dos últimos acontecimentos na República, talvez valha para alguma coisa, para alguém.

Carta ao pai

Agora que o senhor
mais assemelha pedaço
de carne com dois olhos
dirigidos ao teto escuro
no leito em que provável
só não há-de morrer só
porque nem a própria
saliva poderá engolir
por si na companhia
somente desta sonda
que o alimenta
me pergunto se ainda
em validade a proibição
da mãe em confessar
ao senhor os hábitos
amorosos das mucosas
que são minhas
e se deveras me amaria
tanto menos soubesse
quanta fricção já tiveram
que não lhes cabia
biológica ou religiosa
-mente e se também
pediria para sua filhoa
a morte que desejou
a tantos de minha laia
quando surgiam na tela
da Globo da Record
da Manchete do SBT
que sempre constituíram
seu cordão umbilical
com a tradição
e se deveras faria
sobrevir sobre eles
grande destruição
pela violência
com que urrava
seus xingamentos
típicos de macho
nascido no interior
desse país de machos
interiores e quebrados
em seus orgulhos falhos
de crer que o pai
é o que abarrota
geladeiras e não deixa
que falte à mesa
o alimento que nutre
as mesmas mucosas
em que corre
o seu sangue
mas não seu Deus
e ora neste leito partido
o cérebro em veias
como riachos insistentes
em correr
fora das margens
se o senhor
soubesse o dolo
com que manchei
a mesa
de todos os patriarcas
ainda pergunto-me
se me receberia
com a mansidão
que aceita na testa
o beijo desta sua filhoa
que nada mais é
que a sua imagem
e semelhança invertidas
tal espelho
que refletisse opostos
de gênero e religião
ou o desenho
animado na infância
de uma Sala de Justiça
onde numa tela
podia-se observar
um mundo ao avesso
e se o Pai e o pai
odeiam deveras
o gerado nas normas
da Biologia e Religião
mais tarde porém geridos
na transgressão das leis
que o Pai e o pai
impõem-nos na ciência
de sermos todos falhos
nessa Terra onde procriar
é tão frequente
que gere prazer
nenhum e olho
o senhor
com essas pupilas
que talvez jamais
reflitam o Pai
mas ora veem o pai
eu
mesmo pedaço
de carne
com dois olhos
peço perdão
em silêncio
pois sequer posso
dizer que não
mais há tempo
e mesmo assim
e porém
e no entanto
e contudo
pelo medo adversativo
de talvez abalar
uma sistema rudimentar
de alicerces
sob a casa
sob o quarto
sob esta cama
de hospital
emprestada
escolho
uma vez mais
o silêncio


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terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Dez anos sem Hilda Hilst



Completam-se hoje dez anos da morte de Hilda Hilst, a 4 de fevereiro de 2004, em um hospital de Campinas. Trata-se de uma década sem aquela que foi um dos mais completos e importantes escritores brasileiros do pós-guerra. Esta percepção, sabemos, tardou a chegar e mesmo hoje é provável que não seja unânime. De qualquer forma, sabemos o que dizia Nelson Rodrigues da unanimidade, e creio que a própria Hilst não esperaria que certos concidadãos seus aceitassem ou compreendessem seu trabalho, especialmente nestes dias de fanatismo religioso e reação a avanços no campo de direitos humanos ligados à liberdade sexual.

Com a edição completa de sua obra poética, dramatúrgica e em prosa nos últimos anos, Hilda Hilst avulta-se para mim como um dos artistas mais fenomenais que este território gerou, servindo de exemplo e fonte inesgotável de aprendizagem para os escritores de minha geração e os novíssimos. Sua poesia de feitio clássico, em que a renovação e uso que faz da línguagem de Catulo está baseada não em qualquer formalismo classicista de ideologia, mas na compreensão de sua atualidade propiciatória para o misticismo carnal e telúrico que informava sua mente poética, tem poucos paralelos. No país da elegância minimalista, ainda que violenta, de Machado de Assis e Graciliano Ramos, sua obra desbordada e febril talvez encontre um antecessor apenas em Raul Pompeia. Seu trabalho pertence à linhagem de autores como Genet, Beckett e Bataille, que não fizeram exatamente escola entre nós. Uma obra como Qadós (1973) é um artefato inédito e assustador, demonstrando como dualidades e dicotomias que fizeram as delícias de nossa crítica uniam-se em cicatrizes e feridas violentas no trabalho de Hilst e alguns poucos outros. Sua poesia amorosa e satírica permanecem como exemplos de exuberância de linguagem e de inteligência raramente atingidas entre nós.

Descobri seu trabalho em 1997, graças a uma resenha sobre seu último romance, Estar sendo. Ter sido (1997). A resenha terminava com os versos finais do poema "Mula de Deus", que encerrava o livro: "Palha / Trapos / Uma só vez o musgo das fontes / O indizível casqueando o nada // Essa sou eu. // Poeta e mula.Nunca me esquecerei da febre sentida, de pé, lendo aquele poema numa livraria, sem dinheiro para comprar o livro. "Mula de Deus" é um dos grandes poemas dos anos 90. Vale lembrar que 1997 foi o ano de publicação da obra completa de João Cabral de Melo Neto, em dois volumes, o tempo dos louvores à secura, à economia, ao antilirismo, com a instituição e repetição ininterrupta destes conceitos como valores estéticos inquestionáveis, que ainda povoavam ensaios e resenhas até não muito tempo atrás. Parecia natural, neste ambiente, que poetas como Hilda Hilst ou Roberto Piva, entre outros, não encontrassem ouvidos atentos.

Entre meus amigos na USP naqueles anos, criou-se uma espécie de grupo de iniciados cultores de Hilst, assim como líamos Clarice Lispector feito instâncias de insuperável sutileza e violência políticas e est-é-ticas. Lembro-me que em 2003 e 2004, a diretora de teatro Verônica Veloso e eu planejávamos uma visita não-anunciada a Hilda Hilst na Casa do Sol, viagem que íamos protelando por timidez e falta de meios, até que recebemos a notícia de sua morte a 4 de fevereiro de 2004 e nos arrependemos amargamente de não ter conseguido fazer a viagem a Campinas. 

Restou-nos a obra da grande escritora e nossa satisifação em ver seu trabalho tornar-se aos poucos um dos momentos mais altos da escrita brasileira das últimas décadas, algo que vai se firmando cada vez mais.

A Modo de Usar & Co. já dedicou uma postagem a Hilda Hilst em fevereiro de 2009, com poemas e o conto "Teologia Natural". Retornamos a ela hoje, com esta pequena homenagem e mais textos da moradora da Casa do Sol.





MAIS TEXTOS DE HILDA HILST

Trecho de Qadós (1973)

Difícil de explicar, ia dizendo aos borbotões que essas coisas senhora são para fazer uma limpeza na minha alma devo começar por aí não sei se a senhora entende mas o branco é demais importante para começar as orações e acendendo as velas fica visível para a Excelência que sou eu mesmo que me acendo, matéria de amor etc. etc. A maioria revirava os olhos, torcia a boca, umas coçavam os cotovelos, a cintura, diziam: homem, se queres comida eu entendo mas não tenho, o resto é confusão, despacha-te. Às vezes davam-me panos pretos, ou alaranjados ou com listas ou vermelho com florzinhas, nunca o branco, Excelência, e como último recurso para conseguir os círios eu entrava numa loja aos solavancos, o olho girassol e gritava: duas velas por favor, a mãe agoniza, em nome do vosso nosso Deus duas velas para as duas mãos de mamãe. E saía como o raio, como o cão danado, como Tu mesmo que te evolas quando Te procuro, ai Sacrossanto por que me enganaste repetindo: hic est filius meus dilectos, in quo mihi bene complacui? Nudez e pobreza, humildade e mortificação, muito bem, Grande Obscuro, e alegria, é o que dizem os textos, humilde e mortificado tenho sido, mas alegre, mas alegre como posso? Se continuas a dar voltas à minha frente, estou quase chegando e já não estás e de repente Te ouço, bramindo: mata o rei, Qadós, o inteiro de carne e de pergunta, pára de andar atrás de mim como um filho imbecil. Como queres que eu não pergunte se tudo se faz pergunta? Como queres o meu ser humilde e mortificado se antes, muito antes do meu reconhecimento em humildade e mortificação, Tu mesmo e os outros me obrigam a ser humilde e mortificado? Como queres que eu me proponha ser alguma coisa se a Tua voracidade Tua garganta de fogo já engoliu o melhor de mim e cuspiu as escórias, um amontoado de vazios, um nada vidrilhado, um broche de rameira diante de Ti, dentro de mim? E as gentes, Máscara do Nojo, como pensas que é possível viver entre as gentes e Te esquecer? O som sempre rugido da garganta, as mãos sempre fechadas, se pedes com brandura no meio da noite que te indiquem o caminho roubam-te tudo, te assaltam, e se não pedes te perseguem, se ficas parado te empurram mais para frente, pensas que vais a caminho da água, que todos vão, que mais adiante refrescarás pelo menos os pés e ali não há nada, apenas se comprimem um instante, bocejam, grunhem, olham ao redor, depois saem em disparada. Andei no meio desses loucos, fiz um manto dos retalhos que me deram, alguns livros embaixo do braço, e se via alguém mais louco do que os outros, mais aflito, abria um dos livros ao acaso, depois deixava o vento virar as folhas e aguardava. O vento parou, eis o recado para o outro: sê fiel a ti mesmo e um dia serás livre. Prendem-me. Uma série de perguntas: qual é teu nome? Qadós. Qa o quê? Qadós. Qadós de quê? Isso já é bem difícil. Digo: sempre fui só Qadós. Profissão. Não tenho não senhor, só procuro e penso. Procura e pensa o quê? Procuro uma maneira sábia de me pensar. Fora com ele, é louco, não é da nossa alçada, que se afaste da cidade, que não importune os cidadãos. Sou quase sempre esse, matéria de vileza e confusão para os outros, para os Teus olhos um nada que te persegue, um nada que se agarra às tuas babas, e como é difícil te perseguir, nem o rasto, nem a estria brilhante (aquela que os caracóis deixam depois da chuva) eu vejo, pois é pois é, seria fácil para o teu inteiro gosma e fereza, o teu inteiro amoldável, me dar umas pequeninas alegrias e te mostrares um dia Grande Caracol baboso aguado brilhante, te mostrares um dia intimidade, vê Cão de Pedra, agora não sei, fui íntimo para um uma ou dois, nem me lembro, e a princípio como me trataram bem, cuidado na fala, langor no olhar, a minha palavra era véu dourado que pouco a pouco pousava, translúcido, luminosidade delicada, eu Qadós falava e o espaço era pérola, leite fresco, pistilo, um ou três relinchos para aquecer ainda mais tanta mornura, sorriam, lábio frouxo encantado, gula de me possuir inteiro, se era mulher ela me dizia isso mesmo gula de te possuir inteiro, Qadós, se era homem também, aí eu me escondia, dias e dias sobre Plotino, outros dias apenas flutuava sobre o verde dos parques, de longe me seguiam, eu de névoa transfixado, melindre dissolvência, Qadós O Inteiro Desejado.

§

O Poeta Inventa Viagem, Retorno e Morre de Saudade (I)

Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia -
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver.

in Júbilo Memória Noviciado da Paixão (1974)

§

Dez Chamamentos Ao Amigo (I)

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

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segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Notícias de mim mesmo

então aviso os ofegantes
ora eu ainda estou vivo
pode ser que meu nome
em breve gere dois ou três
desejos de conforto na cova
mas por enquanto respiro
posso no calar dessa cava
aquecer você você e você
que têm telefone endereço
por favor liguem a tempo

enquanto ainda eu atendo
por ora sou eu quem dou
notícias de mim mesmo



Berlim, 03 de fevereiro de 2014

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Jovens poetas europeus: Jonas Lieder


Jonas Lieder é um escritor, poeta e músico alemão, nascido em Frankfurt am Main em 1983. Formado em matemática, o autor é também diretor de arte da agência de publicidade Ballhaus West em Berlim. Seu trabalho textual inclui o visual e a experimentação marcada pela paronomásia, que nos remetem ao trabalho dos poetas concretos da década de 50, vários deles tendo mais tarde trabalhado no campo da comunicação social, e ainda uma ligação à tradição trovadoresca da poesia europeia, como nestes poemas líricos abaixo. Neles, vemos como as técnicas do trobar leu de um Martim Codax ou Dom Dinis sobrevivem no mundo de hoje, fazendo da poesia a forma de arte ainda mais popular nesse nosso mundo.


POEMAS DE JONAS LIEDER
   

feathered
Jonas Lieder

oh, this time let me tell you what i think
there’s a line on the brink.
beyond the brink there is a garden with a tree
and in this tree there is a me.

and i fly, it’s absolutely sure i wing it this time
and i fly, it’s absolutely sure i wing it this time

oh this pine majestically a full-grown tree
it asks for me
beyond the tree beyond the garden and the me
this is where i want to be

and i fly, it’s absolutely sure i wing it this time
and i fly, it’s absolutely sure i wing it this time

:

emplumado

ah, dessa vez deixa-me dizer o que imagino
há uma linha no precipício
além do precipício há uma árvore no jardim
e nessa árvore há-me a mim

e voo, é absolutamente certo que ouso asas no interim
e voo, é absolutamente certo que ouso asas no interim

ah majestosamente adulto em copa um buriti
pede por mim
além da árvore além do jardim e de mim
eu quero é estar aí

e voo, é absolutamente certo que alço asas no interim
e voo, é absolutamente certo que alço asas no interim

(tradução de Ricardo Domeneck)


§




bubbles
Jonas Lieder

on the very ground
of the pool in the yard
with the boys and the drinks
there is you
not breathing at all.
are you not breathing at all?

on the very ground
of the pool in the yard
with the girls and the drugs 
there is you
not breathing at all. 
are you not breathing at all?

and the bubbles bubble up now, bubble up now, bubble up.

on the very ground
of the pool in the yard
with the do’s and the don’t’s
there is you
not breathing at all. 
are you not breathing at all?

and the bubbles bubble up now, bubble up now, bubble up.
and the bubbles bubble up now, bubble up now, bubble up.
and you see them climb higher, higher, right up to the surface
where they turn into thin air.

on the very ground
of the pool in the yard
with the boys and the girls
and the drinks and the drugs
and the do’s and the don’t’s
there is you
not breathing at all.
not breathing at all.
not breathing at all.

:

bolhas

bem ali no chão
da piscina no quintal
com os meninos e as bebidas
há você
todo sem respirar.
você está mesmo todo sem respirar?

bem ali no chão
da piscina no quintal
com as meninas e as drogas
há você
todo sem respirar
você está mesmo todo sem respirar?

e as bolhas borbulham agora, borbulham agora, borbulham

bem ali no chão
da piscina no quintal
com os sins e os nãos
há você
todo sem respirar.
você está mesmo todo sem respirar?

e as bolhas borbulham agora, borbulham agora, borbulham
e as bolhas borbulham agora, borbulham agora, borbulham
e você as vê subirem, subirem, lá no alto da superfície
onde elas se tornam só ar solto

bem ali no chão
da piscina no quintal
com os meninos e as meninas
e as drogas e as bebidas
e os sins e os nãos
há você
todo sem respirar
todo sem respirar
todo sem respirar

(tradução de Ricardo Domeneck)

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domingo, 2 de fevereiro de 2014

Aniversário do incêndio do Joelma e "Os amantes indecisos", um poema que usa a imagem


Foi aniversário do incêndio do Edifício Joelma ontem, como me chamou a atenção Marcus Fabiano Gonçalves, que se lembrava que eu havia usado a imagem em um poema. Tomo como motivo para compartilhar o poema aqui. E lembrar seus 191 mortos. R.I.P.

Os amantes indecisos

1.

ay Lancelot oh
Guinevere little
guinea
pigs indeiscentes
oxalá os cascos
de cavalo e cavalier
achatem-me o crânio
no despencar de
alturas
dos estames do
senhor farelo & senhora
migalha
de vossas ofertas
& liquidações
pois toda ciudad
baniu-me
oaxaca lumbago chemnitz
como se my medulla
oblongata contagiasse
tel quel maçã-adâmica
ou pior: maçã
evífica –
homúnculos & mulhúnculas
guardam-se
de minhas epiderme & epic
glottis
como calíope da anorexia
e reclinam-se à hipotenusa
ao desfile das penugens
de minha especialúrgica
uniqueza preciosérrima
rarité extinta
como pardais: perdoai-nos
vossa espaçosidade –
! antes projetado
às profundezas
do azul feito
uma Laika
! antes exposto
às explosões
do azul feito
uma Leica
a sujeitar-me em objeto
ao desaire de vosso desejo
alheio alhures
ou nomear-me vosso ornitólogo
na cava & cova
eis-me alcunhalizado embrenhagado
a 16% de rosiclerose
via Amoreno della
Valpolicella
e ninguém esfinja a polpa
deste conundrum
dos motivos por que
fui-me
apagogiar por vossa mercê
ou como hei de me
excabulir


2.

sansão & heloísa
quedam-se inquocientes
a sorver feito lêmures
seu fisco
e sonegam suas
quotas-partes do quotidiano
incapazes da divisão
de 45 por 33
como abelardo
& minnie
asseguram o quórum
de sua assembléia
de 2
e ruflam os tambores
das asas galináceas
de seus tímpanos
com palavrículas
plagiadas de bonnie
& corisco
feito “eis-me a polpa
de teu bulbo”
ou “permita-me,
caro/a senhor/a,
exercer a clara-neve
de vossa cremogema”
enquanto clyde mickey
dalila
dadá
haurem o haraquiri
das memórias
de seus antigos
rituais de acasulamento
perseguindo-lhes
a consciência ao molho
feito Io + abelha
e desgrenham-se
por brenhas
a maldizer copérnico
por roubar-lhes os cantos
do mundo onde
sumidourar-se escafundir-se
para meditar
o hocus-pocus do “não
vos quero mais” dos
árbitros do fim


3.

quisera ser a que
engendra o círculo
de sua atenção
tal qual a
quarta concubina
do mestre que opera
randomicamente
a escolha
de onde medra
seu sim
feito o hoje
que se resigna
ao acetilsalicílico
em minhas glândulas
de 30
de janeiro de
2007
no abismo
de abscissas
em anonimato
para preencher
o gabarito
de sua aceitação
maestro senhor doutor
conheço vosso
1-2-3 e não
sou o 4
inevitável
de sua espeleologia
geologicamente historiográfica
versus minha
klangfarbenjealousy
magnifice vir tamquam
frater et compater
carissime oh pledgeallegiance
excelentíssimo
entre
glass & cage
quede la minimal
chance
de vidrar tus ojos
& engaiolar tus ovos
enfeitando-lhe a fronte
como gleicheniácea
doutor senhor maestro
eis-me açucarada
cucaracha
a escalar-lhe a
glace & cachê
quelque chose
que impeça
la repetitious permuta
de tuas recusas
à minha demasiado
generosa & aleatória
concórdia e resta-me
saharar à alfândega
da manhã
caso eu sobreviva
entre 18:56
& 05:49
à transiberiana

4.

alas! concierge
fazes
de minhas férias
mesmo um Joelma
& me incitas
à discrição
de cachoeira
in cache a
intimar-me exigir-me
auto-
controle
de carro
em capote
euzinho desinfectado
tal intocável
sob plexiglass
ao teu manuseio
de telespectador
contento
-me em ser tua
mais privada
exógena
cowboy
de mi poitrine
cai bem
que me caces
justo à hora
da ceia
& I
the exception
of your etc
imploro
que me compre
ends
tal qual tradutor
de rádio autista
mas ach! candido
dos campos
talvez trabduzir
seja coisa
de Kurosawa
& Shakespeare
a empatizar como
trépano ao tímpano
dannalors thentão
com minhas patas
firmes às rédeas
do cavalo calvo
que me descarrega
às sarjetas do alheio
e do próprio container
hormonal a meio
caminho da selva
escura a todo
velocímetro de altura
imune à vacina
da espera
por tua vaga
resisto a resignar
-me
às catástrofes
de cadastro e facto
do como perseverar
& sobreviver
aos braços dos segundos
se será
hoje amanhã
o dia todo
sim
day post-day: multidawn


§

Ricardo Domeneck in Ciclo do amante substituível (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012).

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Rubens Akira Kuana vocaliza Luca Argel

Rubens Akira Kuana


"Uma hora para as caixas de som pararem de funcionar", 
poema de Luca Argel vocalizado por Rubens Akira Kuana.


Luca Argel

Uma hora para as caixas de som pararem de funcionar
conheci você no banheiro da cantina
cantando muito alto uma marchinha famosa
não era roxo ainda seu cabelo
não era roxa ainda sua voz
conheci você num leilão de frangos
fugindo do plantão
não era roxo ainda seu nome
não era roxa ainda sua mão
conheci você no maior município em área deste país
roubando uma canoa
não eram roxas ainda suas fotos
não era roxa ainda sua língua
conheci você andando de bicicleta
na primeira manhã de uma guerra
não eram roxos ainda seus amigos e o seu corpo
não era roxo ainda

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sábado, 1 de fevereiro de 2014

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