segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Eu, a exceção de teu et cetera

Andei revendo vários filmes de Almodóvar na companhia de Ivánova. Primeiro vimos Hable con ella (2002); algumas noites mais tarde, Todo sobre mi madre (1999); hoje à noite, Carne trémula (1997). Estes três filmes foram muito importantes para mim. Eu os vejo como uma trilogia. Talvez pudéssemos chamá-la de O Touro Ensandecido Não Investe Contra O Vermelho Mas Contra A Genitália Do Toureiro A Chacoalhar-se, ou talvez Como A Criança Que Espera Que A Boneca A Ame De Volta Já Dizia Rilke, ou, por fim, Das Dificuldades De Buscar Financiamento Para A Cura Da Epidemia De Si Próprio.

Etc, Etc, Etc.

Escrevi certa vez num poema em inglês e português:

"I
am the exception
of your etc."

ou

"Eu,
a exceção
de teu
et cetera."

Melhor disse Drummond, sobre aquela "sede tão vária / e esse cavalo solto pela cama / a passear o peito de quem ama."

Depois destes filmes, Almodóvar continuou fazendo trabalhos muitíssimo competentes, lindos até, mas a tensão espiritual (não sei chamar de outra coisa) que o afinava como um violino estressado naqueles três filmes não mais se repetiu, em minha opinião. Como poderia? Ninguém pode viver por muito tempo naquele estado.



Saio de filmes como este meio transtornado, e mal posso me recompor com as migalhas que sobram de mim no chão. Ah! O dia em que nem só de migalhas viverá o homem.

A água no peito, os pelos eretos, me ponho então a ler Hilda Hilst, Wislawa Szymborska, Diane di Prima. A escutar Dolores Duran, Maysa, Elis Regina, Ângela Ro Ro, Chavela Vargas. Como se isso pudesse acalmar alguém!

Assim deixo vocês, com algumas destas vontades, queridos. Que nos trema a carne todos os dias de nossa vida.

§



§

Cantiga para Nenê-X, por nascer
Diane di Prima, tradução de Ricardo Domeneck

Benzinho
quando rasgar-me por dentro
você encontrará
aqui uma poeta
não exatamente algo dos sonhos.

Não hei de prometer
que jamais conhecerá a fome
ou a depressão
neste globo
de vácuo
aos pedaços

Mas posso apresentar-lhe
nenê
o bastante que amar
para partir-lhe o peito
pelos séculos

(tradução de Diane di Prima)


Song for Baby-O, Unborn: Sweetheart / when you break thru / you´ll find / a poet here / not quite what one would choose. // I won´t promise / you´ll never go hungry / or that you won´t be sad / on this gutted / breaking / globe // but I can show you / baby / enough to love / to break your heart / forever

§



§

Fragmentos de um discurso ao FBI
Diane di Prima, tradução de Ricardo Domeneck

Ai vocês de borsalino ou impermeável dão testemunho
Dos dias fugidios, data & horário?
As viagens de metrô a amantes esquecidos
(Vocês em verdade os têm para sempre, identidade & 3x4?)
Os velhos números de telefone, cujo ritmo não mais
Canta por nós, descrições de carros há muito mortos?
Ai ternos cronistas de nossas vidas irisadas
Benditos obreiros no arquivo labiríntico
Querubins gravadores que relegarão ao fogo
Identidade & formulário, papéis e corpo enquanto nós
Ascendemos em cânticos acima das árvores

(tradução de Ricardo Domeneck)


Fragmented Address to the FBI: O do you in fedora or trenchcoat bear record / Of the elusive days, date & hour / The subway journeys to forgotten loves / (Do you indeed have them forever, name & picture) / The old phone numbers, whose rhythm no longer / Sings for us, descriptions of long dead cars? / O gentle chroniclers of our rainbow lives / Blessed laborers in the labyrinthine archive / Recording angels who will consign to fire / Name & form, body & papers while we / Rise singing above the trees

§


Pequena Nota sobre a Dispersão da Língua
Diane di Prima, tradução de Ricardo Domeneck

uau cara eu disse
quando você inclinou meu queixo e nutriu
de cabeça em cuspe a libação de minha língua em fluidos

e uau cara eu disse quando caímos nos trapos e espuma
e uau era a aurora: nós fervemos os cafezais
numa panela batida

uau cara eu disse o dia em que caí de sua graça
(apenas o tom foi outro)
uau cara uai uau eu colhi meu pente
e meus dois livros e sumi e pronto e acabou



Short Note on the Sparseness of the Language: wow man I said / when you tipped my chin and fed / on headlong spit my tongue´s libation fluid // and wow I said when we hit the mattressrags / and wow was the dawn: we boiled the coffeegrounds / in an unkempt pot // wow man I said the day you put me down / (only the tone was different) / wow man oh wow I took my comb / and my two books and cut and that was that

§



§

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.

(Hilda Hilst, Do desejo, 1998)

§

Amor à primeira vista
Wislawa Szymborska, tradução de Júlio Sousa Gomes


Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza é mais bela ainda.

Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado?

Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram —
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum “desculpe” num grande aperto de gente?
uma voz de que “é engano” ao telefone?
— mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.

Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.

Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.

Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.

Haverá talvez três anos
ou terça-feira passada,
certa folhinha esvoaçante
de um braço a outro braço.
Algo que se perdeu e encontrou?
Quem sabe se já uma bola
nos silvados da infância?

Punhos de poeta e campainhas
onde a seu tempo o toque
de uma mão tocou o outro toque.
As malas lado a lado no depósito.
Talvez acaso até um mesmo sonho
que logo o acordar desvaneceu.

Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.

§§§

sábado, 28 de agosto de 2010

Excerto da performance de Lesley Flanigan na SHADE inc

Preparei uma postagem para a Modo de Usar & Co. com um vídeo-excerto da performance da poeta vocal e escultora sonora americana Lesley Flanigan, no evento que co-organizo aqui no Berlimbo às quartas-feiras. Foi uma coisa muito bonita, sabe? Reproduzo abaixo o que disse e mostrei por aquelas bandas:



(Lesley Flanigan, ao vivo na SHADE inc/NBI, Berlim, julho de 2010)

Lesley Flanigan é uma escultora sonora, performer eletroacústica e poeta vocal norte-americana, nascida em Tampa, Flórida. Seu trabalho pesquisa a materialidade do som e da voz, borrando as fronteiras definidas entre música, barulho e som. Flanigan já apresentou seus trabalhos em instituições e festivais como o Solomon R. Guggenheim Museum (Nova Iorque), Sónar (Barcelona), Transitio_MX (Ciudad de México), NIME (Gênova), ICMC (Copenhague), ISEA Conference (Singapura), Busan International Design Festival (Seul), entre outros.

Em nosso interesse pela textualidade, mostramos acima um vídeo da peça "Thinking real hard", em que Flanigan mescla os sons de amplificações sonoras de instrumentos criados por ela à amplificação de sua própria voz, vocalizando texto de sua autoria. A performance ocorreu no clube berlinense Neue Berliner Initiative, durante o evento SHADE inc, com curadoria minha, em julho de 2010. A performance de Lesley Flanigan tem um certo caráter xamânico, a maneira como se apresenta de joelhos, seu trabalho com a voz, os espelhamentos de sua imagem. É poesia lírica que remonta a Safo e às trobairitz medievais, assim como a contemporâneos mais velhos como Meredith Monk. Lesley Flanigan vive e trabalha em Nova Iorque.





.
.
.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

"Ricardo como Mendieta", retrato de Adelaide Ivánova, Berlim, 2010.

"Ricardo como Mendieta", retrato de Adelaide Ivánova, Berlim, 2010.

Adelaide, conjuguemos
o novo verbo
"mitologizar",
obviamente reflexivo.
Destarte:
Eu mitologizo-me.
Tu mitologizas-te.
Ela mitologiza-se.
Nós mitologizamo-nos.
Vós mitologizai-vos.
Eles mitologizam-se.

.
.
.

Ricardo Aleixo manda avisar:

Modelos vivos sai da gráfica nos próximos dias, diretamente para as bem fornidas estantes da Crisálida Livraria e Editora, no edifício Maleta – e, esperamos, para as de outras boas casas do ramo de qualquer parte do Brasil. O lançamento será no dia 11 de setembro, sábado, a partir das 11h, na livraria Café com Letras (rua Antônio de Albuquerque, 781, Savassi). Na terça-feira, dia 14, às 19h30, no mesmo local, comemoro meus 50 anos, apresento a leitura-concerto* Música para modelos vivos movidos a moedas e abro uma pequena mostra de poemas visuais extraídos do livro. --- Ricardo Aleixo

.
.
.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Quem será Ata Kak? Por onde andará Ata Kak?

Descobri há algumas semanas, por obra do generoso acaso, este vídeo contendo a canção "Daa Nyinaa", de um certo Ata Kak.


Desde então, tenho ouvido as canções do músico ganês sem parar. Esta faixa me parece particularmente luminosa.

Não encontrei muita informação sobre ele. Chamado de "O Rei do Highlife", as canções espalhadas pela Rede são de uma fita-cassete (!!!) do álbum Obaa Sima, de 1989, em que o lo-fi é clara e frutífera necessidade, não joguinho retrô de estilo.


Se você, como eu, achar o que vem a seguir uma coisa esplêndida de feliz, entre no (mui bom) Awesome Tapes From Africa, capitaneado pelo nova-iorquino Brian Shimkovitz, para baixar as outras faixas da fita-cassete.

Sem Michael Jackson, alguém precisa ir a Gana e transformar Ata Kak na maior estrela da música pop atual. Por favor.

Mais uma postagem do MPSD: Movimento Em Prol De Poetas Que Saibam Dançar.


"Daa Nyinaa", de Ata Kak, no álbum Obaa Sima (1989)


.
.
.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Três vídeos de 2006 comentados

Comecei a trabalhar com vídeo em 2006. A ocasião fora casual: à época eu havia sido contratado como editor da revista Flasher, cargo que ocupei durante aquele ano até desentender-me est-É-ticamente com o financiador do projeto e afastar-me. Com excelentes câmeras à disposição, encontrando-me com artistas como Planningtorock, Casiotone for the Painfully Alone ou Ellen Allien em Berlim, Bat For Lashes, Tetine ou David E. Sugar em Londres, tive que aprender a manejar o equipamento, a usar programas de edição como o Final Cut.

Quase todas as narrativas sobre a gênese da videoarte relatam a maneira como artistas pobres da década de 60, sem dinheiro para comprar tela e óleo, começaram a experimentar com câmeras Super 8 que encontravam no lixo, por estarem já obsoletas. Sempre gostei muito desta História-estória, sobre este início casual para artistas como Joan Jones, Vito Acconci e tantos outros.

Assim, com aquilo que Pound dizia ser essencial para um jovem poeta (CURIOSIDADE), comecei em 2006 a fazer retratos-em-vídeo de amigos e amantes, e a filmar imagens para o que viriam a ser meus primeiros videopoemas e performances. No final daquele ano, seria contactado pela TV Cultura, mais precisamente pelo diretor do Programa Entrelinhas na época, o crítico Ivan Marques, para uma possível entrevista que conduziríamos e filmaríamos à distância, entre São Paulo e Berlim. Foi quando sugeri preparar algo de 7 minutos, algo nas linhas de uma "entrevista", o que acabou se transformando nos vídeos Garganta com texto (2006) e epic glottis (2006), que foram ao ar juntos em 20 de dezembro de 2006. Percebi que era a oportunidade perfeita para usar o trabalho com o vídeo e chamar a atenção para aquilo que começara a me obcecar naquele ano: a relação entre ESCRITA e ORALIDADE, Literatura e Performance. Naquele entusiasmo de poeta querendo quebrar barreiras, preparei o vídeo especialmente bombástico, em sentido positivo e também negativo, que é Garganta com texto. O vídeo é propositalmente provocativo em muitos aspectos. À época eu acreditava estar quase sozinho neste debate, e via ao redor a hegemonia do que me pareciam equívocos muito chatos, como os conceitos de "trans-historicidade" e "pós-utópico". Aos poucos começaria a descobrir e dialogar com os vários poetas brasileiros que mantinham e mantêm preocupações e questionamentos parecidos, como Ricardo Aleixo, Marcelo Sahea e outros.



Ricardo Domeneck. Garganta com texto: um oralfesto (2006).


Provavelmente, junto com meu ensaio "Ideologia da percepção", creio que o vídeo Garganta com texto é um dos meus trabalhos que mais geraram resistência e ao mesmo tempo criaram a "imagem" com que alguns acreditam poder "descrever" meu trabalho "em geral". Quando o vídeo foi mostrado na Espanha, também gerou algumas reações acaloradas de poetas-escritores espanhóis. Hoje em dia, eu entendo a resistência. O vídeo tem asserções bombásticas e complicadas. É por isso que passei a chamá-lo de oralfesto, para deixar claro que estou ciente de seu caráter belicoso e combativo, e, principalmente, dos problemas que isso gera no próprio debate com que eu queria colaborar ao fazer o vídeo. Talvez a parte que mais cause incômodo seja quando digo que "poesia não é literatura." Obviamente, eu teria evitado descontentes (e até mesmo, alas!, "ofendidos") se tivesse dito "Poesia não é APENAS Literatura", mas creio que muito do vídeo foi compreendido de forma errônea. Em primeiro lugar, ele foi julgado apenas por seu texto, como se fosse um texto publicado em um jornal... outros o julgaram como se fosse um poema escrito. O fato de que se tratava de uma defesa da oralidade e performance feita já em oralidade e performance foi geralmente ignorado. O vídeo deveria ser compreendido e julgado em seu contexto, como ele próprio defende, sendo como é uma tentativa de buscar uma forma de trabalho para o poeta que quer fazer o que diz, enquanto diz o que faz. Uma tentativa de unir o faber e o vates. Foi minha primeira ação em prol de uma crítica que veja a Literatura como uma das franquias possíveis da Poesia, e não o contrário. Isso, em minha opinião, faz uma diferença gigantesca em como lidamos com o trabalho poético contemporâneo, e responderia a tantos relatórios de catástrofe sobre o parco público-"leitor" (una a ele o público-"ouvinte" e a coisa muda muito de figura). Faço-me claro ou complico as coisas? O fato de que era uma intervenção televisiva também não deveria ser esquecido, mas o vídeo acaba julgado justamente pelos parâmetros que ele questiona e critica. Isso acontece muito com meu trabalho.

Sei que este meu primeiro vídeo tem muito de provocativo em seu entusiasmo juvenil. Não vou rejeitar o trabalho por estas características, já que o entusiasmo provocativo e juvenil também habita tantas coisas que admiro na poesia brasileira da década de 20 e da década de 50.

Mais "redondo" conceitualmente talvez seja o irmão deste vídeo, o que chamei de epic glottis (2006), um trabalho conceitual de que gosto muito ainda, e que se alinha de certa maneira ao meu mais recente The poor poet (after Carl Spitzweg), deste ano.


Ricardo Domeneck. epic glottis (2006).

O texto oralizado no vídeo por meus amigos alemães e ingleses aqui em Berlim (que não conhecem uma sílaba de português) é o terceiro fragmento do poema-em-série "Dedicatória dos joelhos", do meu segundo livro, a cadela sem Logos (2007):


falar hoje exige
elidir a própria
voz as transações
inventivas entre
interno e externo
demandam
que a base venha
à tona e a
superfície seja
da profundidade da
história ímpeto
denotando o
centrífugo
o corpo público
que exibo como
palco fruto
da ansiedade
do remetente
o interno ao longo
da epiderme
como emily
dickinson terminando
uma carta de minúcias
com "forgive
me the personality"


Ricardo Domeneck, a cadela sem Logos (São Paulo: Cosac Naify, 2007)

Fazer, dizer. Dizer o que faz, fazer o que diz.

§
§
§


A propósito, falando sobre vídeos de 2006, o paulista Donny Correia começou um novo blog chamado Mallarmidia - artexperience, mostrando o trabalho de artistas que transitam entre gêneros. Na semana passado ele mostrou vídeos da britânica Sam Taylor-Wood (n. 1967), uma de minhas artistas favoritas. Nesta semana, ele está mostrando um trabalho meu, uma das minhas pecinhas mais "minimalistas", chamada Eugen (2006), que começou como um vídeo-retrato e acabou sendo um tico de algo mais aos meus olhos. Gosto particularmente dele. Passem por para ver os trabalhos da Sam Taylor-Wood, onde está também este meu Eugen. Ele pediu que eu ajudasse a divulgar o blog, aqui está.



Ricardo Domeneck. Eugen (2006).

.
.
.

Aos interessados, três de minhas entrevistas (excertos): com Ellen Allien, Casiotone For The Painfully Alone e com o duo Tetine:


Entrevista com Ellen Allien, excerto. Ricardo Domeneck, Berlim, 2006.


§


Entrevista com Owen Ashworth, mais conhecido como Casiotone For The Painfully Alone, excerto. Ricardo Domeneck, Berlim, 2006.


§



Entrevista com Bruno Verner e Eliete Mejorado, do Tetine, excerto. Ricardo Domeneck, Londres, 2006.

.
.
.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Algumas notícias antes do fim-de-semana, sobre o novo livro de Érico Nogueira, minha viagem a Israel, Orpingalik e a Hilda Magazine

I. Um livro.


Ao que parece, começou a Bienal do Livro de São Paulo, segundo alguns relatos entre o sarcasmo e o espanto que andei lendo pela blogosfera brasileira. Aqui de meu exílio eleito no Berlimbo, falante às paredes, sei apenas que o evento torna-se o momento de lançamento de alguns livros poucos e parcos que são necessários. Vou referir-me aqui a um deles: o segundo livro de Érico Nogueira, intitulado simplesmente Dois (São Paulo: É, 2010).



Não vou me estender a respeito por ora, pois quero escrever um ensaio sobre o trabalho com calma, mas afirmo desde já que o livro traz um poema-em-série, intitulado "Deu branco", que é um dos melhores poemas dos últimos... como gracejou Pound certa vez, "em nome da tranquilidade pública deixemos o número de anos para a imaginação dos leitores". O que posso dizer também é que o poema-em-série me parece um dos melhores exemplos de como a poesia de qualidade borra quaisquer dicotomias, como tradição versus vanguarda, escrita versus oralidade ou outras bobagens. É Érico Nogueira na linhagem de Catulo, com os pés fincados no chão de seu momento histórico, poeta com quem me sinto mais irmanado do que nos momentos em que ele debanda para os lados de Virgílio, apesar da grande qualidade que apresenta também nestes momentos. Mais, agora não digo. Deixo vocês com os dois primeiros poemas da série.


Dois fragmentos iniciais de "Deu branco"
Érico Nogueira

1.


É sempre assim: bater o ponto de saída
e “ufa, até que enfim” e “hoje, só amanhã”
pensar picando a mula, o cérebro fervendo
e o ego semi-cheio da mão-boba a mais;
a rua até que tá bonita: o sol se põe,
a praia é uma promessa, mas um mal-estar,
o velho mal-estar de sempre, ameaça tudo,
insiste em ser imune a tudo o que tem sal;
a voz esgrouvinhada da rabeca (não,
não é hebraico, não) pendula pelo tímpano
assim como gangorra, e um soco no nariz,
mais outro soco, “ah, dã, dã, dã – dama da noite!”;
um vento chega, tu já quase em casa, e o bosque
em frente (sempre esteve ali?) chama o teu nome,
o nome de verdade, que não tem crachá;
lá bem lá em cima a lua luz sem dar por nada,
e desse nada tu no último degrau;
um frio, enfim, a cama quente: é sempre assim.



2.

Mas que dormir, que nada, é a vida na janela,
a via-láctea e tanta estrela que confunde,
um pisca aqui, pisca acolá, pra quem quer ver;
o que é que a noite dá, por que, ninguém entende,
foi Deus que deu, sei lá, talvez, melhor de dia
quando a cabeça faz, não pensa, e o mundo é mais;
agora, já sem luz, já sem barulho, é dose,
e a vida é menos vida – ou mais –, é dose, eu disse,
alguém se levantar, querer ir ao banheiro
e, louco pelo espelho, ter colhão de olhar;
relógio de parede, espelho, alma penada
e tudo aquilo que ataranta e me esqueci,
vem só de noite, como alguém que não quer nada,
puxar teu pé, mané, sem dó de ti: levanta,
homem, levanta e encara, vai, olha de frente;
nada é tão feio assim, tão mau nem tão terrível
quanto um singelo sol de uma segunda-feira;
o escuro é bom, protege, o escuro é teu amigo.



Érico Nogueira, Dois (São Paulo: É, 2010)


II. Poetas de Israel.

Em duas semanas parto para Tel Aviv, em Israel, onde fui convidado a me apresentar como DJ. Será minha primeira visita ao país. Como sempre faço antes de viajar a um país, seja como DJ, poeta ou turista, comecei uma pesquisa mais demorada sobre a poesia moderna e contemporânea do lugar. Encomendei alguns livros, dos quais até agora só chegou Selected Poems and Drama, de Lea Goldberg (1911 - 1970), em tradução para o inglês de Rachel Tzvia Back. Goldberg é considerada poeta da "segunda geração israelense", de um tempo no Brasil que nos daria Henriqueta Lisboa e Vinícius de Moraes. Encomendei antologias também de Iehuda Amichai e Dan Pagis. Já tenho uma bela antologia espanhola dos poetas modernos de Israel, e uma seleção também espanhola do poeta contemporâneo Nathan Zach (n. 1930), de uma geração equivalente à que nos daria Haroldo de Campos, Ferreira Gullar e Mário Faustino. Andei procurando pela Rede alguma página que fale sobre os poetas jovens do país, mas é difícil encontrar informações. Quem as tiver e quiser compartilhá-las comigo, seria muito gentil. Deixo vocês com uma paráfrase minha para um pequeno poema de Dan Pagis, meu poeta israelense favorito.

Escrito a lápis em um vagão de trem lacrado
Dan Pagis, paráfrase de Ricardo Domeneck

Aqui neste vagão
eu Eva
com meu filho Abel
se virem meu primogênito
Caim filho de Adão
digam-lhe que eu




III. O poeta inuíte Orpingalik

Preparei hoje uma postagem para a nossa Modo de Usar & Co., que, como vocês sabem, coedito com os companheiros Angélica Freitas, Fabiano Calixto e Marília Garcia, sobre o poeta inuíte Orpingalik (floruit 1921 - 1924), para a qual preparei uma paráfrase de seu poema-canção "Meu fôlego", além de sua declaração poética concedida a Knud Rasmussen. Contra a centralização europoética que nos aflige a todos.


Orpingalik na Modo de Usar & Co.



IV. Hilda Magazine

Meu companheiro Oliver Roberts e eu estamos trabalhando em um novo design para a nossa Hilda Magazine. O novo layout irá ao ar em cerca de uma semana. Faz algum tempo que não a atualizamos, mas com o novo sistema que estamos criando será mais fácil publicar trabalhos por lá. Quem nunca a visitou ou não o faz há algum tempo, convido-o a passar algum tempo naquele que é um dos meus projetos de maior alegria:

HILDA MAGAZINE


.
.
.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Uma instalação em Berlim de/com Adelaide Ivánova

Conheci Adelaide Ivánova em 2003, quando ambos buscamos moradia e asilo político-artístico-financeiro em uma casa da Vila Madalena, atrás do cemitério da Cardeal Arcoverde em São Paulo, que já chamávamos desde sua fundação wittgenstein/tautologicamente de O Sobrado, lugar que se tornaria o epicentro de nosso grupo de amigos entre 2001 e 2000-e-alguma-coisa. Era minha segunda passagem pel´O Sobrado, a primeira de A.I., que chamamos de Ivi entre os amigos. Em seu período de existência, passaram pel´O Sobrado, todos jovens, pobres e iniciantes: poetas, cineastas, atores, fotógrafos, teatrólogos, antropólogos, escritores, todos amigos ou, em alguns casos, ocasionalmente algo mais.

Há exatos 7 anos, no aniversário de Ivi (ou "a fotógrafa Adelaide Ivánova" para vocês), em agosto de 2003, organizei sua primeira "exposição" no próprio Sobrado. Fui seu primeiro, digamos, "curador". Ah! a autoimportância deliciosa e determinante de quando temos vinte-e-poucos anos. Todos tínhamos vinte-e-poucos anos. Parecia ser a idade a se ter naqueles tempos, como Gertrude Stein escreve com humor em sua Autobiography of Alice B. Toklas: there came the time when everyone was twentysix, it just seemed the right age to be at the time, ou algo assim... citar Gertrude Stein de memória é sempre bom. No texto sobre a mostra das fotos, que se perdeu nos dias e noites daquele Sobrado, eu falava sobre Imogen Cunningham, Nan Goldin, Wolfgang Tillmans, quando tudo o que eu queria e deveria dizer é que eu simplesmente gostava das fotos de Adelaide Ivánova. É que, como jovem poeta brasileiro escrevendo seu primeiro livro, o que viria a ser o Carta aos anfíbios, olhando ao redor e vendo apenas aqueles poetas mais velhos da década de 80 e 90 trans-historicamente flutuando em um limbo cor-de-rosa pós-utópico que não se sabia se em 1822 ou 1922 fingindo-se quase todos no deserto cabralino sendo muito concisos e incrivelmente entediantes e hiper universais, eu identifiquei-me imediatamente com aquelas fotos pessoais, expondo-se em intimidade pública, baseadas em um eu que não sabia se esconder, contextuais, DATADAS NO MELHOR SENTIDO DO TERMO. No único sentido do termo. Ah, Ivi, minha querida, eu também queria e quero escrever apenas poesia datada, datada... desde que a data seja a de hoje... sabemos que aquele que escreve para hoje será lido em 1000 anos, sabemos, nós sabemos que os que escrevem para daqui 1000 anos nem hoje serão lidos. Eu aprendi isso com Catulo, Wittgenstein, Clarice Lispector, Hilda Hilst, Frank O´Hara. Acho que você aprendeu com Nan Goldin, Wolfgang Tillmans, também com Clarice, e outros?

Sete anos depois, na semana do aniversário de Ivi (ou "a fotógrafa Adelaide Ivánova" para vocês), ela apresenta hoje em nossa SHADE inc, na sala subterrânea que chamamos de Shadebox e onde artistas e DJs já apresentaram filmes, vídeos, DJ sets, instalações, Adelaide Ivánova apresenta sua instalação 100 Men, com uma peça sonora irritante-pungente minha, baseada, vejam só, em uma chanson da Edith Piaf. Especialmente quando apaixonados, nós gostamos de confundir de que lado da linha que separa o sublime e o cafona nós vivemos.

Hoje à noite, na SHADE inc, 18 de agosto de 2010, a instalação 100 Men, de Adelaide Ivánova, "projeção sobre lençol" (apropriadíssimo), com uma peça sonora deste que vos irrita.


FOTOS DE ADELAIDE IVÁNOVA
incluídas na instalação











.
.
.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O filme mais recente de Jacques Audiard

Eu estava pensando comigo mesmo hoje e percebi que, comparado com a atenção que eu dedico a isso em minha vida, neste espaço eu acabo escrevendo muito muito pouco sobre cinema, arte sem a qual eu já teria enlouquecido. Entre minhas visitas aos cinemas de Berlim onde é possível assistir a filmes no original (os alemães têm o hábito irritante de dublar TODOS os filmes, em quase TODOS os cinemas) e minhas passagens diárias pela videolocadora do bairro, o cinema ocupa uma parte considerável (gigantesca, na verdade) do meu tempo. Cinéfilo? Sempre achei a palavra meio boba, pretenciosa até o último grau. Acho muito mais simpática a expressão movie buff.

Todo este preâmbulo (quem lê este espaço sabe que não consigo evitá-los) apenas para comentar aqui sobre um dos filmes mais impressionantes a que assisti ultimamente. Creio, na verdade, que se trata do melhor filme que vi este ano: o trabalho mais recente do francês Jacques Audiard (n. 1952), que ganhou a Palma de Ouro em Cannes no ano passado, chamado Un prophète (2009), com o excelente, brilhante e lindo ator franco-argelino Tahar Rahim (n. 1981). Além dele, o filme mostra mais uma atuação mais que genial de Niels Arestrup (n. 1949).




Ambientado em uma prisão francesa, o filme é muito mais que outro "filme de prisão", mas uma pesquisa impressionante sobre as relações raciais entre franceses e árabes, assim como as complexas noções de identidade entre argelinos e córsicos, com suas relações tumultuosas com a França. O filme é brilhante e eu o recomendo muitíssimo a vocês.

.
.
.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O Almanaque Lobisomem

Após alguns meses crescendo e ficando bem dentuço, escapou às ruas digitais da língua que compartilhamos, nesta última sexta-feira 13, O Almanaque Lobisomem, editado por Fabiano Calixto, Renan Nuernberger e Flávio Rodrigo Penteado.

A pedido dos editores, cedi alguns pedaços de minha anatomia para alimentar o filhote lupino que crescia, e é com prazer que vejo agora correndo em seu bojo estes pedaçoilos de mim. Em primeiro lugar, dois poemas inéditos, intitulados "Brinde" e "Texto em que o poeta percebe a impossibilidade de obedecer à segunda pessoa do singular do imperativo do verbo relaxar". Os editores também acharam por bem republicar meu poema satírico "Poetry Police".

Minha última contribuição e também a que me deixa mais feliz é o pequeno ensaio "Pensando em Leonardo Martinelli", que escrevi para acompanhar a pequena antologia dos poemas do nosso saudoso companheiro, organizada por Fabiano Calixto e por este que vos escreve.

Abaixo, os leitores de Rocirda Demencock podem ler a apresentação dos editores d´O Almanaque Lobisomem, assim como podem clicar no link que os levará a poder baixar a revista de mais de 300 páginas, incluindo textos de:


ADBUSTERS + ALBERTO MARTINS + ALFRED DÖBLIN + ANDRÉ FERNANDES + ANDRÉA CATRÓPA + ANNE SEXTON + ARNALDO ANTUNES + AVELINO DE ARAUJO + BANKSY + CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE + CARLOS MARIGHELLA + CHRISTIAN MORGENSTERN + CORINGA + DIEGO DE SOUSA + DIEGO VINHAS + DINIZ GONÇALVES JÚNIOR + DIRCEU VILLA + EDUARDO GALEANO + E.E. CUMMINGS + ÉRICA ZÍNGANO + FABIANO CALIXTO + FABIO CAMARNEIRO + FABRÍCIO CORSALETTI + FABRÍCIO MARQUES + FERNANDA SERRA AZUL + FLÁVIO RODRIGO PENTEADO + FLORA ASSUMPÇÃO + GABRIEL PEDROSA + HEINRICH BÖLL + HELIO NERI + HERIBERTO YÉPEZ + HERSCHEL PINKUS YERUCHAM KRUSTOFSKI + JEAN STAROBINSKI + JOHN ASHBERY + JOHN ZERZAN + JIM MORRISON + JULIANA AMATO + JULIANA MARKS + JÚLIO BARROSO + KAREN REVISITED + LAURA WITTNER + LAURIE ANDERSON + LEANDRO RODRIGUES + LEDUSHA + LEONARDO MARTINELLI + LETÍCIA COSTA + LILIAN AQUINO + MARCELLO VITORINO + MARCELO FERREIRA DE OLIVEIRA + MARCELO MONTENEGRO + MARCELO SAHEA + MÁRCIO-ANDRÉ + MARIANO MAROVATTO + MARÍLIA GARCIA + MÁRIO BORTOLOTTO + MARIO SAGAYAMA + MARCO BUTI + NICK DRAKE + NICOLAS BEHR + NÍCOLLAS RANIERI + PABLO ORTELLADO + PAULO RODRIGUES + PAULO STOCKER + PATRÍCIA AUGUSTA CORRÊA + PEDRO GALÉ + PRISCILA MANHÃES + QORPO-SANTO + RENAN NUERNBERGER + R. PONTS + RICARDO DOMENECK + RICARDO SILVEIRA + ROBERTO BOLAÑO + RODRIGO LOBO DAMASCENO + ROGÉRIO SGANZERLA + SAPATEIRO SILVA + SÉRGIO RAIMONDI + SYLVIA BEIRUTE + THAIS MONTEIRO + THE BEATLES + TIAGO PINHEIRO + TOM VIOLENCE + TOM WAITS + WILLIAM SHAKESPEARE + ZHÔ BERTHOLINI


Editorial d´O Almanaque Lobisomem:


Respeitável público,

o Excelso Pretório, doravante denominado Conselho da Licantropia, sempre chama a si a colmatagem e superação das lacunas, omissões e imperfeições da norma fundamental, isto é: no último conclave do referido Conselho, realizado a bordo da Nau Abelardo Barbosa, o Ilustríssimo Senhor Presidente da presente instituição, o Coringa, abroquelou que, com espia no referido precedente, plenamente afincado, de modo consuetudinário, por entendimento turmário iterativo e remansoso, e com amplo supedâneo na Carta Política assinada pelos demais componentes de tão idôneo Conselho, a saber: Macunaíma, Chacrinha, Woody Woodpecker, Goober, O Coringa, François Villon, Ed Wood, Adam Worth, Didi Mocó Sonrisal Nevalgino Mufungo, Lemmy Kilmister, Hélio Oiticica, Hans Arp, Allen Ginsberg, Fantomas, Nhá Barbina, Bento Carneiro, Ludwig van Beethoven, Mefistófeles, entre outros, os quais não preceituam garantia ao cotencioso nem absoluta nem ilimitada, padecendo ao revés dos temperamentos constritores limados pela dicção do legislador infraconstitucional, resulta de meridiana clareza que O ALMANAQUE LOBISOMEM finalmente estará à disposição para download no link


BAIXE AAQQUUII O ALMANAQUE LOBISOMEM

à meia-noite, ao raiar da Lua Cheia desta exordial sexta-feira 13 de agosto de 2010.

Sem mais,

Os Editores

§



.
.
.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Viagem até O Moço

O Moço aquecendo o planeta e iluminando o sol, em fotografia de Adelaide Ivánova, verão berlinense, 2010.


Discoteco hoje à noite e amanhã, provavelmente ainda levemente tipsy, pego uma carona com um completo estranho para o sul, mais exatamente até o Lago de Constança, na fronteira tríplice da Alemanha, Áustria e Suíça, onde O Moço está já há mais de 10 dias em férias na terra natal (ou serão séculos?), e onde passarei alguns dias até que O Moço diga "Vá!".

Como o Reno atravessa o Lago, eu também quero ser como três corpos de água, feito o Obersee ("upper lake"), o Untersee ("lower lake"), e o Seerhein conectando ao Reno teu lago de infância. Que outros tenham terra natal, você tem um lago.

Eu vou até O Moço e só volto na semana que vem; vou porque O Moço me deixa neste estado descrito pelo vídeo abaixo. Não são de artifício os fogaréus que você acende e em que ascendo, Moço:

O que você me doa são fogos de armistício.




Mal posso crer que lá se vão três anos de alegria manifesta em um moço alemão que permanece, permanece... mas sshhhhh dulcíssimos leitores, não gritemos nos telhados, queridos leitores, falemos a-s-s-i-m beeeem baixiiiiiinho... parece que as Parcas estão dormindo...

.
.
.

domingo, 8 de agosto de 2010

Um vídeo: pequena gênese, sem exegese.

"Der arme Dichter" :::O poeta pobre::: (1839), de Carl Spitzweg.

Descobri há muitos anos o quadro de Carl Spitzweg (1808 - 1885), que ficou em minha memória como um favorito, uma daquelas imagens que nos acompanham. À época, muito jovem e com uma visão romantizada da vida dos poetas, recebi o quadro também como uma espécie de celebração do glamour de outsider do criador de poemas, toda aquela mitologia do gênio incompreendido. O quadro quase me parecia um trabalho proto-surrealista, pois em meu entusiasmo adolescente eu via aquele guarda-chuva flutuando no quarto, enquanto o poeta, pobre e faminto, escrevia um poema também a flutuar naquela tal de Beleza do Inefável, ainda que o seu corpo estivesse atado à mesquinhez cotidiana, econômica. Parecia-me uma imagem do poeta como ser mágico, sobrenatural. Não deixa de ser uma leitura possível. Hoje em dia, vejo o quadro como algo muito mais irônico e satírico, sem heroísmos ingênuos. Segue sendo, no entanto, um favorito.

No inverno passado, congelando em meu quarto aqui no Berlimbo, praguejando contra meu aquecimento a carvão, topei novamente com o quadro e me pareceu um momento mais que apropriado para justamente me apropriar dele, reencenando, como em uma poética da reconstituição, deformando-o e redirigindo-o para meus próprios propósitos.

Não vou me estender demais sobre sua composição, pois não quero cair na armadilha de acabar substituindo-o com um discurso que seja lido como sua exegese. Quando trabalho com vídeo, tento trabalhá-los de tal maneira que texto, voz e imagem se amalgamem. Não me interessam imagens que ilustrem um texto, nem um texto que descreva imagens. É, obviamente, um equilíbrio delicado e precário, e deixo que outros julguem se o consigo em um ou outro trabalho como este.

Uma decisão no entanto foi decisiva para a composição do texto: a escolha da língua. Algum tempo hesitei entre escrever o texto em português ou inglês. Houvesse optado pelo português, o texto e (consequentemente) o vídeo teriam sido outro. Em primeiro lugar, os versos alheios que deformei teriam vindo de brasileiros e talvez portugueses, o que teria gerado um texto-vídeo completamente distinto. A escolha dos poetas foi bastante pontual: não é acidental ou mero capricho que, tal qual o compus, os versos tenham vindo de autores como Maiakóvski e Oppen. Em português ou inglês, eu certamente teria usado a deformação do famoso título do poema de Maiakóvski ("Conversa sobre poesia com o fiscal de rendas”"), assim como a proposição de Wittgenstein ("A filosofia consiste em mostrar à mosca a saída da garrafa"). No entanto, teria substituído os versos de poetas ingleses e americanos pelos versos de portugueses e brasileiros. Sei com certeza que o lugar de George Oppen teria sido ocupado por Carlos Drummond de Andrade, pelas diversas coincidências entre eles: mesma geração (Drummond nasceu em 1902, Oppen em 1908), estreias próximas (Drummond em 1930, Oppen em 1934), mas, principalmente, pelo caráter político de suas personalidades, ambos militantes, Drummond como o autor de A Rosa do Povo (1945) e Oppen como autor de Of Being Numerous (1968), de onde retirei o verso a ser deformado em meu texto: "There is nobody here but us chickens", que se transforma em "There is nobody here but us kitchens" / "There is nobody here but us chicanos" / "There is nobody here but us Chechens".

Conversei com meu querido companheiro Fabiano Calixto sobre a ideia de uma "tradução" para o texto, mas seria um daqueles casos em que apenas uma "transcontextualização" seria satisfatória, como as que fiz de poemas de H.C. Artmann e o próprio Calixto fez com poemas de Allen Ginsberg, no caso deste texto substituindo as apropriações de versos de George Oppen, John Keats ou Gertrude Stein pelos de poetas lusófonos.

Aqui, meu caro leitor, você poderia perguntar: "Mas Ricardo, por que diabos você não o escreveu em português?"

A pergunta não é impertinente e sua resposta está ligada à natureza do vídeo em si.

Eu vivo há cerca de 10 anos fora do Brasil. Discutir o papel do poeta em sua comunidade, para mim, tem que passar pelo fato de que sou um poeta que vive fora de seu país, entre pessoas que não falam sua língua materna. Há vários fatores em jogo: honestamente, porque eu tenho um desejo legítimo de que o trabalho possa dialogar também com as pessoas com quem eu vivo, que não falam o português. Há trabalhos que eu componho para a minha comunidade linguística, e a maior parte do meu trabalho é composta em português. No entanto, o debate em que este meu vídeo se insere diz respeito também a outras comunidades, une-se a discussões que tenho travado também aqui na Europa, com poetas europeus e amigos íntimos, e a escolha do inglês acaba sendo prática e lógica.

Sei que ainda impera no Brasil a visão nacionalista que herdamos dos Românticos e dos Modernistas, mas qualquer um com uma visão mais plural da tradição da poesia sabe que foi muito comum, antes do Romantismo e da fundação do "mito" das "Literaturas Nacionais", que poetas compusessem em outras línguas. Ora, Camões e Gil Vicente escreveram em espanhol. Meu mestre Murilo Mendes escreveu um livro em francês e outro em italiano.

No entanto, minha grande referência, nesta discussão e em tantas outras, é o trabalho e contexto dos trovadores occitanos. Muitos deles compuseram em diversas línguas por uma questão bastante prática: porque alguns deles viajavam de corte em corte, de cidade em cidade e necessitavam portanto desta variedade de línguas. Eu creio que isso se tornará cada vez mais comum novamente, já que em muitos aspectos algumas características da poética medieval estão retornando, como a valorização do poeta ligado a uma comunidade e o retorno à voz como possibilidade de "publicação" no sentido mais amplo do termo.

Uma vez escolhido o inglês como língua para a composição do texto, isso teve consequências sobre a direção dele, fazendo com que não tanto as "finanças" como também a própria "cidadania" do poeta, seu papel na comunidade em que se insere, se tornasse um foco importante do trabalho. Daí minha discussão do poeta como meteco, esteja onde estiver, em sua terra ou no estrangeiro.



.
.
.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

"The poor poet (after Carl Spitzweg)", DV, stereo, 3:03, 2010.

Eu gostaria muito de escrever sobre a gênese deste vídeopoema, usando-o para discutir certas escolhas, sem cair em uma tentativa de autoexegese, o que é sempre um desafio. Por ora, eu creio que seria melhor, em primeiro lugar, mostrar o vídeopoema, sem discursos exteriores. Gostaria de acreditar, porém, que ele já carrega em si as respostas a estes questionamentos.



Ricardo Domeneck, The poor poet (after Carl Spitzweg), DV, stereo, 3:03, 2010.


Vídeopoema, ou texto-vídeo. Reencenação da pintura "Der arme Dichter" (1839), de Carl Spitzweg (1808 - 1885), um dos maiores representantes do período da arte alemã conhecido como Biedermeier. Texto composto por linhas originais, mescladas a apropriações e deformações intertextuais de linhas de Vladimir Maiakóvski, Ludwig Wittgenstein, George Oppen, John Keats, Gertrude Stein e Konstantinus Kavafis. Vídeo, texto e voz: Ricardo Domeneck. Edição de som: Uli Buder.

Texto:

The poor poet (after Spitzweg)

Like a Conversation with the Visa Inspector at the Department of Immigration about Poetry, long term investment towards glorious dust. May you flourish with bread and water, a Renaissance of minimalist proportions, based on the poverty of your organism. All you know of stock exchange has been taught to you by the relationship between your lungs and your blood. Let me recite what geography teaches. A bit of money is a joy forever. Poets? Metics in their own lands. Aliens of all times know what price that is. Well, brothers and sisters, borders can have various effects on writers as lovers. Mental note: consider the difference between Medea and Scarlett O´Hara right before The End. A thing of beauty is a toy for never. You write, darling, as someone who plays with public property. There is nobody here but us kitchens. Whisper secrets to yourself in a language your mother would fail to understand but, for migration purposes, you must tighten your belt, fasten your tongue. As if the spider exiled itself from its own web, through the web, one must eventually eject from his or her own body what others will then call his or her habitat. Dear guest, adopt the language of the host. Adapt the language of the host. Addict it, adduce it, adjourn it, adjust it. But you will never succeed in admonishing the Empire through its own language. There is nobody here but us chicanos. A beauty of thing is a boy forever. To say, finally free of heritage: Welcome, citizen of nowhere. Once upon a place, we thought you might find a home in a grammar, as one lies under the sun, on the grass. Addressed, you could legislate your own babbling, as one who seduces legions. Should poets finally be granted suffrage, you ask awestruck. Tired of being demonized as nonresidents of the Republic. Everyone knows that poets temporarily staying in the territory of Neverland must register with the migration authorities within five calendar days from the solstice. Show the fly the way out of the spider´s digestion. Now retired, you might want to sit at the gate with the king and wait for the barbarians, even forgetting you were one of the first of them. Invaders tend to mingle among the natives. Was there a new Troy, a new Jericho, or a new Canudos for which to yearn? You will register the long chronicle of the siege, not knowing sometimes on which side of the wall you first stood. Cities that fall have a way of being stubborn till the last standing brick. The History of the Past Sieges cannot help you, for you no longer know what you are supposed to record, what to erase. I cannot remember if I invaded, if I resisted. There is nobody here but us Chechens.


Ricardo Domeneck, 2010.

.
.
.

domingo, 1 de agosto de 2010

O diálogo com Érico Nogueira

Érico Nogueira publicou ontem em seu espaço um artigo generoso em que discute meus poemas mais recentes, reproduzindo os textos "Eu", publicado na revista eletrônica Celuzlose, e "Poema (Enfim aurora-me na cachola)", publicado no segundo número impresso da Modo de Usar & Co., com uma leitura inteligente e pontual, de quem acompanha meu trabalho desde o princípio, quando ainda éramos estudantes de filosofia na Universidade de São Paulo, onde passamos muitas tardes conversando sobre poesia.

Nossas conversas, em concordâncias e divergências, além de nossa correspondência privada e debate público, têm sido fonte estimulante de pensamento para mim há 12 anos. É um momento muito interessante, para nós dois, de transformação e redirecionamento em nosso trabalho poético, e é mais uma vez um privilégio poder contar com sua crítica. À primeira vista, muita gente deve pensar que nossas poéticas são opostas, mas ainda que divergências muito claras e intensas ocorram em questionamentos específicos, os pontos de contacto são múltiplos.

Meu debate contínuo com Érico é um exemplo claro e vivo para mim mesmo de civilidade e amizade possíveis numa convivência frutífera com outros poetas, sem renunciar à crítica.

Convido os leitores generosos deste espaço a visitarem o Ars Poetica de Érico, onde se pode ler o artigo "The newest Domeneck".

Abraço a Érico e a todos, numa tarde de domingo de sol em Berlim (que no verão quase deixa de ser o Berlimbo)

.
.
.

Arquivo do blog