quinta-feira, 28 de junho de 2012

De volta a Berlim, já ocupadíssimo com as afinidades eletivas


Cheguei ontem à noite de volta ao Berlimbo, após uma maratona por aeroportos brasileiros e europeus. Deixei a casa de meus pais às 7:30 da segunda-feira. Entrei em minha casa berlinense às 21:00 da quarta. Moído.

Mas fui recebido por lábios e pernas e braços amorosos (imaginem toda uma anatomia amorível, no entanto a lista seria longa e proibida para menores de 18 anos). A passagem pelo Brasil foi excelente, pena não ter podido ver os amigos em São Paulo e Rio como tinha pretendido.

Agora de volta, lanço-me no turbilhão das afinidades eletivas. Os amigos mantiveram-se ocupadíssimos. Alguns highlights do que ocorre nos próximos dias, e a chance de rever amigos:

Hoje à noite, quinta-feira, Planningtorock lança oficialmente seu vídeo para a faixa "Black Thumber" na galeria Dittrich & Schlechtriem. Pode-se ter uma ideia do vídeo neste arquivo abaixo, filmado por um fã em uma outra galeria.




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Mais tarde, Anika toca com Obi Blanche no clube Prince Charles. Eles vêm colaborando nos últimos meses, e já fizeram um excelente set no projeto Boiler Room (quero escrever sobre isso, tocando numa velha ideia minha sobre as conexões entre o trabalho do DJ e certas práticas poéticas), além de ter feito juntos uma ótima versão para "Fitter Happier" do Radiohead, abaixo com vídeo da querida poeta e videasta colega Doireann O´Malley.


Anika & Obi Blanche - "Fitter Happier", Radiohead cover 
for the OK Computer Tribute on Musikexpress

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Amanhã, sexta-feira, o poeta americano Shane Anderson, residente em Berlim, lança seu livro de estreia no espaço O´Tannenbaum. Publiquei um poema excelente dele na Hilda Magazine, deem uma olhada. O livro está sendo lançado pela (ótima) editora berlinense Broken Dimanche Press, com posfácio de Daniela Seel e trabalhos visuais destacáveis de Eilis McDonald. Você pode encomendar o livro através da página da BDP, com envio postal gratuito.




Shane Anderson, Études des Gottnarrenmaschinen (Berlin: Broken Dimanche Press, 2012)


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E, por fim, meu caríssimo Marius Funk lançou ontem na Rede um mix que preparou a convite de um projeto artístico envolvendo a Facção do Exército Vermelho, o grupo alemão que causou traumas e transformações profundas no país entre a década de 60 e 80, e do qual fez parte um de meus fantasmas pessoais, a escritora Ulrike Meinhof. Outra coisa que me lembra da ideia sobre as conexões entre o DJ e o poeta contemporâneo.




Ainda dentro das afinidades eletivas berlinenses, mas ocorrendo em Nova Iorque, amanhã é também o lançamento do livro de Black Cracker, 40oz Elephant.


Black Cracker, 40oz Elephant (New York: Bowery Books, 2012)



Abaixo, você pode ler o blurb que escrevi para o livro, a pedido do poeta americano. Em setembro, lemos juntos no México.





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domingo, 24 de junho de 2012

A função social do poeta




A função social do poeta

         
                                           a Daniel Saldaña París


A Perse e Parra, o poeta
funciona tal qual mala 
conciencia de la época.
Pergunto, se os traduzo:
consciência má? Pesada?
Peso na ou da cuja dita?
Para uns, trata-se do id
dos ânus do tempo, R.G.
da lama entre as linhas
de mapas. Quiçá raio-X
genérico dos portadores
dos XX & XY de um país.
Outros estão mui certos
de que esta sua fatura
aumenta deveras o PIB,
ou que sua voz é o GPS
dos perdidos en la noche
oscura. Quando juntos,
dão-se ares de BNDES.
Entre os egos, talvez
seja o poeta o super-
ego do seu momento,
como uma tia chata
que ao invés de dizer
em alto e bom tom:
"coma logo as ervilhas",
recorre a vários métodos
obscuros de persuasão,
"esta ervilha é um mundo",
"esverdeadas dar-te-ão
eterna vida", "este legume
é como o planeta coberto
de gramíneas", "das vagens
às várzeas da tua louça",
"estas trezentas soldadas
são espartanas, faz agora
do teu prato as Termópilas",
"ervilha minha senil que
te comeste, tão logo desta
janta descontente", "pelo
menos um fruto em teu
ventre, solteirona". Ainda
por cima nos tantaliza
com suas tautologias:
"a ervilha é verdinha", etc.
É óbvio que os bar-roucos
prefeririam: "Ervilha-Fénix
das aias do escarra-velhos
do Himalaia, iactantia est".
Pois se alguns há séculos
insistem em lembrar-nos 
que o céu é azul, pássaros
voam e as flores se abrem
no mês de ____ (escolha,
leitor, o seu hemisfério). 
Tia chata, recorra à sátira,
pois os subnutridos não
são moucos só ao riso:
"Não querias comer Elvira?
No interregno, às ervilhas!"
Esqueçamos os legumes.
Os mortos-vivos só dão
ouvidos a energúmenos.
Por mim, possuísse
algum alto-falante
potente ou bastante,
esgoelaria: "devorem
logo toda essa merda
no prato, nos poupem
o trabalho", mas ao fim
sei que ninguém
comeria, anyway.
É como passar a vida
a buscar novas formas
para olha o aviãozinho.
Ai, de Sísifo,
já me basta
o phallus.
Dirão que um poeta,
ao dizer isso, pratica
a auto-sabotagem.
Ora encerremos,
dessarte, com algo
ambíguo e suficiente
para as meditações
em nossos próximos
Minutos de Sabedoria:
"Poeta: geringonça
entregue a ciclos
circadianos sem
qualquer zeitgeber."
Cansa-me a beleza.



Rocirda Demencock, a rolar no chão rindo da cara de Ricardo Domeneck,
Bebedouro - São Paulo, 24 de junho de 2012.


§

Nota escrita a 15 de julho de 2012:


Este poema surgiu ao ler uma citação do poeta chileno Nicanor Parra na página (Tumblr) do poeta mexicano Daniel Saldaña París, a quem dediquei este poema. A citação era: en un mundo desprovisto de racionalidad / la poesía no puede ser otra cosa / que la mala conciencia de la época / lo demás es literatura grecolatina”, de um poema escrito em 1992. Ao publicar aqui este poema, as primeiras linhas eram: "Parra escreveu: o poeta / funciona tal qual mala / conciencia de la época", em referência direta ao chileno. Naquele dia, o poeta gaúcho Marcus Fabiano Gonçalves chamou-me a atenção para o fato de que o poeta francês Saint-John Perse dissera coisa muito parecida em seu discurso em Estocolmo, ao aceitar o Prêmio Nobel em 1961: Face à l'énergie nucléaire, la lampe d'argile du poète suffira-t-elle à son propos? Oui, si d'argile se souvient l'homme. Et c'est assez, pour le poète, d'être la mauvaise conscience de son temps.” Decidi incorporar Perse ao poema, passando a iniciar o texto com o aliterativo "A Perse e Parra, o poeta", mantendo no entanto a citação em castelhano do latinoamericano, por ser mais imediatamente compreensível a um leitor lusófono, e porque me interessa o jogo com mala, falso cognato em português e espanhol.

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sexta-feira, 22 de junho de 2012

Miguel Martins: novo livro.



Neste sábado, 23 de junho de 2012, é lançado em Lisboa o novo livro de Miguel Martins (n. 1969), intitulado fôlego sem folga (Lisboa: Língua Morta, 2012), com capa de Inês Dias. São apenas 150 exemplares. O lançamento começa por volta das 18:30, na galeria Câmara Lenta (Rua da Quintinha, 31), com apresentação de António Caeiro (Universidade Nova).

Descobri sua escrita em Lisboa, ao estar coincidentemente na cidade quando o poeta lançou Lérias (Lisboa: Averno, 2011). Impressionado com o livro e com sua leitura no lançamento, preparei com o auxílio de Changuito, da Livraria Poesia Incompleta, uma postagem com poemas de Martins para a Modo de Usar & Co., extraídos de vários livros. Dentre os poetas em atividade nesta nossa língua, obviamente aqueles a que tive acesso, considero-o um dos melhores. Ou, para evitar ferir sensibilidades, um dos que mais respeito.

Publico abaixo um poema que Martins postou recentemente em seu blogue (que ora ameaça encerrar - O Único Deus Vivo), e termino a postagem com a reprodução dos textos que publicamos na Modo de Usar & Co. a 11 de outubro de 2011.



A vida tarda
enquanto esta demonstração democrática do Demo
se demora entre ademanes e esgares,
como se tudo não passasse de uma farsa
velha e medíocre,
levada à cena, em sessões contínuas,
desde que uma salamandra se fez gente,
gente escondida
com o rabo de fora.
Resta-nos correr no sentido inverso
aos ponteiros do relógio e procurar,
inglórios, o pântano primordial
e, nele, nossos recantos de calor estagnado,
passar a borracha da noite sobre o carvão do vento,
correndo o risco de tudo esborratar,
e ter esperança ou, pelo menos, fé
nas propriedades curativas das folhas brancas.
Imaginem comigo:
o branco mais profundo
sugando-nos para dentro de si
como o olho de um furacão,
olho terrível e encantador
de répteis.
Antes de mergulhar, permitam-me apenas
um cálice de licor de ervas amargas
e o clangor lânguido de um oboé tibetano.
E depois - só depois - o abismo imenso,
antediluviano,
da nossa morte inteira e sem mentiras,
sem conta-gotas a dosearem tudo,
até a beira-mar
e até o medo.



Miguel Martins




Miguel Martins é um poeta contemporâneo português, nascido em 1969. Viveu quase sempre em Lisboa, com a exceção de uma temporada em Maputo, Moçambique. O poeta é formado em arqueologia. Sua primeira publicação é de 1995, uma pequena plaquete intitulada Seis poemas para uma morte. A ela seguiram-se os volumes Cirrose (editado pela Fenda), Atol (Clube dos Poetas Vivos), o livro de ensaios Jazz e Literatura (Campo das Letras), O taberneiro (Poesia Incompleta), Proibida a entrada a animais (excepto cães-guia) (Língua Morta), e seu mais recente, lançado este ano e intitulado Lérias (Lisboa: Averno, 2011). Prepara uma tradução para o português do livro Call It Sleep (1934), do romancista e contista norte-americano Henry Roth (1906 – 1995), que será lançado com o título Uma espécie de sono. O poeta vive e trabalha em Lisboa.

§

POEMAS


Uma caixa de cimento fresco. Deita-o
lá dentro. Mete-te na mota, arranca, não
penses mais nisso. A sul, há mulheres
cujo futuro é um avião que não deixa
traços no céu. A norte, se preferires,
... há-as engarrafadas, em decilitragens
as mais diversas. Com os homens
é a mesma coisa, dois dedos de conversa
e uns quantos cubos de gelo. Meia
hora chega para ir repondo o stock
de episódios com que fingir que estamos
vivos. Isso deve bastar-te, excepto
se te achares mais do que os outros
e Deus te livre de uma coisa dessas.
É isso: aprende a metafísica das
t-shirts brancas, das curvas apertadas,
da velocidade calma. O resto é
conversa de poetas, filósofos, historia-
dores, que fumam mais do que vêem
e lêem mais do que assobiam ao sair
à rua. O resto é uma perda de tempo
e não eras tu o tal que tanto nos
maçava com a iminência da
morte, com a falência da Sociedade
por quotas, com a genealogia
dos suínos? Aproveita agora esta
oportunidade de não ser nada
contigo; juro-te que ninguém
te vai levar a mal; envia, apenas,
um postal de Tânger e um contacto,
para o caso de o Emanuel ou a
Angelina quererem ir de férias e
precisarem de um sítio onde ficar.
Não é pedir muito em troca da
tua liberdade. Vá! Uma caixa de
cimento fresco. Deita-o lá dentro.
Sabes do que estou a falar. Ver-
melho escuro. Isso. O coração.

(publicado originalmente no jornal O Público, a 8 de outubro de 2011)

§

de O Taberneiro

Eu sou O TABERNEIRO-da-cintura-para-baixo e cara de cavalo relinchando aos pagodes, mijando nas traseiras de Notre Dame de Damn You, trombando uma defunta num sonho de luz branca. Vinde dizer-me agora que agora é que começa essa novíssima Volta a Portugal de que saireis vencedores-de-vozes-cristalinas-e-piscinas-nos-bolsos-resguardados...– do alto destas pirâmides, responde Napoleão, uma chuva de das Caldas vos contempla; e avoengos, trajando neve e medos, não hesitarão, sequer, no arremesso. E eis que entra um côro de gospel fumegante, ressaca bacanal já pronta para outra, e me embala menino-dos-ditos-saraivada-«tu sabes lá o que é que tás páí a dzer». «É verdade, não sei, eu sou O TABERNEIRO, li Stendhal, Sade, Camilo, Hugo e Zweig sentado numa pipa de mecha ainda acesa, pelo qu'é natural a pouca retenção; desculpem se me cago – almocei a correr e já bebi três litros de sobras clientelares.»

§

Ignis Fatuus

Vem a lume uma ideia luminosa
um chá de lúcia-lima fumegante
inalação de folhagem capitosa
num bule de feldspato crepitante

Disfarçada de paz fortificante
de miasma benigno, inspirativo
é a estultícia que naquele instante
rebrilha num fogacho transitivo

É o Futuro que pede, apreensivo
um cisma com as crenças abaladas
uma balada ao coração cativo
dos sismos e dos contos-de-fadas

que são suas madrastas desveladas
numa fumigação protelatória
da descoberta das portas encerradas
em chaleiras sem mago, sem memória

do aprisionamento nessa história
em que um afago acendia um fogo
que num segundo alcandorava à glória
uma vitória assegurada ao jogo

Mas na derrogatória a nosso rogo
restolha uma seara, seca a fonte
por se encontrar, apenas, muro e mogo
onde tanto aguardou o horizonte.

(O Taberneiro, Poesia Incompleta, 2010]

§

Seis poemas para uma morte

1

Que importa o que não temos
quando a vida leva tudo o que nos dá

e a morte restitui-nos ao silêncio.


2

Naquele dia choveu ao contrário
a chuva fina e o seu silvo subiam do chão

e eu caindo da janela
sem um raio de sol que me amparasse.


3

Na noite clara da tua morte Pai
parto de vez para a margem da brandura
Levo nos olhos esta luz de dor
feixes opacos medas de cansaço
(como as que carregavas)
seara que nasce no sonho condenada
quando na alma a chama esmoreceu
Chegou-me a mim: já nada perdura
Querias saber o que era aquele nada
contra o qual lutava – sou eu
vazio de ti. Poupámos o Futuro.


4

Nem umas palavras de despedida
nem “adeus”
Será que depois nos encontramos
na terra linda onde são as coisas que não são
sem medo do fim?
Já moras, Pai, com o teu Cristo
o Cristo que nos salvou a todos
por termos alguém como tu.
Nunca te disse bem quanto te amava
como te amo muito dentro de mim
na terra linda onde são as coisas que não são
com tanto medo de as perder.
Estar a fazer a barba, cair
e partir para o outro lado
sem dizer tudo o que é preciso.
Ou como tu ficar assim à espera
suspenso de nada
à porta de Deus como um pedinte
pedinte de Deus
que só nos pediste que fôssemos melhores
e talvez por isso nos dás ainda mais uns minutos
da tua eternidade.
Vai agora, parte por favor
vai viver com as estrelas e com a alma das flores.
Sei que todos os dias continuarás a madrugar
para colher os odores mais puros.
Já não são precisos sacrifícios
aí é tudo dado num natal perpétuo e permanente.
Até nós te nos vamos dar
como tu te nos deste, como te entregaste cada dia
de manhã à noite

a Mãe
a Paula
o Ricardo
e eu
(por outra ordem espero que não esta
que eu não aguento mais)
vamos voltar a tocar-te o cabelo
o cabelo mais lindo que conheço
e a beijar-te
(como é possível que beijos tão a medo
como os teus quisessem sempre dizer tanto?).

E olha que se eu aí chegar
a essa terra que não mereço
é mesmo só por ti
é para te ver e ficar espantado
como só nos espantamos com os anjos.
Adeus Pai
tem calma.
Eu pensarei em ti todos os dias.


5

Tinhas-nos a nós
como nos querias
não como nós somos

Partiste
olhando o ar
pensando o Vago
escutando o Ser
na boca o Fluido
a essência do Sangue
nós
em tudo isso nós
o imenso Amor

Em que pensaste, Pai, nessa semana
em que soubeste tudo isso
que dizias há tanto
e que os homens procuram?

O teu olhar tão calmo
as tuas mãos
só diziam Amor
e a respiração era a de que ele é feito:
com a Mãe
sabe Deus e o vosso Amor quando
connosco
dia a dia e a desoras
com tanta gente
que eu nem adivinho
na mudez superior de quem é grande

Toda a vida
só fizeste Amor

Perdeste a Palavra e o Movimento
usa o meu corpo se isso for possível
Nunca será a mesma coisa
mas vou portar-me bem
(a gente cá sabe o que isto quer dizer)

Há que roubar as flores ao abandono


6

Guardo o brilho baço dos teus olhos
de seres inteiro em cada coisa
o Ritual dos dias conhecidos
e a alegria desentranhada
do fundo da eternidade
que é a bruma de Deus.

Guardo a entrega funda de saber
que a revolta não tem princípio nem fim
e aquela altivez tão especial inapercebida
que pode haver na submissão
de estarmos à frente dos homens e do tempo
viver como quem morre cada dia

e estarmos mortos como quem está vivo.


Seis poemas para uma morte, Fábrica das Letras, 1995

§

Página 13 do livro Cirrose


Detesto toda a psicologia. Pelo menos tanto como o homem de trabalho e os escritores movidos a bons sentimentos, que o querem entreter ou melhorar ao módico preço dos direitos de autor. Para me sustentar tenho todas as loiras do mundo. E não são poucas. De ambos os sexos e qualquer côr de cabelo. É o que basta. A somar ao jogo. O jogo de sonhar acordado. Sou o chulo vigil dos pesadelos das mães. As nossas e as delas. A fera com mais inteligência que moral. Uma inteligência manipuladora. O abismo brilhante. Um falo que fosse vaso. Disputo corridas sem sair do lugar e, por isso, sou sempre o primeiro a alcançar a meta riscada no chão com o giz líquido do meu sémen. Os outros chegam estafados. Caem de borco. Matam a sede na fonte desse giz. E pagam o pecado. A minha religião indulgencia-me sempre. Sou o Papa Negro das Noites Brancas. O Papa Branco das Noites Negras. Sou cinzento. Como as balanças que aferem o peso para aferir o custo. Estou afinado. Não ranjo. Não sangro. Não choro. Não peço. Não morro. A não ser que me sobrevenha uma embolia ao baralho. Ao caralho. Por isso, conservo-me em álcool. Como os miúdos fazem às cobras. O formol é para os Deuses.

§

de Proibida a entrada a animais (excepto cães-guia)

O Caso da Fruta

I

Não ser marinheiro. Não ser coisa alguma. E, ainda assim, zarpar deste lugar de fama sem proveito. Aportar às quatro estações, simultâneamente, num único cachimbo (milho de cerejeira). Comer mar, beber sal, respirar resina, cobrir a pele de lâminas de vinho. Renegar renegar. (O tempo). Ressarcir a cinta do silêncio. Derrimir a porca rouquidão. Arrancar às costas a tareia, às pernas o balastro, às mãos as mãos, à voz a recaída. Arrancar o pensamento ao fígado e o fígado ao pensamento. Lamber, ininterruptamente, uma mulata estéril de olhos mais verdes que a maior escuridão. Calar. Sobretudo isso. Calar-me. Escutar o canto sinusoidal, elíptico, dos cactos quando levantam voo para se tornarem homens. Nesses breves segundos, em que os cactos são vermelhos e aveludados, Deus assobia, dizem, velhos ragtimes e eu gosto de ragtimes. Pelo menos tanto quanto gosto de nêsperas, de salivas que não a minha, de bicos-de-lacre, do toque da cortiça. Eu gosto de gostar. E ando esquecido disso.

§

Não-raciocínio acerca da auto-estima

para o Levi Condinho

Uma semana da minha vida é um ano
da vossa, disse Lou Reed, cheio de si
e de razão. "Caro ouvinte, o caminho
é o mesmo e o disco meu - anda cá

tu" - digo, para completar a ideia.

Alma noise, dir-se-ia neste tempo
de muita coisa e nada. "Ama-me ou
deixa-me ou ama-me e deixa-me,
desassossegado. Trémulo. Vazio. Toc

ando uma guitarra autónoma, como
o vento que me varre, mesmo quando
me resguardo da noite, das aves, das aves
da noite, da calma, que é o peixe com mais

tripa". Esqueci-me do que queria
dizer: há nisto um lodo; um lodo
desgraçadamente impossível.


in Proibida a entrada a animais (excepto cães-guia)

§

Do tempo

Todo o tempo passado a trabalhar. Todo o tempo passado a falar com gente cheia de aspirações concretas. A esgravatar caminhos alternativos ao caminho que desde sempre soube e é o meu. Todo o tempo sóbrio, bêbedo, acordado, aqui. Fora da minha nuvem, Britânia imaginária. Todo o tempo perdido. Tanto. Roseiras por enxertar. Trutas à deriva. Bibliotecas de couro. Cavernames. Oboés doidos na charneca fria. Nunca os tocarei. O Tempo, indemne, não indemniza. Não se desdobra. Não se recupera. Resta-me ronronar e gemer. Ser gato. Exprimir o inefável com um orgulho estóico mas envelhecido. Tardio. O pêlo caindo. A pele demasiado larga para a carne. Peritonite infecciosa felina. O fim a instalar-se por toda a parte. O olhar triste. A espera. A inevitabilidade. Não conseguir saltar, e saltar. O sonho. A sublime humanidade dos bichos. A redenção. Privada. Como uma cicatriz que torna a pele única e intransmissível e, por isso mesmo, mais bonita.


in Lérias (Lisboa: Averno, 2011)


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quinta-feira, 21 de junho de 2012

Lula e Maluf: um acerto de mãos





Um acerto de mãos

Aos poucos, tanto pulso
que dita como reivindica
confundem-se no fundo
sem vilões e sem puros
da História: arte narrativa.

Cerradas, mãos se agitam
no ar. Depende da boca,
porém, o que significam
a lobos e ovelhas passivas
em conluio na mesma toca.

Ora Lula e Maluf dão
-se os punhos, um novo
pacto (o eterno retorno)
de apoio e não-agressão.
Tudo em nome do polvo,

os interesses do polvo
são supremos. Limites?
Mas o que são limites?
Limites são coisas
para os lemingues.


Rocirda Demencock, com os movimentos peristálticos na contramão, 21 de junho de 2012.

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segunda-feira, 18 de junho de 2012

"Belo Monte, anúncio de uma guerra", filme na íntegra.



Belo Monte, anúncio de uma guerra (2012), financiado pelo público. Direção de André D´Elia.
Implora-se que se o espalhe, ou não se volte mais a este espaço.



 

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domingo, 17 de junho de 2012

Dirceu Villa escreve sobre o Festival de Poesia de Berlim 2012

 
Eu (de costas) com Dirceu Villa, do lado de fora da Akademie der Künste,
Berlim, após as apresentações no Poesiefestival (foto de Timo Berger).




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sábado, 16 de junho de 2012

Notícias de Belo Monte + Eduardo Viveiros de Castro fala sua contrafala

Belo Monte, Rio Xingu, 15 de junho de 2012 –
Trezentas pessoas entre povos indígenas, agricultores, pescadores, ativistas
e moradores afetados pela construção da Hidrelétrica de Belo Monte ocuparam
essa manhã uma das ensecadeiras de Belo Monte – pequena barragem próxima
da Vila de Santo Antônio. Abriram um canal com picaretas, pás, enxadas, deixando
o Rio Xingu correr livre novamente. Moradores do Xingu fizeram uma faixa
humana com as palavras “Pare Belo Monte”. No início da Rio +20, enviam
uma mensagem da imensa devastação social e ambiental que este projeto
está causando a região, alertando que hidrelétrica não é energia limpa.
A mensagem dos povos é “Energia que não respeita a lei, a população local,
violenta direitos indígenas, destrói comunidades e o meio ambiente não pode ser limpa”.
Eles querem a paralização da construção de Belo Monte!
Foto: Atossa Soltani/ Amazon Watch / Spectral Q

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sexta-feira, 15 de junho de 2012

Minhas memórias mais antigas de Yeats

 Portrait of Yeats as a young lad

Eu ainda me lembro claramente da primeira vez que ouvi o nome de Yeats. Eu era criança, e estava assistindo ao filme de Francis Ford Coppola, Peggy Sue Got Married (1986), legendado. Devia ser 1988, quando meu pai comprou nosso primeiro aparelho de vídeo-cassete. Pois é, o famoso Peggy Sue - Seu passado a espera. Para os leitores mais jovens: trata-se daquele em que a personagem de Kathleen Turner passa mal na reunião de 25 anos de sua turma de colegial, desmaia e desperta no passado, de novo em sua vida aos 17 anos de idade, mas com sua memória do "futuro" intacta.

De volta ao colegial, aquela fauna e flora típicas dos filmes adolescentes americanos: o nerd/geek que apanha de todo mundo, a cheerleader que todos querem imitar ou foder, o macho-alfa gostosão e cool (que mais tarde vira o loser barrigudo), etc, etc, etc. Mas havia no filme também a personagem do poeta adolescente/intelectual pubertário (se fosse menina, seria interpretada por Winona Ryder -:: nota mental: algum dia preciso escrever sobre o impacto que o filme Heathers teve em mim), interpretado no filme por Kevin J. O´Connor, que se vestia todo de preto, como se fosse um existencialista exilado de Paris ou um beatnik, é claro que antes dos beats virarem hippies cantando Odara Odara em roda com margaridas no cabelo - aquele horror todo.

Lembro-me da cena em que o professor está discutindo The Old Man and The Sea, de Hemingway, dando uma explicação toda elaborada e literata para o livro, quando a personagem-poeta de Kevin J. O´Connor (no filme ele se chamava Michael Fitzsimmons) argumenta que o livro é uma metáfora para o declínio dos níveis de testosterona em Hemingway (that overrated slob), ou algo nestes termos. Apaixonei-me na hora.

Sim, Michael Fitzsimmons foi uma de minhas primeiras crushes por personagens cinematográficas. Eu já sabia que queria ser escritor, e me apaixonava por qualquer personagem que escrevesse. Pois bem, Peggy Sue, que era a head-cheerleader e namorava o macho-alfa gostosão (estranhamente interpretado por Nicholas Cage) começa um caso às escondidas com Michael Fitzsimmons. Céus, os calafrios que percorreram minha espinha e genitália quando (sutilmente, pois se trata de um filme de adolescentes) insinua-se que Peggy Sue perde a virgindade com Fitzsimmons, que, longo antes de beijá-la, recita, do poema "When you are old":


How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;


Eu, que até então (tinha por volta dos 10 anos) havia tido contato apenas com poetas românticos brasileiros e Vinícius de Moraes, tive um choque. Rebobinava  a fita (pede-se que os leitores mais jovens procurem no dicionário o significado do verbo "rebobinar") e ouvia de novo, sem entender, lendo a tradução, e deixando o beijo acontecer e o calafrio correr. Era a década de 80, não havia Google e eu morava em Bebedouro. Como saber mais sobre Yeats? Como ler mais? Por anos, esta estrofe foi tudo o que soube do poeta.

Fast-forward: 1997. Dez anos depois. Foi o ano em que me mudei para São Paulo, onde faria cursinho no bairro da Liberdade para ingressar na Faculdade de Filosofia da USP. No ínterim, já havia morado nos Estados Unidos, onde terminara o colegial e eu próprio bancara o poeta adolescente/intelectual pubertário, lendo Thoreau (por causa de outra crush cinematográfica de adolescente - a personagem de Robert Sean Leonard em Dead Poets Society), Whitman (com aquela sensação de perigo por seus homoerotic under/overtones), Poe, Dickinson, Frost. Nada de Yeats. Havia me esquecido de Yeats.

Mas naquele primeiro ano em São Paulo, 1997, comecei a percorrer os sebos, aumentar minha pequena biblioteca. Lembro-me de comprar a Obra Completa, bilíngue, de Federico García Lorca; a obra reunida, em dois volumes, de João Cabral de Melo Neto; descobrir Hilda Hilst em Estar Sendo, Ter Sido, com aquele poema final pelo qual sou obcecado, "A Mula de Deus"; e, aos 20 anos, encontrar a antologia preparada, traduzida e prefaciada por Paulo Vizioli, lançada pela Companhia das Letras em 1994: W.B. Yeats, Poemas. Aqui, outra memória vívida envolvendo Yeats: sentado na calçada de uma rua de São Paulo, esperando os portões da escola onde faria a prova da segunda fase da FUVEST se abrirem, e, enquanto todos os outros liam suas apostilas do cursinho, eu lia Poemas, de Yeats.

Mais tarde, no ápice do meu fervor experimental e vanguardista, com os preconceitos comuns de tal fervor, I become estranged from Old Bill Yeats. Hoje, porém, mais velho e equilibrado, sentindo a liberdade para amar os mais românticos e mais antilíricos dos poetas que amo, chego a Bebedouro, onde estou agora na casa dos meus pais, e encontro na estante esta mesma antologia, comprada há 15 anos, os Poemas de Yeats, e é o que tenho lido e relido nestes últimos dias.

Posto aqui, assim, em homenagem ao velho irlandês, alguns dos meus poemas favoritos, a quem estiver aí fora, de plantão, getting old ou no fervor lindo e divino dos poetas adolescentes. Aproveitem, esta febre que vocês sentem é uma coisa maravilhosa. Acho que Yeats nunca deixou de senti-la.



When You Are Old
W. B. Yeats

WHEN you are old and gray and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;

How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;

And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face among a crowd of stars.


 §


No Second Troy
W. B. Yeats

WHY should I blame her that she filled my days
With misery, or that she would of late
Have taught to ignorant men most violent ways,
Or hurled the little streets upon the great.
Had they but courage equal to desire?
What could have made her peaceful with a mind
That nobleness made simple as a fire,
With beauty like a tightened bow, a kind
That is not natural in an age like this,
Being high and solitary and most stern?
Why, what could she have done, being what she is?
Was there another Troy for her to burn?



§


The Fascination of What’s Difficult
W. B. Yeats

The fascination of what's difficult
Has dried the sap out of my veins, and rent  
Spontaneous joy and natural content
Out of my heart. There's something ails our colt  
That must, as if it had not holy blood  
Nor on Olympus leaped from cloud to cloud,  
Shiver under the lash, strain, sweat and jolt
As though it dragged road metal. My curse on plays  
That have to be set up in fifty ways,
On the day's war with every knave and dolt,  
Theatre business, management of men.  
I swear before the dawn comes round again  
I'll find the stable and pull out the bolt.



§


Sailing to Byzantium
W. B. Yeats

THAT is no country for old men. The young
In one another's arms, birds in the trees
- Those dying generations - at their song,
The salmon-falls, the mackerel-crowded seas,
Fish, flesh, or fowl, commend all summer long
Whatever is begotten, born, and dies.
Caught in that sensual music all neglect
Monuments of unageing intellect.

An aged man is but a paltry thing,
A tattered coat upon a stick, unless
Soul clap its hands and sing, and louder sing
For every tatter in its mortal dress,
Nor is there singing school but studying
Monuments of its own magnificence;
And therefore I have sailed the seas and come
To the holy city of Byzantium.

O sages standing in God's holy fire
As in the gold mosaic of a wall,
Come from the holy fire, perne in a gyre,
And be the singing-masters of my soul.
Consume my heart away; sick with desire
And fastened to a dying animal
It knows not what it is; and gather me
Into the artifice of eternity.

Once out of nature I shall never take
My bodily form from any natural thing,
But such a form as Grecian goldsmiths make
Of hammered gold and gold enamelling
To keep a drowsy Emperor awake;
Or set upon a golden bough to sing
To lords and ladies of Byzantium
Of what is past, or passing, or to come.


§

Leda and the Swan
W. B. Yeats

A sudden blow: the great wings beating still
Above the staggering girl, her thighs caressed
By the dark webs, her nape caught in his bill,
He holds her helpless breast upon his breast.

How can those terrified vague fingers push
The feathered glory from her loosening thighs?
And how can body, laid in that white rush,
But feel the strange heart beating where it lies?

A shudder in the loins engenders there
The broken wall, the burning roof and tower
And Agamemnon dead.
                    Being so caught up,
So mastered by the brute blood of the air,
Did she put on his knowledge with his power
Before the indifferent beak could let her drop?

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quinta-feira, 14 de junho de 2012

Da "Janela do caos", de Murilo Mendes

O pequeno ensaio abaixo foi originalmente publicado na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., em novembro de 2011. Há tempos queria reproduzir estas linhas de pensamento sobre O Mestre aqui. Aos que não o haviam visto e a quem mais possa interessar.


Da "Janela do caos", de Murilo Mendes




O mestre Murilo Mendes (1901 - 1975 e então a eternidade)


Publicado originalmente em Poesia Liberdade (1947), lançado na França já em 1949 em um volume com seis litografias de Francis Picabia e traduzido para o italiano por ninguém menos que Giuseppe Ungaretti, "Janela do caos" é um dos poemas imprescindíveis da poesia brasileira e em língua portuguesa, ainda que tenha encontrado acolhida parca no cânone, na bibliografia crítica e nas listagens dos gigantes, cujas vagas são em geral ocupadas por outros textos muito merecedores do espaço, como "A Máquina do Mundo" de Drummond, "Uma Faca Só Lâmina" de Cabral, ou, em casos raros, o "Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão" de Oswald de Andrade, talvez o poema que mais se lhe assemelhe em escopo, escolhas e contexto histórico. É claro que críticos muito bons se ocuparam dele e de seu autor, como Murilo Marcondes de Moura no excelente Murilo Mendes: a poesia como totalidade (São Paulo: Edusp, 1995). Vale também lembrar, entre outros, o livro de Júlio Castañon Guimarães, Territórios/Conjunções: poesia e prosa críticas de Murilo Mendes (Rio de Janeiro: Imago, 1993). Mas a importância deste texto pediria muito mais festança crítica e tentativas de emulação pupilar.

Em termos de fanopeia, talvez nenhum poeta brasileiro se compare a Murilo Mendes, maestria reconhecida por João Cabral de Melo Neto, que declarou haver aprendido com o mestre de Juiz de Fora a sempre dar precedência à imagem sobre a ideia (cito de memória). Em língua portuguesa, encontramos tamanha ousadia metafórica em poucos poetas, como Fernando Pessoa e Herberto Helder. Mas, a meu ver, tal uso da fanopeia como instância da hierofania ocorre em poucos poetas espalhados pela modernidade ocidental. O tipo de beleza que sinto em versos como "O céu cai das pombas. / Ecos de uma banda de música / Voam da casa dos expostos" ou aquela quinta parte, em que o mestre Murilo Mendes diz-nos que "Nenhum som de flauta, / Nem mesmo um templo grego / Sobre colina azul / Decidiria o gesto recuperador. / Fome, litoral sem coros, / Duro parto da morte. / A terra abre-se em sangue, / Abandona o branco Abel / Oculto de Deus", faz-me pensar na potência imagética de certos versos do Pessoa do "coração como balde despejado" ou, ousaria dizer, em momentos em que a fanopeia também manifesta-se como instância de hierofania no Gerard Manley Hopkins de "The Wreck of the Deutschland", como "I am soft sift / In an hourglass—at the wall / Fast, but mined with a motion, a drift, / And it crowds and it combs to the fall; / I steady as a water in a well, to a poise, to a pane", mesmo que eu esteja ciente que Hopkins talvez seja um dos mestres insuperados (também Pessoa, em menor medida) da arte de conjugar, em equilíbrio quase sempre perfeito, fanopeia, melopeia e logopeia, quando Murilo Mendes foi em geral mestre supremo daquela primeira.


Sintaticamente, não consigo pensar em uso melhor e mais necessário do hipérbato que naquela última parte, a décima primeira, em que este assume caráter praticamente isomórfico, para usar abusadamente uma expressão cara a Augusto de Campos, que desempenha (como uma performance) a ideia-sensação de ascensão transcendente, ao deixar para o último verso aquele "Subindo vão", ao mesmo tempo que, de maneira gráfica, digamos, cria uma espécie de embate entre ascensão e queda ao fazer dele o ulterior e último dos versos. Há aqui uma relação interessante a ser pensada sobre os efeitos vocais e auditivos do poema quando é falado/ouvido e seus efeitos visuais quando é lido. Não seria impossível também pensar no verso final, a partir da quebra-de-linha, como uma espécie de sínquise a fazer de "vão" não um verbo, mas adjetivo, sem concordância direta com as linhas anteriores, doando certa desesperança ao poema não conhecêssemos a fé de seu autor.


Talvez mais condizente com o pensamento de Murilo Mendes seria a sugestão do poeta gaúcho Marcus Fabiano, em correspondência particular sobre esta possibilidade, a de ler "vão" nem como verbo nem como adjetivo, mas como substantivo, criando a imagem de ascensão por aquele "vão azul" que nos pareceria vazio apenas porque nós, segundo um verso do poema, "só vemos o céu pelo avesso". Pois, quase no extremo oposto de um poeta como Wallace Stevens, que escreveu que "Poetry / Exceeding music must take the place / Of empty heaven and its hymns, / Ourselves in poetry must take their place", Murilo Mendes não cria vazio o céu nem imaginaria que nós pudéssemos substituir o sagrado com a poesia, especialmente não colocando esta acima da música, já que M.M. era melomaníaco notório.

Estas possíveis leituras do último verso de "Janela do caos", de certa forma (trata-se aqui de sensação minha), talvez evoquem a sensibilidade e imagética mística anterior de poetas como Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, poetas que parecem presidir ou ao menos prenunciar a poesia mística brasileira moderna, a de Murilo Mendes e de seus excelentes companheiros Jorge de Lima, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes (da primeira fase) e Henriqueta Lisboa. Entre os poetas do pós-guerra, poderíamos mencionar Hilda Hilst e Leonardo Fróes, todos estes, ao mesmo tempo, poetas muito distintos entre si.

Outro aspecto que seria importante discutir neste poema é a relação entre linguagem metafórica e linguagem metonímica em sua textualidade, pois Murilo Mendes mescla-as de forma inteligentíssima, apontando para advertências do próprio Jakobson sobre o perigo de estabelecermos fronteiras demarcadas demais entre as duas, assim como este poema é uma lição incontornável sobre o equívoco de certos poetas e críticos contemporâneos, que insistem em crer que a função poética da linguagem cancela as outras funções, como a referencial, quando nada disso pode ser comprovado nos grandes poemas de todos os tempos. A linguagem poética parece operar e funcionar, em seu material, forma, função e contexto, em "Janela do caos" e em tanta grande poesia, na fronteira entre transparência e não-transparência do signo, como insisto com frequência.

Nestes nossos tempos de equívoco crítico desastrado que busca equivaler como se sinônimos, de forma confusa e desengonçada, conceitos como "pós-utópico", "trans-histórico" e "sincrônico", Murilo Mendes retorna como mestre supremo e indispensável. Pois é importante dizer que o "surreal" em Murilo Mendes talvez se manifeste com força real de escrita automática apenas em um livro como As Metamorfoses (1944), como Murilo Marcondes de Moura já argumentou, já que M.M. parece ter usado o surrealismo apenas para educar-se em sua futura maestria do que já foi chamado de "metáfora dissonante" e para a própria conjunção entre linguagem metafórica e metonímica que parece operar em um poema como "Janela do caos". Há pouquíssimo de "automático" na escrita do mestre mineiro. Um poema como "Janela do caos" apresenta-se consciente em cada filigrana de sua textualidade, atento à conjugação do temporal, secular e histórico como campos de ação do sagrado, daí o caráter hierofânico de sua fanopeia. Pois se ele está ligado, sim, a esta que foi uma das vanguardas mais utópicas do século XX, o surrealismo de Breton, Picabia e Éluard, entre outros, a poesia de Murilo Mendes, que foi chamado de "conciliador de contrários" por Manuel Bandeira, sempre demonstrou a consciência de que a defesa do utópico (que se manifesta em M.M. no bojo de sua crença inabalável na parúsia) precisa estar unida a um ataque ao distópico, pois ele sabia bem que a humanidade balança-se, em pêndulo, entre distopia e sua antesala.

Num momento em que liberdades civis estão claramente ameaçadas tanto em São Paulo como em São Petersburgo; com sangue jorrando no Egito e outros países árabes; prisioneiros políticos em prisões como Guantânamo e Guanajay; partidos de extrema direita vencendo eleições em países europeus e expulsão de estrangeiros de países como a França; sem mencionar as matanças por questões étnicas que nunca cessam, eu, pessoalmente, retorno uma vez mais a mestres como o Murilo Mendes de "Janela do caos" e o Oswald de Andrade de "Cântico dos cânticos para flauta e violão", estes brasileiros que sabiam que a poesia lírica sai e soa alienada tão-só dos e para os que têm panfletos inúteis ou cartões de crédito nas cavidades onde deveriam residir seus miocárdios e cérebros.


--- Ricardo Domeneck


§


O POEMA DO MESTRE MURILO MENDES


Janela do caos


1


Tudo se passa
Em Egitos de corredores aéreos
Em galerias sem lâmpadas
À espera de que Alguém
Desfira o violoncelo
- Ou teu coração?
Azul de guerra.


2


Telefonam embrulhos,
Telefonam lamentos,
Inúteis encontros,
Bocejos e remorsos.
Ah! Quem telefonaria o consolo
O puro orvalho
E a carruagem de cristal.


3


Tu não carregaste pianos
Nem carregaste pedras
Mas na tua alma subsiste
- Ninguém se recorda
E as praias antecedentes ouviram -
O canto dos carregadores de pianos,
O canto dos carregadores de pedras.



4


O céu cai das pombas.
Ecos de uma banda de música
Voam da casa dos expostos.
Não serás antepassado
Porque não tiveste filhos:
Sempre serás futuro para os poetas.
Ao longe o mar reduzido
Balindo inocente.


5


Harmonia do terror
Quando a alma destrói o perdão
E o ciclo das flores se fecha
No particular e no geral:
Nenhum som de flauta,
Nem mesmo um templo grego
Sobre colina azul
Decidiria o gesto recuperador.
Fome, litoral sem coros,
Duro parto da morte.
A terra abre-se em sangue,
Abandona o branco Abel
Oculto de Deus.


6


A infância vem da eternidade.
Depois só a morte magnífica
- Destruição da mordaça:
E talvez já a tivesses entrevisto
Quando brincavas com o pião
Ou quando desmontaste o besouro.
Entre duas eternidades
Balançam-se espantosas
Fome de amor e a música:
Rude doçura,
Última passagem livre.
Só vemos o céu pelo avesso.


7


Cai das sombras das pirâmides
Este desejo de obscuridade.
Enigma, inocência bárbara,
Pássaros galopando elementos
Do fundo céu
Irrompem nuvens eqüestres.
Onde estão os braços comunicantes
E os pára-quedistas da justiça?
Vultos encouraçados presidem
À sabotagem das harpas.


8


Que esperam todos?
O vento dos crimes noturnos
Destrói augustas colheitas,
Águas ásperas bravias
Fertilizam os cemitérios.
As mães despejam do ventre
Os fantasmas de outra guerra.
Nenhum sinal de aliança
Sobre a mesa aniquilada.
Ondas de púrpura,
Levantai-vos do homem.


9


Penacho da alma,
Antiga tradição futura:
?Se a alma não tem penacho
Resiste ao Destruidor?


10


A velocidade se opõe
À nudez essencial.
Para merecer o rompimento dos selos
É preciso trabalhar a coroa de espinhos.
Senão te abandonam por aí,
Sozinho, com os cadáveres de teus livros.



11


Pêndulo que marcas o compasso
Do desengano e solidão,
Cede o lugar aos tubos do órgão soberano
Que ultrapassa o tempo:
Pulsação da humanidade
Que desde a origem até o fim
Procura entre tédios e lágrimas.
Pela carne miserável,
Entre colares de sangue,
Entre incertezas e abismos,
Entre fadiga e prazer,
A bem-aventurança.
Além dos mares, além dos ares,
Desde as origens até o fim,
Além das lutas, embaladores,
Coros serenos de vozes mistas,
De funda esperança e branca harmonia
Subindo vão.



Murilo Mendes, Poesia Completa e Prosa, Nova Aguilar, 1994.


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quarta-feira, 13 de junho de 2012

Homenagem de Marcus Fabiano Gonçalves aos portugueses Fernando Pessoa, Antônio Vieira e Santo Antônio de Lisboa, seguida de outros poemas do gaúcho

No ano passado, preparei uma postagem com poemas então inéditos de Marcus Fabiano Gonçalves para a Modo de Usar & Co., além de dois poemas de seu primeiro livro, O Resmundo das Calavras (2005). Hoje, em que completariam (e completam) anos (de morte e de vida, respectivamente) os grandes portugueses Fernando Martins de Bulhões ou Santo António de Lisboa (Lisboa, 15 de Agosto de 1195 - Pádua, 13 de Junho de 1231) e Fernando Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de Novembro de 1935), o poeta gaúcho divulgou um poema inédito em homenagem a eles, intitulado "CARTA À POETA QUE EXAMINA SEUS MEDOS OU GLOSA SOB OS AUSPÍCIOS DA LÍNGUA DE SANTO ANTÔNIO DE LISBOA (TAMBÉM DITO DE PÁDUA) QUE OPEROU MILAGRES QUANDO FOI PREGAR AOS PEIXES E TOMAR SOPA ENVENENADA". O poema é introduzido por um pequeno texto do autor gaúcho. Encerro a postagem com os poemas publicados na Modo de Usar & Co. em maio de 2011.



SANTO ANTÔNIO, PADRE VIEIRA E FERNANDO PESSOA
por Marcus Fabiano Gonçalves

Na idade média, os pobres que deviam a agiotas eram encarcerados e tinham suas esposas forçadas a se prostituírem para o resgate de suas dívidas. Centenas de famílias de plebeus foram assim aniquiladas. Era a crueldade do “capitalismo” da época. No século XIII, um português brilhante, grande jurista e exímio orador, teve uma ideia: organizar frentes de trabalho de monges para a compra da libertação desses homens e o alívio do sofrimento de suas mulheres. Com a força dos braços e com sermões implacáveis ele moveu uma campanha contra a infâmia da prisão civil por dívida e conquistou mudanças pioneiras nas legislações feudais. Tratava-se do nobre português Fernando de Bulhões, que receberia de Francisco de Assis o nome de Antônio. Por ter ficado conhecido como Santo Antônio de Pádua (lugar próximo de onde morreu, em 1232), muitos pensam que ele seja italiano. Mas não. Sua língua milagrosamente nunca apodreceu. E é uma genuína língua portuguesa, por isso ele também é chamado Santo Antônio de Lisboa (onde nasceu, em 1195). Em sua homenagem, seriam batizados com o seu nome dois dos maiores escritores de nossa Língua: o padre Antônio Vieira e o poeta Fernando Antônio Nogueira Pessoa, que aliás lhe rende dupla homenagem, tendo nascido exatamente no seu dia, 13 de junho. Eis aqui um trecho do filme SAN ANTONIO DI PÁDOVA, de Umberto Marino, no qual se pode conferir a fortíssima cena do "miracolo della menestra" (o milagre da sopa). E logo abaixo um poema meu, de caráter pseudoanagógico, rendendo homenagem a esse grande Antônio em um país que o tem na baixíssima conta de mero santo casamenteiro.




§

“Esta é a língua, peixes, do vosso grande pregador, que também foi rêmora vossa, enquanto o ouvistes; e porque agora está muda (posto que ainda se conserva inteira) se veem e choram na terra tantos naufrágios.” --- Padre Vieira, Sermão de Santo Antônio aos Peixes

 §

CARTA À POETA QUE EXAMINA SEUS MEDOS OU GLOSA SOB OS AUSPÍCIOS DA LÍNGUA DE SANTO ANTÔNIO DE LISBOA (TAMBÉM DITO DE PÁDUA) QUE OPEROU MILAGRES QUANDO FOI PREGAR AOS PEIXES E TOMAR SOPA ENVENENADA
Marcus Fabiano Gonçalves

você já deveria saber que no meu bloco desfilam balões e bolcheviques, fuzis e margaridas. e só agora nota essas fitas alegóricas ao redor do andor? meu olho não é seco, é de terra. por isso quando uma água o molha não vem da íris nem é nada cristalina. é um barro, uma lama. mas erra muitíssimo quem a pense suja. não está sempre aí, ela surge. e quando vem, é uma argila. dessa mesma que é feito o homem e suas costelas, pois as barras dessas jaulas que no peito levam nossos tigres não detêm o sopro de um colibri. não é só da carne que lhe falo. é também da alma, da miraculosa língua de santo Antônio, até hoje conservada intacta. quem prega sacrifícios se santifica. mas será que vive ou se mantém cativo? também o santo vai à praia quando o povo lhe dá as costas. e então a sua palavra faz piscosas umas águas antes só de algas. porém nem sempre o remorso previne erros com cautelas. no “miracolo della menestra” a fé mudou o veneno em alimento quando Antônio disse ao agiota: por vossa alma eu tomo essa peçonha de cobra. aí convém aceitar a humana realidade e arriscar o ímpeto apesar da falha. a soberba doma a alma se a invocação de um santo indaga: tentando se é tentado? embora peque e morra, o santo é mais forte porque acredita. ele acode quando menos se imagina. a sua fé ama enquanto desafia. ela é a fome de um pão ainda sem seu trigo. a confiança que une a graça ao pedido. é pura promessa e espera porque conhece o lugar onde a semente guarda o tempo. sei e sabemos que é do humano tanto a raiva quanto o ciúme. e que por muito pouco pode a vida se tornar mais ácida, afinal toda carne apodrece e passa. mas enquanto aguarda a palavra é mágica. e ela fica, não finge que acredita. a luz é boa mesmo se às vezes o seu brilho é duro, sobretudo quando reúnam, junto à santa língua, diamante e dinamite. a fé transmuta quem dela se ilumine. a fé aclara muito quando se duvida. ela não entende, não explica, não decifra. só redime e nem sempre é macia. e se ela remove até montanhas, não lhe seria fácil demolir a esfinge? contudo a fé a trata como inexistisse. seu mistério não é charada nem enigma. não devora nem adivinha. só inspira. se é fácil? quem disse? no bem querer, o simples é ainda mais difícil.

(in Arame Falado, no prelo)






Marcus Fabiano Gonçalves nasceu em Santana do Livramento, na fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, em 1973. Cedo transferiu-se para Porto Alegre e é formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre e Doutor em Teoria e Filosofia do Direito, prepara doutoramento em antropologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Morou também em Florianópolis e Natal. Radicado na cidade do Rio de Janeiro, é atualmente professor da Universidade Federal Fluminense. Estreou em livro com O Resmundo das Calavras (2005), e sua segunda coletânea, intitulada Arame Falado, será lançada este ano.

O trabalho de Marcus Fabiano Gonçalves já havia aparecido neste espaço, mencionado com seu poema "Oração do favelado" no artigo "Das fatrasies medievais a DADA, do Sapateiro ao Rilke shake", que discute as possibilidades da poesia satírica e alguns exemplos deste trabalho em certos contemporâneos, ligando-os à tradição da poesia medieval que vai mais tarde desaguar na poesia do nonsense britânica e na dadaísta germânica, por exemplo. Poética que tem no Brasil dois excelentes representantes em Gregório de Matos e Sapateiro Silva.


POEMAS DE MARCUS FABIANO


Agulha e palheiro


quem ao palheiro se desse
munido apenas de um ímã
e dali tirasse a tal agulha
que ninguém garimpa

afeito ao tato da cegueira
quem nem a detectasse
por essa magnética patrulha
da improvável coisa miúda

mas sim a resgatasse cravada
feito uma seringa na nádega
como quem podendo a luz do mercúrio
garimpasse afinal sua pepita no escuro

e assim descobrisse pela agulha
o sentido de uma outra procura:
achar no ordinário do palheiro
a dádiva da palha, o aconchego.


§


Diário de bordo


um tanto de arroz
acautela a avareza da miséria:
uma cara mansa e rubicunda
de olhos trêfegos
mergulhados na tigela

o sorriso cínico ainda mercadeja
a dúvida dos céticos no bosque dos afetos
e um aleijão mendiga a piedade da repulsa
ostentando o seu falso caroço de corcunda

contudo, recorda-te:
anos 1800 – Gibraltar represa o Mediterrâneo
e a China dorme o ópio dos britânicos

anos 1900 – Celan pula da ponte da vida
sem perguntar ao carpina
o quanto verga sem quebrar
a severina compleição judia

anos 2000 – a árvore da vida desfolha
e em seu diário de bordo Noé anota:
afogado noutro dilúvio compulsório
ainda exerço os ofícios da memória.


§


Shukran


a Mahmoud Darwish


no armazém das migalhas
ser o chefe dos almoxarifes:
mesmo nos grandes negócios
jamais pechinchar seu bakshish
só pelo prazer de dizer shukran
aos deuses que falam ídiche.


§


A máquina do fundo


a pesca escassa, o rio poluído, a quotação da dracma
um heraclítico engenho rege o mundo das máquinas

na margem, a draga do imponderável rio sem fundo
sem opor o puro ao sujo, aceitando o fluxo de tudo

a lama negra das imagens infiltra o oco dos crânios
no entulho da palavra gaga, a jaula do orangotango

reúne uns cacos de naufrágio, enjambra umas tábuas
vê se salva as aves da linguagem nessa arca de sucata

une o conteúdo à sua forma mais perfeita e intransitiva
e embora toda solda, cuida de mantê-la móvel e flexível

coa a lama toda dessa draga e separa bem tua saliva
retém a gota e o grão no sorriso amarelo das espigas

observa o dedo lerdo catando seu milho na datilografia
de grão em grão germina um corvo no ventre da galinha

chocando a ave faz esfinge de quem ignora o enigma
mas na verdade ela bem sabe que no fundo nada finda.



::: poemas inéditos de Marcus Fabiano, incluídos em seu livro Arame Falado (no prelo) :::


§


Oração do favelado


pai nosso
que nos deixa ao léu
santificada seja a nossa fome
venha a nós o vosso treino
e seja feita a vossa vontade
aqui na guerra
como entre os réus

o pão nosso de cada dia
roubai hoje
e perdoai a nossa imprensa
assim como perdoamos
as migalhas que nos têm oferecido,
não nos deixeis cair na transação
mas livrai-nos do sistema penal,
amém.


§


Panifico e construo


sou em regra cortês
mas jamais peço licença sinhô
ou permiso señor

pulo a cerca corto o arame
arrombo a porteira cavo túnel
construo pontes improviso canoas
adivinho o segredo do cofre
salto contorno roubo a chave das algemas
me refugio em incertos algures
apago os rastros do meu paradeiro
disfarço-me em padeiro e pedreiro
panifico e construo
e meus pães eu distribuo
como quem oferece pedras
em uma ceia de banguelas

vim vi e vivi:
não vigiem minha viagem

vim vi e viciei:
não vasculhem minha bagagem

vim vi e vibrei:
não vomitem por minha beberagem




:::: poemas extraídos do livro O Resmundo das Calavras (Porto Alegre: WS Editor, 2005) ::::

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terça-feira, 12 de junho de 2012

Dia dos namorados



Sei que é uma invenção comercial. Eu mesmo nunca tive um que se rendesse ao utilitarismo capitalista do dia, negavam-no, conscientes, politizados. Eu morria de orgulho de cada um deles, e de frustração por não poder usar a oportunidade para derramar-me em carinhos ridículos. Agora sem um, felicito os felizardos que os têm, politizados ou não. E para eles, posto aqui 5 poemas da minha liricosa amorírica, de cada um dos meus cinco livros. Dedico esta postagem a Michael, que anda acenando no horizonte com uma mão aberta e a alegria oferta na outra, talvez efêmera – como sói ser, mas tão efusiva – como também só sabe ser.

Cinco poemas de cinco livros


De madrugada, de manhã

04:48 am

acordar no meio da noite
com a cabeça do outro
sobre o peito,
travesseiro,

maré e barco;

permanecer desperto, à deriva
o resto da noite, dormentes
e doloridos os membros,
a circulação cindida,

sem desejo de resgate –

e sussurrar-lhe ao ouvido:
unsere knochenknospen
– nossos brotos d’ossos –
schnurren und schnorren,
– ronronam e imploram,

como em qualquer hino,
meu querido.

09:56 am

eu
desconheço
quanto

deserto custa
uma epístola
aos coríntios;

se a cegueira
no caminho
precede sempre

(e vale)
a cidade,
Damasco;

se na garganta
um novo cântico
dos cânticos aguarda

ou se quatorze anos
de fôlego preso
hidratariam sonetos;

eu falo baixo
porque deixá-lo

dormir meia-hora
a mais é a forma

de acariciá-lo
logo de manhã,

ele, envolto em lã,
que ignora o abalo

sísmico
em mim:

um bocejo
seu.


(Carta aos anfíbios, 2005)

§

em minha boca ele
alcança o meio-dia
mas a intermitência o
apreende como em
qualquer música
cúmplice do acaso a
pessoa começa a
afastar-se desde que
se aproxima a distância
existe entre pele e
pele cada imagem
dobrando a esquina
não configura
sua chegada
ele
só chega quando seu
corpo chega carregado
pelas próprias pernas
e jamais falha que
eu o reconheça
de imediato
como dono de
certos lábios voz
nome e um modo
de apresentar-se
ele
chega o mundo
assume uma nova
forma: a do
equilíbrio precário do
mundo

(a cadela sem Logos, 2007)

§

Autorretrato para agência de acasalamento

a-
pós
a noite
em claro com
Antonioni / Plath / Radiohead
você pergunta-me
pela vida humorosa?
(cf. O. de A.)
autodevastar-se
a única
art we master,
só nos entendendo
via subtração,
nossos encontros
fantásticos!, cavalheiros,
como anseio
por ele
que piora tudo;
horas
para arrumar-se
e no fim
estes trapos?
ornam,
combinam,
caem
tão bem;
aguardo o dia
em que tudo
o que disser-me
o ventríloquo
seja a citação
de alguém algures,
como desaparecer
completamente;
nosso amor durou
quinze hematomas
e a incubação
da escabiose,
minha herança!;
quando acordei,
cada coisa em seu
lugar onde
eu, eu, eu
deixara;
ah! amar é
inter-
ferir,
salvar
se de si

(Sons: Arranjo: Garganta, 2009)

§

de Cigarros na cama

Poema 28

Os amigos sugerem passatempos
e festas, acquaintance com anatomias
inéditas, corpos novos. Como? Quem
se compara aos seus côncavos
e convexos?
Por ora, moço,
você ainda defeca
ouro.

(Cigarros na cama, 2011)


§

Texto em que o poeta celebra
o amante de vinte e cinco anos

Houve
guerras mais duradouras
que você.
Parabenizo-o pelo sucesso
hoje
de sobreviver a expectativa
de vida
de uma girafa ou morcego,
vaca
velha ou jiboia-constritora,
coruja.
Penguins, ao redor do mundo,
e porcos,
com você concebidos, morrem.
Saturno,
desde que se fechou seu óvulo,
não
circundou o Sol uma vez única.
Stalker
que me guia pelas mil veredas
à Zona,
engatinha ainda outro inverno,
escondo
minha cara no seu peito glabro.
Fosse
possível, assinaria um contrato
com Lem
ou com os irmãos Strugatsky,
roteiristas
de nossos dias, noites futuras;
por trilha
sonora, Diamanda Galás muge
e bale,
crocita e ronrona, forniquemos.
Celebro
a mente sob os seus cabelos,
ereto,
anexado ao seu corpo, o pênis.
Algures,
um porco, seu contemporâneo,
chega
ao cimo de seu existir rotundo,
pergunto,
exausto em suor, se amantes,
de cílios
afinal unidos, contam ovelhas
antes
do sono, eufóricas e prenhas.

(Ciclo do amante substituível, 2012)

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domingo, 10 de junho de 2012

S.O.S. México - Yo Soy 132!

Caros leitores deste espaço, peço a todos que apoiem o movimento estudantil mexicano, em luta contra a oligarquia fascista de seu país. Sejam também 132, espalhem o vídeo. Aqui o meu apoio a meus amigos no D.F. e espalhados pelo país .

 

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sábado, 9 de junho de 2012

Entre os pernambucanos




Acabo de voltar ao hotel, após passar a tarde e a noite no festival. Às 19:00, houve uma conversa com Ernesto de Melo e Castro, e, às 20:00, começou a roda de leituras. Havia pouco tempo para cada poeta, e eu decidi ler dois poemas: "X + Y: uma ode" e "Carta a Antínoo". Estava à vontade e houve uma conexão legal com o público. Mas agora confesso estar exausto e vou despencar na cama. Amanhã, às 9:00, conduzo uma conversa sobre as inplicações políticas do trabalho poético, a partir da proposição de Wittgenstein, de que "ética e estética são uma só". Às 16:30, participo de um bate-papo com o jornalista Diogo Guedes e a poeta Cida Pedrosa.

Deixo vocês com três poemas favoritos de três pernambucanos:

Tarde no Recife
Joaquim Cardozo

Tarde no Recife.
Da ponte Maurício o céu e a cidade.
Fachada verde do Café Máxime.
Cais do Abacaxi. Gameleiras.
Da torre do Telégrafo Ótico
A voz colorida das bandeiras anuncia
Que vapores entraram no horizonte.

Tanta gente apressada, tanta mulher bonita.
A tagarelice dos bondes e dos automóveis.
Um carreto gritando — alerta!
Algazarra, Seis horas. Os sinos.

Recife romântico dos crepúsculos das pontes.
Dos longos crepúsculos que assistiram à passagem dos fidalgos holandeses.
Que assistem agora ao mar, inerte das ruas tumultuosas,
Que assistirão mais tarde à passagem de aviões para as costas do Pacífico.
Recife romântico dos crepúsculos das pontes.
E da beleza católica do rio.

§

Belo Belo
Manuel Bandeira

Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cusco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.


§

de O Cão Sem Plumas
João Cabral de Melo Neto


IV. Discurso do Capibaribe

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.

Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.

Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.

Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).


.
.
.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Amuletos e outras muiraquitãs

Acabo de chegar ao Recife. Minha bagagem não teve a mesma sorte. Que maratona. Leio no Festival Internacional de Poesia amanhã à noite, às 20:00. Por ora, preciso dormir e lavar as roupas do corpo para ter o que vestir até encontrarem minha mala. Antes de ir para a cama, vou ler de novo o que estava dentro do amuleto-muiraquitã que alguém me deu antes de sair de Berlim, para carregar enquanto estivesse longe.











Green eggs and ham
Theodor Seuss Geisel (mais conhecido como Dr. Seuss)


I am Sam


I am Sam
Sam I am


That Sam-I-am
That Sam-I-am!
I do not like
that Sam-I-am


Do you like
green eggs and ham


I do not like them,
Sam-I-am.
I do not like
green eggs and ham.


Would you like them
Here or there?


I would not like them
here or there.
I would not like them
anywhere.
I do not like
green eggs and ham.
I do not like them,
Sam-I-am


Would you like them
in a house?
Would you like them
with a mouse?


I do not like them
in a house.
I do not like them
with a mouse.
I do not like them
here or there.
I do not like them
anywhere.
I do not like green eggs and ham.
I do not like them, Sam-I-am.




Would you eat them
in a box?
Would you eat them
with a fox?


Not in a box.
Not with a fox.
Not in a house.
Not with a mouse.
I would not eat them here or there.
I would not eat them anywhere.
I would not eat green eggs and ham.
I do not like them, Sam-I-am.


Would you? Could you?
in a car?
Eat them! Eat them!
Here they are.


I would not ,
could not,
in a car


You may like them.
You will see.
You may like them
in a tree?
d not in a tree.
I would not, could not in a tree.
Not in a car! You let me be.


I do not like them in a box.
I do not like them with a fox
I do not like them in a house
I do mot like them with a mouse
I do not like them here or there.
I do not like them anywhere.
I do not like green eggs and ham.
I do not like them, Sam-I-am.


A train! A train!
A train! A train!
Could you, would you
on a train?


Not on a train! Not in a tree!
Not in a car! Sam! Let me be!
I would not, could not, in a box.
I could not, would not, with a fox.
I will not eat them with a mouse
I will not eat them in a house.
I will not eat them here or there.
I will not eat them anywhere.
I do not like them, Sam-I-am.




Say!
In the dark?
Here in the dark!
Would you, could you, in the dark?


I would not, could not,
in the dark.


Would you, could you,
in the rain?


I would not, could not, in the rain.
Not in the dark. Not on a train,
Not in a car, Not in a tree.
I do not like them, Sam, you see.
Not in a house. Not in a box.
Not with a mouse. Not with a fox.
I will not eat them here or there.
I do not like them anywhere!


You do not like
green eggs and ham?


I do not
like them,
Sam-I-am.


Could you, would you,
with a goat?


I would not,
could not.
with a goat!


Would you, could you,
on a boat?


I could not, would not, on a boat.
I will not, will not, with a goat.
I will not eat them in the rain.
I will not eat them on a train.
Not in the dark! Not in a tree!
Not in a car! You let me be!
I do not like them in a box.
I do not like them with a fox.
I will not eat them in a house.
I do not like them with a mouse.
I do not like them here or there.
I do not like them ANYWHERE!


I do not like
green eggs
and ham!


I do not like them,
Sam-I-am.


You do not like them.
SO you say.
Try them! Try them!
And you may.
Try them and you may I say.


Sam!
If you will let me be,
I will try them.
You will see.


Say!
I like green eggs and ham!
I do!! I like them, Sam-I-am!
And I would eat them in a boat!
And I would eat them with a goat...
And I will eat them in the rain.
And in the dark. And on a train.
And in a car. And in a tree.
They are so good so good you see!


So I will eat them in a box.
And I will eat them with a fox.
And I will eat them in a house.
And I will eat them with a mouse.
And I will eat them here and there.
Say! I will eat them ANYWHERE!


I do so like
green eggs and ham!
Thank you!
Thank you,
Sam-I-am


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