Em julho, a banda R.E.M. passou um mês em Berlim, gravando seu novo álbum. Michael Stipe começou a ser visto em várias festas da cidade, especialmente, é claro, as festas queer (justo ele, que tanto popularizou a expressão em uma entrevista do fim dos anos 90). Para minha sorte, ele é muito amigo de um DJ canadense que toca todos os meses na nossa festa semanal, e graças a este amigo pude conhecer pessoalmente o sr. Stipe, um dos meus heróis da adolescência. Encontramo-nos uma noite em um clube subterrâneo, acabamos na mesma mesa em bebedeira, e outra noite ele veio ao nosso evento de toda quarta-feira.
Tive que me controlar para não regredir a um adolescente trêmulo, como sempre me ocorre quando me vejo diante destas criaturas que por tantos anos foram míticas para mim. Sobre o que se falou à mesa naquela noite bêbada, num clube subterrâneo do Berlimbo? De tudo, da vida nossa de cada 80s e 90s, porque moramos onde moramos, de amores passados por meninos lindos, de como ele detesta Damian Hirst (havia uma exposição de Hirst em Berlim naquele momento) e de como eu por outro lado o acho divertidíssimo, de como todos na mesa gostávamos de Bruce Nauman (havia uma exposição de Nauman em Berlim naquele momento), sobre o Berlimbo, sobre Athens - Georgia, sobre Nova Iorque.
E eu me controlei o tempo todo para não bancar o fã idiota, e desandar a falar sobre como ele foi importante para mim quando adolescente, sobre como algumas de suas canções salvaram minha sanidade em uma cidade pequena do interior de São Paulo, sobre como "Fall on me" era um mantra pessoal meu, e, finalmente, de como em certa tarde de São Paulo, há muitos anos, eu havia chorado convulsivamente enquanto esta canção rolava na vitrola, em módulo repeat. Eu me controlei, kept my cool, e quase derreti quando ele se despediu dizendo "It was very nice to meet you, Ricardo", uma frase feita e simplesmente polida, que se diz a qualquer um, mas que terminava com meu nome, vindo da boca do herói de um (como me tornei naquele momento mais uma vez) adolescente magricelo, corcunda e cheio de acne.
"Fall on me", do álbum Life's Rich Pageant (1986), do R.E.M.
Abri a postagem com este relato pessoalíssimo, beirando nota de coluna social. Quanto à canção, que é o que interessa, o texto de "Fall on me" é uma coisa muito sofisticada, em minha opinião, e traz umas lições exemplares de poeticidade. Pessoalmente, encontro mais aprendizagem em um verso como "Feathers hit the ground before the weight can leave the air", neste poema cantado, que em muita poesia escrita e publicada na década de 80. Posso estar insano, mas não consigo chacoalhar a impressão de certa wit metafísica neste verso, como se viesse em linhagem de "heredipoeticidade" de criaturas como Donne ou Crashaw. O texto duplo, em sobreposição de vozes, tem uma carga tão forte na última estrofe, é tão lindo: "There's the progress we have found (when the rain) / A way to talk around the problem (when the children reign) / Building towered foresight (keep your conscience in the dark) / Isn't anything at all (melt the statues in the park) / Buy the sky and sell the sky and bleed the sky and tell the sky". Um dia o céu há de cair sobre nossas cabeças, mas até lá continuo ouvindo R.E.M., como qualquer adolescente digno dos anos 80/90.
Fall on me Michael Stipe, com o R.E.M.
There's a problem, feathers iron Bargain buildings, weights and pullies Feathers hit the ground before the weight can leave the air Buy the sky and sell the sky and tell the sky and tell the sky
(chorus) Fall on me (what is it up in the air for) (it's gonna fall) Fall on me (if it's there for long) (it's gonna fall) Fall on me (it's over it's over me) (it's gonna fall)
There's the progress we have found (when the rain) A way to talk around the problem (when the children reign) Building towered foresight (keep your conscience in the dark) Isn't anything at all (melt the statues in the park) Buy the sky and sell the sky and bleed the sky and tell the sky
(repeat chorus)
Fall on me
Well I could keep it above But then it wouldn't be sky anymore So if I send it to you you've got to promise to keep it whole
Buy the sky and sell the sky and lift your arms up to the sky And ask the sky and ask the sky
Quando eu me mudei para a Alemanha, no começo desta década que agora se encerra, já trazia do Brasil em minha bagagem mental alguns mestres pessoais que eram alemães. De forma bastante clara, Walter Benjamin (1892 - 1940), e Bertolt Brecht (1898 - 1956). O pensador berlinense passou a ser presença determinante em meus pensamentos desde que li alguns de seus ensaios traduzidos para o português, lá pelos idos de 1997, quando tinha uns 20 anos. Brecht tornou-se uma presença forte em minha vida a partir do meu primeiro ano na Universidade de São Paulo, onde estava matriculado como estudante de filosofia, mas onde passei a frequentar um grupo de estudos da Faculdade de Artes Cênicas, que se reunia todas as quartas-feiras para ler e discutir uma peça de Brecht, até lermos todas. Este grupo viria a se tornar a Tribo de Teatro Tumutupugá, que teve uma importância gigantesca em minha vida. Vale lembrar que, no final da década de 90, o grupo teatral paulistano Companhia do Latão havia se lançado em uma verdadeira cruzada brechtiana em meio à Paulicéia.
Mais tarde vieram Joseph Beuys (1921 - 1986), com seu conceito de escultura social, e Eva Hesse (1936 - 1970), com sua brilhante manipulação de materiais, na qual eu enxergava elementos para minha busca da corporalidade poética. Estes dois artistas funcionavam como a parelha alemã de minha admiração por Lygia Clark (1920 - 1988), e Hélio Oiticica (1937 - 1980).
No início desta década viriam então, com grande força, a presença de austríacos como o gigantesco SALVE SALVE Ludwig Wittgenstein (1889 - 1951), o poeta H.C. Artmann (1921 - 2000), o cineasta Michael Haneke.
Minha primeira reação e relação com o trabalho de Rainer Werner Fassbinder (1945 - 1982) foi tumultuosa, negativa. Os primeiros filmes a que assisti foram Liebe ist kälter als der Tod {O amor é mais frio que a morte} (1969) e Händler der vier Jahreszeiten {Negociante das quatro estações} (1971), que me pareceram, com o perdão da palavra, chatos, nouvellevagueanos em um sentido negativo, copioso. Mesmo um filme como Götter der Pest {Deuses da peste} (1969), filmado entre os dois que mencionei, ainda mostra certos trejeitos godardianos, em minha opinião. Mas é no ano seguinte (ele trabalhava em cerca de 3 ou 4 filmes por ano) que Fassbinder dirigiria, baseado em uma peça teatral sua, um dos meus filmes favoritos, e aquele que faria com que eu retomasse toda a sua filmografia com outros olhos: o estupendo e completamente Fassbinder Die bitteren Tränen der Petra von Kant {As lágrimas amargas de Petra von Kant} (1972). Nele, a visão extremamente negativa e cheia de cicatrizes com que Fassbinder contemplava as relações amorosas chega a um de seus ápices do sarcasmo, a mesma que ele já demonstrara em sua peça Tropfen auf heisse Steine {Gotas d´água em pedra escaldante), que seria mais tarde muito bem filmada por outro diretor homossexual, o francês François Ozon. Em Petra von Kant, as cores berrantes que Pedro Almodóvar passaria a usar aparecem com uma década de antecedência, mas sem o humor do espanhol. Fassbinder, como Pasolini, sempre foi um mestre da observação detalhada da crueldade entre os humanos, de como o amor se torna um jogo de poder e dominação.
Die bitteren Tränen der Petra von Kant {As lágrimas amargas de Petra von Kant} (1972), de Rainer Werner Fassbinder
A importância do papel desempenhado por Rainer Werner Fassbinder na Alemanha das décadas de 60 - 80 é inestimável, talvez comparável apenas à influência de Joseph Beuys, dois dos intelectuais e figuras públicas mais fascinantes do país naquele período. Sua coragem em atacar as hipocrisias nacionais, sem medo de ofender a direita ou a esquerda, só pode ser comparada na literatura e cinema da Europa do pós-guerra à coragem de outro intelectual homossexual, o italiano Pier Paolo Pasolini.
O motivo desta postagem na verdade é que assisti, há uma semana e com meus queridos amigos Heinz Peter Knes e Jonas Lieder, a um dos filmes mais impressionantes e assustadores de Fassbinder, que me deixou com calafrios est-É-ticos e muitas perguntas. Trata-se do obscuro In einem Jahr mit 13 Monden {Em um ano com 13 luas} (1978), do mesmo ano em que Fassbinder filmaria com outros alemães o filme coletivo Deutschland im Herbst {Alemanha no outono}, que trata dos acontecimentos assustadores daquele ano, que culminariam com a morte misteriosa dos líderes da Facção do Exército Vermelho na prisão. A cena que mostro abaixo, do filme In einem Jahr mit 13 Monden, é bastante chocante, aviso aos leitores. Trata-se da história de um transexual alemão, o órfão Erwin Weishaupt, que se transforma em Elvira Weishaupt, interpretado de forma brilhante por Volker Spengler.
Cena de In einem Jahr mit 13 Monden {Em um ano com 13 luas} (1978), de Rainer Werner Fassbinder.
Passei os últimos dias pensando em Fassbinder, mestre eleito pessoal meu, em Pasolini, outro mestre, e comecei a me perguntar se havia alguém deste patamar no Brasil. Patamar é uma palavra difícil, pois não quero apenas fazer comparações de valor, e alguém poderia entender a pergunta desta forma. Digamos então, alguém com tal vigor em investigar a política e suas relações de poder, dominação, servidão, até mesmo nas relações entre os sexos e as sexualidades, alguém com tal agenda, de uma potência ética quase minimalista (ouso aqui este conceito), não em estilo, mas em denúncia e desmascaramento minucioso das filigranas sociais, não apenas por épicos messiânicos, de caráter nacional.
Serei ainda mais direto: não houve no Brasil do pós-guerra um intelectual homossexual deste calibre, do calibre de Fassbinder, de Pasolini, com um alcance e uma combatividade tão amplas. Compará-los com a figura brasileira que ocupou este espaço, o heterossexual Glauber Rocha, homem genial e que admiro muitíssimo, sempre propenso ao épico, ao descomunal, ao messiânico, mostra alguns detalhes importantes nas diferenças entre certas sensibilidades. Já sei... os amigos e colegas heterossexuais (são sempre eles que se incomodam com esta discussão) enviarão mensagens, dizendo que este debate é desimportante, que a sexualidade destes homens NADA (!!!) define em suas sensibilidades. Eles talvez estejam certos. Mas eu duvido.
Soube apenas hoje que a fotógrafa britânica Corinne Day faleceu no final do mês passado. Após lutar por alguns anos contra um tumor no cérebro, Day morreu em Londres, a 27 de agosto. Talvez uma das mais icônicas criadoras de imagens da década de 90 e ao mesmo tempo uma das mais obscuras, a imagem de Day está intimamente ligada à de Kate Moss. As duas tornaram-se famosas juntas, de certa forma. Foi uma sessão de Corinne Day com Kate Moss para a extinta revista The Face que lançaria e sedimentaria a carreira das duas. Moss, a deslumbrante (escrevam o que quiserem os cinquentões, com seus poemas que demonstram uma mentalidade poética e política equivalente à de um adolescente de 16 anos) tinha apenas 16 anos.
A fotógrafa foi bastante vilipendiada pela crítica, por criar imagens que passaram a ser vistas como o exemplo máximo do chamado heroin chic. O que posso dizer é o seguinte: como adolescente magricelo e acanhado, olhando ao redor e sentindo a pressão de uma sociedade que parecia valorizar apenas a beleza musculosa, foi liberador ver as fotos de Corinne Day, que para mim queriam apenas dizer que estava tudo bem, eu podia ser magricelo, pálido, desengonçado, esquisito, raquítico, fora do padrão. Eu não precisava de bíceps avantajados para sentir-me bem no meu próprio corpo. Além disso, cansado como eu mais tarde estava daquela coisa bem comportada dos poetas da década de 90, tão respeitosos dos mais velhos, tão preocupados com o sublime e a Beleza com aquele gigantesco B maiusculíssimo, eu encontraria em fotógrafos do pós-guerra como Lisette Model e Diane Arbus, os da década de 70, como Nan Goldin, Nobuyoshi Araki e Walter Pfeiffer, assim como seus seguidores da década de 90, Corinne Day, Wolfgang Tillmans, Heinz Peter Knes, Jack Pierson, etc., aquela saúde de quem queria a beleza, mas sem mascarar o que havia de grotesco (uso este último adjetivo com o maior respeito, respeito bakhtiniano), daqueles que queriam SIM subir aos céus, mas não estavam dispostos a esconder suas secreções corporais, ou fingir que elas não existiam. É isso o que eu via nas fotos de Corinne Day e alguns de seus companheiros de geração ou seus mestres, mas, para o mundo dos limpinhos, parecendo querer fingir que não possuem um ânus entre os glúteos, tratava-se de mera celebração da degradação. Para eles, o "grotesco" era algo a ser evitado a qualquer custo. Eu não tenho vergonha de escorrer em líquidos, minhas secreções não me degradam. Meu interesse por estes fotógrafos era o mesmo que me levava à leitura de Wittgenstein, e a buscar poetas fora do Rol dos Escolhidos da década de 90 (os sequinhos-contidos-econômicos), encontrando os impulsos de saúde úmida que buscava na brasileira Hilda Hilst, na argentina Susana Thénon, no americano Frank O´Hara, no alemão Rolf Dieter Brinkmann, no francês Emmanuel Hocquard, etc. Daí minha obsessão com o corpo (grotesco) e todas as suas secreções em um livro como Carta aos anfíbios (2005). Daí minha eleição de Murilo Mendes como mestre. Meu amor por Arthur Bispo do Rosário, por Lygia Clark, por José Leonilson, por Félix González-Torres. Por Corinne Day. Descanse em paz, moça.
O Moço e eu fizemos nossa peregrinação semanal ao cinema e vimos um filme que estava em cartaz há algumas semanas em Berlim, mas a que ainda não tínhamos tido a chance de assistir, apesar do menino muito bonito no cartaz nos chamar sempre a atenção. O filme se chama Unmade Beds (2008), do diretor Alexis Dos Santos, mas na Alemanha resolveram chamá-lo bobamente de London Nights.
Acho que desde Juno (2008) eu não ouvia uma trilha sonora tão legal. A comparação é óbvia, na verdade, já que Alexis Dos Santos também recorreu, entre outras bandas subterrâneas de Londres, às canções lindamente esquisitas e acanhadas da Kymia Dawson, como esta "I´m Fine", com um daqueles textos tipicamente ensandecidos da americana, em que ela consegue unir Liza Minnelli, Milli Vanilli e os Thundercats.
I´m fine Kymia Dawson
Sally Monelli met Milli Vanilli They all got real sick And ran for hillbillies And Beverly Cleary told me a story Now I honk for Beezus in all of her glory
Jesus he came and turned water to wine I turned it back and now everything's fine Except for the fact that i lost my friend But the ends justify the means in the end
And I am fine, I'm fine, I'm fine
Double entendres get lost in the tundra Sometimes I'm Lion-o, sometimes I'm Mumra Sometimes it's clear and sometimes I don't understand And I get all wrapped up in the obsessive genes My hand me down mother burst at the seams And it's no wonder that year after year Little Fred savagely drove me to tears
And I am fine, I'm fine, I'm fine
Milli Vanilli met Liza Minnelli They got really giddy acted all silly Sang me a song i didn't understand And I started to fly in slow motion Flew to the bottom unplugged the ocean Embossed and frosted and toasted and tanned With your cock on my sleeve, my heart in your hand
And I am fine, I'm fine, I'm fine
Sally Monelli and Milli Vanilli And Liza Minnelli, Slaviter Maleeni Alyssa Milano, Vanessa Minnillo All live together under my pillow
Oliver Roberts e eu atualizamos hoje nossa HILDA MAGAZINE, com uma página para a escultora sonora e poeta vocal norte-americana LESLEY FLANIGAN.
Lesley Flanigan
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Além de Flanigan, acrescentamos o vídeo para a faixa "Kuku" à página dedicada ao músico alemão ULI BUDER, mais conhecido como AKIA.
Uli Buder a.k.a. Akia
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À página da fotógrafa brasileira ADELAIDE IVÁNOVA, acrescentamos o vídeo de sua instalação "100 Men" (2010).
Adelaide Ivánova
Creio que já mostrei alguns destes trabalhos por aqui, mas na Hilda você ainda encontra outras surpresas. Na semana que vem, publicaremos uma entrevista-em-vídeo exclusiva com o romancista e poeta norte-americano DENNIS COOPER (n. 1953), que vive há muitos anos em Paris, autor de romances como os recentes My Loose Thread (2002), The Sluts (2004) e God Jr. (2005), além das coletâneas de poemas The Terror of Earrings (1973), Tenderness of the Wolves (1981) e seu mais recente The Weaklings (2008).
Dennis Cooper
Para a ocasião, traduzirei um de seus poemas para o português, para uma postagem conjunta entre a Modo de Usar & Co. e a Hilda Magazine.
Hoje à noite, discoteco na SHADE inc. Nosso convidado especial esta semana é Black Cracker.
(Black Cracker, apresentando-se aqui com o projeto GRAND PIANORAMAX)
Black Cracker
Apresentam-se ainda os alemães Uli Buder e Armin von Milch.
Cá estava eu, preparando papéis para mil departamentos e ministérios e repartições alemãs, naquela vida de residente estrangeiro que precisa, de tempos em tempos, enfrentar a burocracia que faz com que se entenda na pele o que o adjetivo kafkiano pode significar, meteco a meter-se entre motins, quando alguém menciona, numa destas comunidades eletrônicas em que geralmente se repartem meras notícias de almoços e fodanças, o nome de um poeta de que você não se lembra de algum dia ter ouvido falar, e então o segue, mais uma vez pela rede eletrônica de informações verdadeiras, falsas, até pousar numa página com o poema abaixo, que doravante o ilumina, ao menos pelo resto do dia burocrático, e o qual você escolhe compartilhar com seus amigos visíveis, invisíveis, conhecidos ou não, para que eles também possam talvez sorrir por um segundo no dia de vitórias e fracassos.
O Poeta em Lisboa
Quatro horas da tarde. O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos. Tem febre. Arde. E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.
Segue por esta, por aquela rua sem pressa de chegar seja onde for. Pára. Continua. E olha a multidão, suavemente, com horror.
Entra no café. Abre um livro fantástico, impossível. Mas não lê. Trabalha - numa música secreta, inaudível.
Pede um cigarro. Fuma. Labaredas loucas saem-lhe da garganta. Da bruma espreita-o uma mulher nua, branca, branca.
Fuma mais. Outra vez. E atira um braço decepado para a mesa. Não pensa no fim do mês. A noite é a sua única certeza.
Sai de novo para o mundo. Fechada à chave a humanidade janta. Livre, vagabundo dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.
Sonâmbulo, magnífico segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado. Um luar terrífico vela o seu passo transtornado.
Seis da madrugada. A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa. Defende-se à dentada da vida proletária, aristocrática, burguesa.
Febre alta, violenta e dois olhos terríveis, extraordinários, belos. Fiel, atenta a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.
O autor argentino Cristian De Nápoli, ótimo poeta e um dos tradutores da literatura brasileira mais ativos em seu país, apresenta-se amanhã, ao lado dos conterrâneos Violeta Canggianelli e Javier Galarza no projeto Terças Poéticas, em Belo Horizonte. Escrevi sobre Cristian De Nápoli para a Modo de Usar & Co., e traduzi parte de seu poemário Palitos de água, publicado mais tarde pela Dulcineia Catadora. Se você estiver em Belo Horizonte, não perca a oportunidade de ouvir bons autores da nova poesia argentina.
NOTA: Antes de reproduzir aqui meu artigo sobre a poesia do argentino Mariano Blatt, publicado na Modo de Usar & Co., assim como minhas traduções para sete poemas seus, pareceu-me necessário fazer uma pequena advertência, para impedir aquelas usuais ofensas desnecessárias. Não sei se o problema que gostaria de evitar se estende a muitos outros países, mas sei que no Brasil, com sua frequente obsessão pela eleição de um único e idolatrado "Grande Poeta Nacional", ele se torna algo eminente. Pois por vezes basta que se elogie ou discuta um poeta, para que alguns espíritos acreditem que se está a preconizar aquelas características ou estilo como ÚNICO ou MELHOR, como se cada crítica não passasse de um formulário de admissão no CÂNONE, esta coisa que mais nos atrapalha que ajuda (em minha opinião). Na verdade, faz algum tempo que ando querendo escrever sobre estes dois conceitos complicadíssimos e escorregadios, o de cânone (que vem do vocabulário religioso) e o de vanguarda (que vem do vocabulário militar), mas este não será o espaço para isso. A característica da poesia de Mariano Blatt que me parece uma alegria seria muito saudável se considerada com mais calma por muitos poetas brasileiros, mas não estou tentando insinuar que todos devessem escrever assim. Eu próprio, na gigantesca maioria de meus poemas (como vocês verão ao lerem os poemas de Blatt), estou longinquamente distante de possuir sequer sombra deste candor que identifico nele. Há hoje no Brasil muitos poetas em atividade que aprecio muito, alguns deles incrivelmente diferentes entre si. Poderia mencionar aqui, a mero título de exemplo, Angélica Freitas e Érico Nogueira, passando pelos trabalhos de Juliana Krapp ou Dirceu Villa; mas não se trata de canonização, mas da coisa feliz que é aquilo que Gertrude Stein chamava de (algo assim como) "alegria de possuir contemporâneos", ou de que "nossos contemporâneos sejam realmente nossos contemporâneos". Assim dito, eis que:
Os poemas de Mariano Blatt e seu candor saudável
Mariano Blatt nasceu em Buenos Aires, em 1983. Além de textos esparsos editados em revistas e plaquetas, publicou a coletânea Increíble (2007), sua estreia, seguida de Pibe de Oro (2009). Com Damián Ríos, Mariano Blatt fundou em 2006 a pequena editora Recursos Editoriales. O poeta vive e trabalha em Buenos Aires.
Diga a meu avô
diga a meu avô que os nazistas partiram mas diga-lhe também que agora explodem bombas longínquas e caem nos campos loiros entre os milhos. diga-lhe que os vermelhos abandonaram a cidade e ningué crê que hão de voltar. em suma diga-lhe que o zoológico está vazio ou pergunte-lhe se se lembra da angústia do espaço reduzido.
Mariano Blatt, tradução de Ricardo Domeneck
Dile a mi abuelo : dile a mi abuelo / que los nazis se han retirado / pero dile también / que estallan ahora bombas lejanas / y caen en los campos / rubios entre el maíz. / dile que los rojos / abandonaron la ciudad / y nadie creé / que vayan a volver. / a lo sumo dile / que el zoológico está vacío / o pregúntale si aun recuerda / la angustia del espacio reducido.
Em sua aparente simplicidade, marcada pela escrita como notação da língua falada, Mariano Blatt compõe seus poemas com várias técnicas e figuras ligadas à poética oral, como a paranomásia, a onomatopeia, e aquilo que já foi chamado de enumeração caótica como característica marcante de certa poesia moderna, além do uso da prosopopeia, e de uma espécie de anáfora intermitente, recorrendo a repetições de versos que se espraiam pelo texto, gerando sua carga poética a partir de certo deslocamento do coloquial, mesclando registros. Muito disso poderíamos remontar ao trabalho de bardos celtas medievais como Taliesin, e dos praticantes da chamada Spruchdichtung germânica, também medieval. Entre os poetas contemporâneos que tenho lido, Blatt é certamente um dos autores mais diretos em sua enduring emotion, parafraseando Pound, que se sustém de maneira tão firme, e é o menos livresco dos poetas em atividade na América Latina, especialmente em tempos de hipertrofia do uso da chamada intertextualidade e certo abuso no saque da autoridade poética alheia em nome do uso de referências literárias. É aqui que eu gostaria de discutir a característica de sua poesia que mais me alegra.
§
Ser a raiva do dobermann
ser a raiva do dobermann que busca com seu focinho a presa fácil esconderijo porque nos sabemos sem perfume. (ou ser a evidência destas mudanças de sensibilidade ao largo da história).
Mariano Blatt, tradução de Ricardo Domeneck
Ser la rabia del dóberman: ser la rabia del dóberman / que busca con su hocico la presa / fácil esconderse porque uno se sabe / falto de perfume. (o ser la evidencia / de estos cambios de sensibilidad / a lo largo de la historia).
Pensei algum tempo em como poderia nomear ou tentar conceituar esta característica da poesia de Blatt, e a palavra que constantemente voltava à minha cabeça era candor. No entanto, eu sabia que para certa sensibilidade contemporânea, algo cínica, isso poderia ser facilmente mal-interpretado. É por isso que tentarei me esforçar um pouco para explicar o que quero dizer com este candor poético que afirmo alegrar-me muito ao ler os textos deste jovem poeta, uma característica que me parece tão saudável e exemplar. Aqui, gostaria de mencionar certa passagem do clássico de Alexis de Tocqueville, Democracia na América (1835/1840), muito discutida por críticos literários norte-americanos. Discutindo as possibilidades críticas da poesia no “Novo Mundo”, Tocqueville escreveu: “Entre povos democráticos, a poesia não será alimentada por lendas ou os monumentos de velhas tradições. Faltam-lhes todos estes recursos; mas permanece o Homem, e o poeta de nada mais precisa. Os destinos da humanidade, o próprio homem extirpado de seu país e de sua época e de pé na presença da Natureza e de Deus, com suas paixões, suas dúvidas, seus raros sucessos e sua miséria inconcebível, estes se tornarão o principal, se não o único tema da poesia entre estas nações.”
Os textos de Mariano Blatt nascem exclusivamente de sua vivência, compostos então com todas as técnicas disponibilizadas pela tradição oral, mas mantendo um frescor invejável que só se obtém ao saber caminhar na corda-bamba que é a fronteira entre o falado e o escrito, entre o que eu ousaria chamar de artifícios da fala dita natural e a natureza poética dos artifícios literários. É poesia de uma linhagem que já chamei de pós-bárdica, de uma poética que anseia pelo oral e submete-se ao escrito como registro digno de sua origem, de uma nova Spruchdichtung, ou, como quer Chacal, de uma poesia falada, talvez. Não há nem sombra da tentativa de saquear a “autoridade” poética de nomes consagrados pela emulação ou citação. É a sensibilidade do poeta que legitima sua escrita, não a tentativa de enquadrar-se em qualquer linhagem da tradição. É poesia que nasce de uma experiência corporal, e que melhor manifesta-se quando também corpORALIZADA, para usarmos a expressão de Ricardo Aleixo. É poesia, portanto, que busca o teso, feita para gargantas eretas. O que não quer dizer que sua poesia seja órfã ou desligada da tradição. Em sua sensibilidade contemporânea, liga-se, eu ouso dizer, à poesia telúrica de Catulo, em seu borrar da linha entre arte e vida, referindo-se por nome a seus amigos, seus/suas amantes, fincada no existir em uma cidade específica, Roma, com sua política e vadiagem. Mas sabemos que Catulo estava trabalhando dentro das formas preditas pela poesia clássica, a de Safo especialmente, e da cultura helenística de poetas como Calímaco. A poesia de Mariano Blatt, em sua insistência por uma escrita oralizável, se assemelha mais aos poetas medievais que trabalhavam dentro de formas dadas pela tradição oral, como por exemplo da poesia árabe, e de tradições locais, como a dos bardos celtas dos séculos V ao IX, os já mencionados Taliesin e Aneirin entre os mais famosos; poetas germânicos ligados à Spruchdichtung, como Spervogel (floruit circa 1170), distintos da tradição do Minnesang, e que tem marcas que creio ver sobreviver até poetas como Bertolt Brecht (1898 – 1956), passando por Heinrich Heine (1797 – 1856) --- a coincidência entre as datas de nascimento e morte marcando apenas mais uma das grandes semelhanças entre estes dois poetas; e chegando ao século XX ainda em poetas como o francês Pierre Albert-Birot, e os autores norte-americanos da chamada Escola de Nova Iorque, como Frank O´Hara e John Ashbery, sem mencionar poetas como Allen Ginsberg e Gregory Corso. Não é uma prática tão comum no Brasil. Poetas como Manuel Bandeira, entre os modernistas, e Angélica Freitas entre os contemporâneos, têm uma carga poética muito mais agridoce, digamos, distinta da sensibilidade francamente celebratória de Mariano Blatt, sempre propenso à ode, como Frank O`Hara antes dele. Um poema maravilhoso como "Cântico dos cânticos para flauta e violão" (1945), de Oswald de Andrade, seria o melhor exemplo desta sensibilidade no Brasil. Dito tudo isso, é hora de deixá-los com os poemas saudáveis, no melhor sentido da expressão, de Mariano Blatt.
--- Ricardo Domeneck
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NOTA: O tradutor agradece a André Costa pela revisão das traduções, com várias correções e sugestões.
POEMAS DE MARIANO BLATT
Aqui está tudo bem
aqui está tudo bem quando termine o inverno e a primavera chegue logo mas depois do vinte-e-um e as saudações já abertos os presentes se os houver então antes do verão quero que a gente se vá do campo quero as tardes procurando a possibilidade nossas mentes espairecidas e chamar a isso de saúde que de manhã faça frio e tardemos nossa partida sob os lençóis entre jogos especifiquemos quem há de preparar o café ou evitemos falar de como a vida de um na vida do outro aos domingos o rádio informe os resultados, que você durma e eu perca os olhares mesmo atento siga a mudança de intensidade na história: quando se acelerar a fala em suspenso ficarei em meio a erguer-me pronto para saltar da cadeira e se assim requer-se o fim da jogada com punho cerrado gritar gol e se continua seu sono que eu saia então para caminhar para descobrir que isso que dói não é o pássaro mas o ruído de romper-se que faz seu bico ao cravar-se na terra com toda essa violência da queda não anunciada ao voltar de sua excursão ao vilarejo me flagre debruçado no meu caderno deixe as sacolas num canto e proponha que eu escreva algo sobre a coca com gás a posição que ocupa diga a posição que ocupa nas nossas vidas acharemos talvez solução para isto que hoje em dia costumam chamar de relação estável? alguém a dizer terminaram as férias?
(tradução de Ricardo Domeneck)
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Aquí está todo bien Mariano Blatt
aquí está todo bien cuando acabe el invierno y la primavera llegue pronto pero pasado el veintiuno y sus saludos abiertos ya los regalos cuando los haya entonces antes del verano quiero que nos vayamos del campo quiero las tardes buscando la posibilidad nuestras mentes despejadas y a eso llamar salud por la mañana haga frío demoremos nuestra salida bajo las sábanas entre juegos definamos a quién le toca preparar el café o evitemos hablar de cómo la vida de uno en la vida del otro el domingo la radio anuncie resultados, vos duermas y yo la mirada pierda aunque atento siga el cambio de intensidad en el relato: cuando el hablar se acelere en suspenso quedaré a medio levantarme preparado para saltar de la silla y si así lo requiere el final de la jugada con puño apretado gritar gol y si sigue tu siesta entonces yo salga a caminar para descubrir esto que duele no es el pájaro sino el ruido a roto que hace su pico al clavarse en la tierra con toda esa violencia de la caída no anunciada al volver de tu excursión al pueblo me descubras sobre mi cuaderno a un costado dejes las bolsas y propongas que yo escriba algo sobre la gaseosa cola el lugar que ocupa digas el lugar que ocupa en estas nuestras vidas ¿hallaremos tal vez solución a esto que hoy aquí suele llamarse estabilidad de pareja? ¿quién diga esta vacación ha concluido?
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Kevin
Saio de mobilete a comprar pão são como dez da manhã assim que penso um pouco em deus assim que penso um pouco em Kevin paro na praça e aperto a mão dos garotos bebo mate perguntam o que rola estou pensando em Kevin digo ah não vou comprar pão me confundi haha pau qualquer coisa Kevin me sorri Kevin te sorrio ligo a mobilete são como dez e trinta compro pão e volto para o bairro vejo Kevin junto de um alambrado então rua de pinheiros passo por uma vaca me saúda a saúdo dez e quarenta o sol é meu amigo pau pneu furado que sorte olho para trás Kevin vem a cavalo me saúda o saúdo ele desce falo com o cavalo Kevin diz está furado você tem pão? daí dou-lhe pão sentamo-nos à sombra a sombra também é minha amiga vem uma galinha me saúda a saúdo daí lhe dou pão pau tira um fino do bolso digo-lhe galinha você é legal me diz obrigada pão dos bons Kevin me sorri Kevin te sorrio dez e cinquenta e cinco se faz o fogo passa a vaca vem o cavalo passam os garotos não ficam dez da manhã de novo generoso o tempo corre para trás o tempo também é meu amigo cresce o mato movem-se as nuvens Kevin é meu amigo digo-lhe gosto do seu cabelo ele diz gosto dos seus olhos tiro sua camisa vai-se a vaca vai-se o cavalo dez e trinta vai-se a galinha legal tira minha camisa desamarra meu sapato cresce o mato movem-se as nuvens Kevin me sorri Kevin te sorrio tira seus sapato me diz vou trocá-los quanto você calça pau como pão ponho o sapato de meu amigo gosto de sua jaqueta gosto de seu cavalo dez e quinze o sol é meu amigo cresce o mato movem-se as nuvens nasce um deus chove no vilarejo vejo Kevin encostado num alambrado falo com deus diz-me siga assim siga assado deus é meu amigo este bairro é meu namorado uma estrada de terra me abraça esta manhã volto empurrando a moto Kevin me sorri somos amigos gosto de seu cabelo vira duas esquinas antes viro duas esquinas depois obrigado pelo sapato me diz obrigado por seu cabelo lhe digo
(tradução de Ricardo Domeneck)
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Kevin Mariano Blatt
Voy en motito a comprar pan son como las diez de la mañá tal que pienso un poco en dios tal que pienso un poco en Kevin paro en la plaza y saludo de manos con los chicos tomo mate me preguntan qué hacés pienso en Kevin digo ah no compro pan me confundí ja pum cualquiera Kevin me sonríe Kevin te sonrío enciendo la moto son como las diez treinta compro pan y en regreso al barrio veo a Kevin junto a un alambrado luego camino de pinos se me cruza una vaca me saluda la saludo diez cuarenta el sol es mi amigo pum pincho goma qué fortuna miro para atrás viene Kevin a caballo me saluda lo saludo se baja hablo con el caballo Kevin dice está pinchada ¿tenés pan? tuc le doy pan nos sentamos a la sombra la sombra también es mi amiga viene una gallina me saluda la saludo tuc le doy pan pum saca un finito del bolsillo le digo gallina sos copada me dice gracias buen pan Kevin me sonríe Kevin te sonrío diez cincuenta y cinco se arma fogata pasa la vaca viene el caballo pasan los chicos no se quedan diez de la mañá de nuevo buenísimo el tiempo corre para atrás el tiempo también es mi amigo crece el pasto se mueven las nubes Kevin es mi amigo le digo me gusta tu pelo me dice me gustan tus ojos le saco la remera se va la vaca se va el caballo diez treinta se va la gallina copada me saca la remera me desata las zapatillas crece el pasto se mueven las nubes Kevin me sonríe Kevin te sonrío se saca las zapatillas me dice te las cambio cuánto calzás pum como pan me pongo las zapas de mi amigo me gusta tu campera me gusta tu caballo diez y cuarto el sol es mi amigo crece el pasto se mueven las nubes nace un dios llueve en el pueblo veo a Kevin contra un alambrado hablo con dios me dice seguí así seguí asá dios es mi amigo este barrio es mi novio un camino de tierra me abraza esta mañana vuelvo arrastrando la moto Kevin se me ríe somos amigos me gusta su pelo dobla dos cuadras antes doblo dos cuadras después gracias por las zapas me dice gracias por tu pelo le digo.
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Cercar com os dedos teu tornozelo
cercar com os dedos teu tornozelo ah, teu capuz e o espaço perfeito entre a nuca onde a mão descansa quando com frio busca o refúgio em teu capuz. Ah, este espaço perfeito ou como quem diz a residência que se forma entre teu capuz e tua nuca mobiliada com o cabelo que sempre é ainda mais lindo se não está lavado. Ah, minha voz se quebra quando minha mão se lembra deste descanso perfeito dentro de teu capuz. Ah, sim, teu capuz. Uma camiseta rosa velha e de mangas curtas no peito a inscrição seven up com seu logotipo a gola redonda mastigada em provas, domingos esperas, dias de sol quando vestias esta camiseta rosa da seven up mas agora seria quase como vestir-te a ti de novo e sabemos que é às vezes melhor a garrafa de sprite. Às vezes creio que os beatles já disseram tudo mas então vejo um menino com blusa dos ramones e sei que os beatles não me falaram disto e diz que se eu quisesse ele rasparia a cabeça mas não lhe cai bem como esse menino com a camiseta dos ramones que no masp me dava as costas nem a hora combinamos de fazer camisetas e nos jogarmos no chão um sábado à tarde qualquer
(tradução de Ricardo Domeneck)
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Cerrar la mano alrededor de tu tobillo Mariano Blatt
cerrar la mano alrededor de tu tobillo ah, tu capucha y el espacio perfecto entre la nuca donde descansa la mano cuando enfríada busca el refugio en tu capucha. ah, ese espacio perfecto o como quien dice la habitación que se forma entre tu capucha y tu nuca amueblada con el pelo que siempre tanto más lindo es si no está lavado. ah, la voz se me quiebra cuando mi mano recuerda ese descanso perfecto dentro de tu capucha. ah sí, tu capucha. una remera rosa gastada y mangas cortas en el pecho la inscripción seven up con su loguito el cuello redondo comido en exámenes, domingos esperas, días de sol cuando usaba esa remera rosa de seven up pero ahora sería casi como usarte a vos de nuevo y sabemos a veces mejor la botellita de sprite. a veces creo los beatles ya lo dijeron todo pero entonces veo a un chico con buzo de ramones y sé los beatles de eso no me hablaron y él dice que si quiero se rapa pero no le queda bien como ese chico con la remera de ramones que en el malba me daba la espalda ni la hora dijimos de hacernos remeras y tirarnos en el suelo un sábado a la tarde cualquiera
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Jamais sentiu a brisa marinha?
Eu a persigo talvez seja isso tudo o que faço mesmo que aparente outra coisa jamais a sentiu mas já distanciada do mar? Este ir tarde a tarde ao parque perseguindo o cheiro do sal pretendendo imaginar a profunda escuridão do centro do oceano ou a calma incessante do horizonte no meio da tarde. Soube aproximar-me da sabedoria da brisa marinha: se comove é pela carga de memória que em sua imaterialidade transporta. O mar parece acumulação inabarcável mas sua brisa é mais ainda. Não se pode esquecer um homem parado às margens do mar em uma praia semideserta molha seus pés ao ritmo da maré mas respirará fundo e conterá o ar em seu interior para experimentar as verdadeiras férias. Ou mesmo uma mulher que cai de joelhos na areia úmida e jurará nesta mesma noite a experiência de certo sentimento uma completude consumada ao perceber a mudança repentina na direção do vento
(tradução de Ricardo Domeneck)
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¿no sentiste nunca la brisa del mar? Mariano Blatt
yo la persigo quizás eso es todo lo que hago aunque aparente otra cosa ¿no la sentiste nunca pero ya alejada del mar? este ir tarde a tarde en el parque persiguiendo el aroma de la sal intentando imaginar la profunda oscuridad del centro del océano o la calma incesante del horizonte a media tarde. supe acercarme a la sabiduría de la brisa del mar: si conmueve es por la carga de memoria que en su inmaterialidad transporta. el mar parece acumulación inabarcable pero su brisa lo es más. no hay que olvidar un hombre parado a orillas del mar en una playa semidesierta moja sus pies al ritmo de la marea pero respirará profundo y contendrá el aire en su interior para experimentar la auténtica vacación. o mismo una mujer que cae arrodillada en la arena húmeda y jurará esa misma noche la experiencia de determinado sentimiento una completud acabada al percibir el cambio repentino en la dirección del viento.
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as cerejas
desci para comprar cervejas e cerejas mas no caminho comi as cerejas bebi a cerveja a agora meio que me dói a cabeça. entrei em silêncio com sorte você dormia recostado na poltrona sem roupas ou apenas coberto. pensei que se entrasse em silêncio não acordaria então eu esconderia minha dor de cabeça mas para minha surpresa quando entrei não dormia não quando entrei você me doía. olhou as sacolas “aqui não tem cerveja, não tem cerejas e você está com cara de dor de cabeça” disse parado sem roupas contra a cozinha onde você cozinhava presunto cozido. Pedi desculpas não aceitou pedi a hora eram nove. voltou à cozinha sem roupas para ver como estava o presunto cozido para ver o que aconteceria se me ignorasse. fiquei no quarto com as sacolas vazias nas mãos o olhar perdido na tevê ligada alguém jogava futebol por dinheiro. sem roupas você voltou da cozinha me abraçou e me disse “está pronto o presunto”. na boca beijei você pedi desculpas não aceitou pedi a hora eram nove e dez. descemos juntos para comprar cerveja para comprar cerejas. eu tomei a cerveja você comeu as cerejas. pedi desculpas não aceitou beijei você na boca e meu beijo teve o sabor amargo da cerveja e o teu o sabor doce das cerejas.
(tradução de Ricardo Domeneck)
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las cerezas Mariano Blatt
bajé a comprar cervezas y cerezas pero en el camino me comí las cerezas me tomé la cerveza y ahora como que me duele la cabeza. entré en silencio a lo mejor dormías recostado en el sillón desnudo o apenas tapado. pensé que si entraba en silencio no despertarías entonces yo mi dolor de cabeza escondería pero para mi sorpresa cuando entré no dormías no cuando entré me dolías. miraste las bolsas “acá no hay cerveza, no hay cerezas y vos tenés cara de que te duele la cabeza” dijiste parado desnudo contra la cocina donde cocinabas jamón cocido. te pedí disculpas no me las diste te pedí la hora eran las nueve. volviste a la cocina desnudo para ver cómo estaba el jamón cocido para ver qué pasaba si no me hablabas. me quedé en el cuarto con bolsas vacías en las manos la mirada perdida en la tele prendida por plata alguien jugaba al fútbol. desnudo volviste de la cocina me abrazaste y me dijiste “el jamón cocido ya está”. en la boca te di un beso te pedí disculpas no me las diste te pedí la hora eran las nueve y diez. bajamos juntos a comprar cerveza a comprar cerezas. yo me tomé la cerveza vos te comiste las cerezas. te pedí disculpas no me las diste te besé en la boca y mi beso tuvo el sabor amargo de la cerveza y el tuyo el saber dulce de las cerezas.
Texto em que o poeta sente-se impelido a dizer a Jannis Birsner em Zurique o que Frank O´Hara quis dizer a Vincent Warren em Nova Iorque
.............. "which is not going to go wasted on me which is why I’m telling you about it" ........................................................... Frank O´Hara, Having a coke with you
Caminhar com você por Zurique num domingo de chuva e com fome é tão melhor que um dia qualquer de sol algures, com outros ou hipernutrido, talvez porque você pareça insistir neste aspecto empírico de quem está a aquecer o planeta, derretendo inconsequente todas as calotas polares como se fosse o pulôver de mil avós ou apenas porventura o plural do substantivo “sol”,
talvez ainda porque ali andemos até ao acaso dar de cara e ancas com a estátua de Marino Marini mencionada no poema de O´Hara, ou, esquecendo por completo DADA por estar mais atento à sua bunda, surpreender-me como se fora 1916 ao adentrar a Spiegelgasse e passar todo casual e causal pelo prédio que abrigou o Cabaret Voltaire, o que então visitamos espantadíssimos para descobri-lo mera loja de souvenirs, e nem o “Karawane” de Hugo Ball ou a caravana de axilas dos turistas ao redor
me distraem do seu nariz e nuca, pois é tão Júpiter você, moço, enquanto eu mero me regalo e contento em órbita irregular como uma sua lua, Temisto ou certa Carpo, e visito seu rosto com o zelo e o temor de carteiros obrigados a seguirem suas rondas de entrega das cartas mesmo após uma noite de bombardeios para talvez encontrarem não endereços, mas escombros,
e eu penso tudo isso mas nada digo pois você detesta declarações públicas, destarte escrevo este texto na língua de que nem sílaba você domina, esta língua que é meu sistema de signos e também com o que o lambo, língua em que “vontade” é-me ao mesmo tempo aquilo que impera e aquilo que implora.
(Poema iniciado na cabeça em Zurique, terminado no papel em Berlim, agosto de 2010)
Acordei ontem, pensei: "Vou lugar para Adelaide, tomar café da manhã em rebordosa ressaca no parque". Mas então me lembrei... Adelaide já não mais habita terras berlinosas. Após passar três meses aqui no Berlimbo, Adelaide Ivánova voltou ontem para São Paulo. Foi muito bom ter alguém tão almodovarmente ensandecido quanto eu por perto. Volta, Adelaide. Vamos comer hummus no restaurante israelita, ou nos afogar em café preto no Weinbergspark. Nossas confissões dementes. Saudades, já.
Como despedida, deixo vocês com a nossa colaboração aqui no Berlimbo, sua instalação/projeção 100 Men (2010), para a qual preparei uma peça sonora irritante como nossas paixonites agudas.
100 men foi originalmente criado e apresentado por Adelaide Ivánova como uma instalação/projeção em Berlim, Alemanha, durante o evento SHADE inc, no clube Neue Berliner Initiative, a 18 de agosto de 2010. As fotos foram feitas entre 2002 e agosto de 2010, todas de autoria de Adelaide Ivánova. A instalação tem uma peça sonora de Ricardo Domeneck, feita especialmente para o trabalho, a partir da canção “Non, je ne regrette rien”, cantada por Edith Piaf. O editor de som foi Uli Buder.
Nós a conhecemos em um café berlinense, no início de 2006. Ela disse que fazia música, e então deu-nos uma demo. Quando escutamos sua canção "O Captain", bastou para sabermos que estávamos diante de talento invulgar, uma criatura realmente especial. Ela era completamente desconhecida, havia acabado de chegar a Berlim. Fazia mistério sobre suas origens. Sabíamos que tinha passaporte belga, mas a história é que Barbara nasceu em Ruanda, e, órfã, foi adotada por uma casal belga. Sua origem e seu destino são sua música. Nós a convidamos para tocar no primeiro aniversário de nosso projeto semanal, em março de 2006. Em 2007, mostrei duas canções suas na Hilda Magazine. Agora, anos depois, ela lança seu primeiro disco pelo selo Cityslang Records, produzida por ninguém menos que o gênio britânico Matthew Herbert. Hoje, ela apresenta seu álbum de estreia pela primeira vez no Berlin Festival, e então sai em turnê com o canadense Caribou, abrindo para ele. Estamos com muito orgulho de nossa amiga Barbara. Vai, Barbara, começa teu império.
Vocês, queridos leitores/ouvintes, prestem atenção nas palavras de Barbara Panther, ótima música, ótimo texto, trobairitz/griot é o que ela é.
(Barbara Panther, "Empire")
Conduzi esta entrevista com ela em 2006, na época em que eu era editor da revista Flasher.
(Barbara Panther, entrevistada por Ricardo Domeneck em Berlim, 2006)
Cheguei quase morto a Tel Aviv, após uma noite louquíssima em Berlim e muitos detectores de metais e outros sistemas de segurança de aeroporto. A discotecagem por aqui correu bem. Depois de descansar da maratona que me deixou acordado por 48 horas, passei hoje o dia andando com meu amigo Philipp, com a antologia de Yehuda Amichai na mochila. Em Berlim diziam-me que "Tel Aviv é a capital do hedonismo", o que me parecia algo bizarro, tratando-se de uma das maiores cidades de um país tão problemático como Israel. Três dias mais tarde, começo a entender o que queriam dizer. É quase impossível imaginar que este país está envolto em conflitos tão sangrentos ao caminhar pelas ruas de Tel Aviv, com aquele ar de modernidade salobra e enferrujada, lembrando as ruas de São Paulo ou Buenos Aires, ou caminhando pelo calçadão na orla do mar, como se este fosse o balneário mais pacífico do mundo. Está sendo uma experiência estonteante.
Preparei esta paráfrase para a Modo de Usar & Co. de um dos poemas de Yehuda Amichai que mais me tocaram, chamado "Judeus na terra de Israel".
Judeus na terra de Israel Yehuda Amichai, paráfrase de Ricardo Domeneck
Nós nos esquecemos de onde viemos. Nossos nomes judaicos do Exílio nos denunciam, trazem de volta a memória de flores e frutos, vilas medievais, metais, cavaleiros que viraram pedra, rosas, temperos cujo perfume dissipou-se, pedras preciosas, muito rubro, artesanatos já extintos no mundo (as mãos também extintas).
A circuncisão causa-nos isso, como no relato bíblico de Siquém e os filhos de Jacó, para que sigamos com dor pelo resto de nossas vidas.
O que estamos fazendo, voltando a esta terra com tal dor? Nossos desejos foram drenados junto com os pântanos, o deserto se nos floresce, e nossos filhos são lindos. Mesmo os destroços de navios que afundaram a caminho chegam a estas praias, mesmo ventos chegaram. Mas não todas as velas.
O que estamos fazendo nesta terra escura com suas sombras amarelas que perfuram os olhos? (De vez quando alguém diz, mesmo após quarenta ou cinquenta anos: "Este sol está me matando.")
O que estamos fazendo com estas almas de névoa, com estes nomes, com nossos olhos de floresta, com nossos filhos lindos, com nosso sangue veloz?
Sangue derramado não serve de raiz para árvores mas é o mais próximo que temos por raízes.
Yehuda Amichai nasceu em Würzburg, Alemanha, em 1924, em uma família judia ortodoxa. Com a ascensão nazista ao poder, a família de Amichai emigra para a Palestina. O poeta adolescente tinha 12 anos. Em 1936, a família fixa residência em Jerusalém, que Yehuda Amichai passaria a chamar de "minha cidade". Durante a segunda Guerra, Amichai luta com os ingleses na Brigada Judia do Exército Britânico. No entanto, ao voltar para a Palestina passa então a lutar contra os britânicos na Guerra de Independência de 1948. Após a Guerra, o poeta estuda Literatura Hebraica na Universidade de Jerusalém e passa a lecionar mais tarde em Haifa.
Yehuda Amichai é considerado um dos primeiros a usar a linguagem hebraica coloquial em poesia, e sua estreia viria em 1955, com o volume intitulado (algo como) Agora e em Outros Dias. Advogando a divisão pacífica da terra, ele seria convocado ainda para duas guerras: A Guerra do Sinai (1956) e a Guerra de Yom Kippur (1973). Talvez o mais famoso poeta israelense moderno, publicou mais de 15 livros. O poeta morreu de câncer em 2000, celebrado como um dos maiores autores do país.
Discoteco em Berlim agora à noite desta quarta-feira em nossa SHADE inc até por volta das 5 da matina, e então corro para o aeroporto e embarco para Tel Aviv, onde discoteco amanhã à noite, quinta-feira, no clube Barzilay. Passo o fim-de-semana em Israel, onde descansarei sonos e sóis merecidos, voltando para a Alemanha na segunda-feira. Estou exausto. As últimas semanas foram muito corridas. Na mochila, levo livros dos poetas israelenses Iehuda Amichai, Dan Pagis e Lea Goldberg.
Convido os leitores a visitarem a HILDA MAGAZINE, relançada hoje com nova diagramação eletrônica e também nova postagem, com vídeo do poeta belga Antoine Wauters (Liège, 1981), lendo o poema-em-série que forma seu livro Debout sur la langue (2008), pelo qual ganhou em 2009 o Prêmio Émile Polak da Académie Royale de Langue et Littérature Françaises de Belgique. A página traz traduções minhas ao inglês para os dez primeiros fragmentos do poema. Além de Wauters, há todos os outros artistas que venho divulgando neste que é um dos meus projetos favoritos:
HILDA MAGAZINE, editada por Ricardo Domeneck e Oliver Roberts.