Nas palavras de
Miguel Martins, um dos poetas contemporâneos da língua que mais respeito:
"João Miguel Henriques é poeta. João Miguel Henriques é emigrante. (Dois motivos para termos pena dele). João Miguel Henriques bebe copos de 1920 como quem bebe copos de Carbo Sidral. João Miguel Henriques come púcaras de chanfana como quem come tacinhas de marshmallows. (Dois motivos para termos inveja dele)."
TEXTOS DE JOÃO MIGUEL HENRIQUES
Este é o meu corpo
disseste
buscar alento
como algo
para a boca
algum alimento
algo nosso
de cada dia
dado em dado momento
para a travessia
só que (lembras?)
nós não semeámos
nada lançámos ao vento
não madrugámos
nada colhemos
votámos a seara
ao esquecimento
e hoje nada há sobre a mesa
nada partido
e repartido
que não já o sentimento
§
Boa promessa
não tem de ser hoje não
nem mesmo amanhã
ou muito em breve
apenas que seja
que dê um dia
que um dia se dê
chamemos boa promessa
à vileza do adiamento
que as coisas boas vêm com o tempo
e só quem espera muito alcança
não tem pois de ser já
agora mesmo
ou mesmo para ontem
somente que seja
apenas que valha a pena
§
Tens o corpo a arder sobre a colina
tens o corpo a arder sobre a colina
esquecida da casa
da penumbra do quarto
alastras fogo
pelo bosque
como musgo
chamam-te chama
assinas labareda
e a um toque de tronco
incendeia-se o planeta
como lava perpétua
hás-de um dia enlevar-me nesse fogo
eu que pela orla do teu mato
há tanto me arrasto
morto de frio
§
Penumbra
concede o corpo à penumbra
arrisca um recatamento
diz que foi ela a deter-te no quarto
a toldar-te o discernimento
prepara a noite para o parto
§
Planetário
o mundo arde, amor
as árvores mergulham no rio
os homens fogem para dentro da terra
em covas escuras, para junto dos mortos
a palavra regressa à boca
a ideia à pedra
e nós, amor, já longe de tudo
adormecidos no planetário
§
Roteiro
lestos, farejantes
avançando na tua pegada
bordejamos o rio
na conquista do vale
levamos o vento pelo braço
a erva alta junto ao flanco
seguimos-te o passo
contornamos penedos
por entre saltos de lebre
sobre largos troncos caídos
subimos contigo uma colina
suspeitando à nossa ilharga
o ocaso sereno do dia
e a um vislumbre de oliveiras
suspendes o andamento
levas o lenço à testa
e voltas a face
com os lábios em sangue:
"estamos perto"
§
Cartas panónias
Senhor,
Venho por este meio endereçar-Vos uma primeira missiva de natureza oficial, conforme me obrigam, creio, as disposições legais do Império, em sequência do inquietante e prolongado desaparecimento do nosso estimado governador.
Devo a este respeito fazer desde já notar, não sem mágoa e uma certa perplexidade, a inconsequência de todas as diligências até agora levadas a cabo, das quais Vos pretendo dar detalhada conta em epístola futura. Adianto porém não ter sido ainda explorada a hipótese de um envolvimento das gentes nativas no misterioso incidente, dada a índole habitualmente mansa e cortês desta Vossa panónia massa de súbditos, em nada propensa, se não me engano, a actos de silenciosa sedição.
Mas à parte deste episódio, que tanto sei muita tinta e verborreia fez já correr na capital do Império, bem como noutras províncias e redutos imperiais, cabe-me garantir-Vos, Senhor, de coração sincero e vincado sentido do dever, que assumo com absoluta dedicação a responsabilidade que me impõe o destino e o imperial regimento de Vos informar sobre tudo o que de relevante ocorre nestas panónias paragens do Vosso domínio. E ademais sabei que muitíssimo me honra esta incumbência, pelo desejo pessoal há muito sentido de conVosco partilhar, se tal me é permitido, o que durante largos meses pude aqui observar, matérias para as quais pouco espaço e propósito me oferecem ofícios e relatórios administrativos.
Eis-me portanto aqui, Senhor, corpo batido pelas estações da planície, no espaço longínquo de insuspeitas longitudes, onde corpo morto de rato pequeno é repasto imediato de corvo ou gavião, e do estio ao inverno o grau cai a pique pela ausência de mar. Aqui o tempo tem muitas verdades. Por ora a terra panónia lá se vai preparando para a imperial colheita, na esperança, Senhor, de um dia lhe concederes o gáudio de uma visita Vossa.
Do Vosso súbdito fidelíssimo,
com votos ardentes de que esta carta Vos encontre de excelente saúde e paz governativa.
J
§
Cartas Panónias
Senhor,
Recebei em Vossas ebúrneas mãos, com a parcimónia que sei pautar a Vossa natureza, mais esta humilde missiva, que tantas léguas veio a cobrir para Vos encontrar. Daqui, onde o estio vai lentamente esmorecendo e já a frescura das noites pressagia a estação que se avizinha, enviam-Vos Vossos súbditos e servidores as mais sinceras e dedicadas saudações, que o Vosso nome, à falta ainda de uma imagem ou contorno de rosto, é lenitivo permanente para todas as agruras da existência, pronunciado em todas as panónias partes por lábios modestos, em sinal de louvor e esperança.
Sabeis bem que por aqui se aproxima o mês das colheitas, e não é sem certo traço de reprovável orgulho que me atrevo a prever resultados portentosos nesta Vossa província, dos quais, como é devido, não deixarei de dar conta, em documento próprio, aos oficiais do tesouro, para que posteriormente seja preparada a respectiva guia de transporte para a metrópole. Orgulha-se a enfadonha Panónia das suas artes agrícolas, e é certo que por aqui não nos tem desiludido a terra escura. Que assim seja, esperamos todos, por largos e pacíficos anos.
Distinta empresa, Senhor,será manter as populações indígenas no conveniente estado de mansidão laboriosa que por ora as caracteriza. Pergunta-me a metrópole, não sem algum propósito, se não haverá dedo nativo no desaparecimento do nosso saudoso governador, e eu próprio, ainda que me envergonhe a incerteza, tenho a maior dificuldade em considerar semelhante hipótese, por jamais ter testemunhado o mínimo indício de atrito ou sedição no seio das comunidades. Em todo o caso, Senhor, na eventualidade de se decidir confrontar os reservados indígenas com a suspeita do crime de rapto ou homicídio, ficai desde já com o meu humilde conselho de que tal seja empreendido apenas após as colheitas, de modo a não melindrar o espírito de tranquilidade e dedicação que as propicia.
Tenho bem a consciência, Senhor, sem que Vós o digais, que de tudo isto depende o meu posto, a minha honra, o meu prestígio a Vossos suaves olhos. Tranquiliza-me porém saber que de Vós não receberá o panónio domínio menos que a mais justa consideração.
Já o choupo vai perdendo a sua primeira folha e eu sorrio, Senhor, ao pensar que este vento que a noite arrasta também já Vos terá percorrido a face e levantado a ponta de Vosso real manto.
E assim já por ora me despeço, com as costumeiras saudações que me impõe o ofício e os calorosos votos de saúde e bonança que me dita o coração.
O Vosso humilíssimo súbdito
J
§
Cartas Panónias
Senhor,
Escrevo-Vos hoje com tal embaraço e angústia, que muito me pesa a pena que empunho e mais me resiste o fólio à escritura a que me vejo obrigado. Tomei recente conhecimento de que não terá chegado à metrópole toda a tara de mercancias resultantes da panónia colheita, conforme aqui registada à partida da caravana. A este respeito não poderá seguramente falar-se de nada menos que furto de imperial propriedade, crime para o qual é bem conhecida em todas as partes a costumeira punição. Sabei porém não haver registo ou sequer suspeita, em todo o largo percurso até à metrópole, de incidente ou quebra de protocolo que possa ter conduzido ao desaparecimento das mais de dez arrobas em falta. E é neste ponto que se me enrola a língua e se me adormentam os dedos, Senhor, por não ter algo de concreto que Vos possa desde já transmitir a este respeito. Não posso deixar de aparentar este episódio com o enigmático desaparecimento do nosso saudoso governador, pelo que a meu ver se torna agora inevitável mão mais pesada nas averiguações que se impõem.
Assumo, Senhor, a minha enorme culpa pelo escrúpulo que até agora exibi em tratar destes graves acontecimentos com a firmeza que é forçoso aplicar. Alguns me acusarão, não sem certa justiça, de excessiva afeição pelas gentes locais, o que porventura tende a toldar-me a razão e a refrear em mim certa necessária dureza na demonstração da autoridade imperial. Desse grave pecado, Senhor, não pretendo ser de futuro acusado, pelo que darei início, logo que puder contar com Vosso soberano consentimento, a todo um preparado conjunto de detenções e interrogatórios, com o fim de esclarecer os incidentes mais recentes e evitar que na panónia província se instale qualquer clima de impunidade, o qual, como decerto sabeis, é a daninha raíz da queda de impérios e civilizações.
À falta de resultados concretos em sequência das investigações que pretendo pessoalmente levar a cabo, encontram-se em preparação algumas medidas de punição arbitrária colectiva, com o mencionado propósito de, se me é permitida metáfora em oficial epístola, cravar fundo na escura terra da Panónia o magno selo do Vosso ditoso império.
Ergo agora os olhos, Senhor, e diante de mim corre suave o rio à luz difusa desta manhã de Outono. O mesmo rio que, léguas mais abaixo, delimita a autoridade por Vós estabelecida sobre esta desolada planície. Não posso deixar de pensar, Senhor, que talvez se esconda na outra margem, por detrás das fileiras arbóreas que bordejam as águas, a explicação para as inquietações de que hoje padecemos. Virá o dia, imposto pelo destino ou pela necessidade, em que forçoso será cruzar as águas e enfrentar o que a lonjura nos reserva. Também para isso servirão como preparação e sondagem os interrogatórios de Inverno que Vos proponho.
Ardo, Senhor, por célere resposta, na esperança de que podeis confirmar a Vossa confiança na minha função e assim honrar-me com o ensejo de pugnar pela perpetuação do Vosso nome.
O Vosso servo
J
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